As religiões no Brasil tendem a compor futuramente um campo complexo e difuso de filiações e trânsitos dos fiéis entre elas, com tendências ao acirramento da concorrência religiosa, antecipa José Rogério Lopes.
Por: Thamiris Magalhães
Em relação ao perfil do católico que emerge do Censo 2010 e dos traços mais característicos deste perfil, José Rogério Lopes afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line,
que, segundo os dados do Censo, trata-se de um perfil popularizado,
concentrado nos estratos de baixa renda e escolaridade. “O crescente
avanço dos carismáticos entre os católicos tem acentuado um perfil
espiritualista, mas conservador, com foco nas interações midiáticas e em
grandes eventos”, diz. E acrescenta: “Por outro lado, é importante
considerar que o catolicismo tem historicamente uma dinâmica plural de
identificações e filiações, característica dos consensos hegemônicos,
que libera os católicos de filiações rígidas e disciplinadoras. Assim,
mesmo considerando as tendências conservadoras acima citadas, o perfil
do católico ainda se caracteriza por uma composição variada e
multifacetada”.
José Rogério Lopes é graduado em Pedagogia pela
Universidade de Taubaté, mestre e doutor em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. É professor
titular do PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – Unisinos. De sua autoria, destacamos A imagética da devoção; a
iconografia popular como mediação entre a consciência da realidade e o
ethos religioso (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010). É um dos
organizadores de Diversidade religiosa, imagens e identidades (Porto
Alegre: Armazém Digital, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as principais características do mapa
religioso brasileiro que emergem do Censo 2010? Como o senhor enxerga o
futuro das religiões daqui para frente?
José Rogério Lopes – As características principais
seguem uma tendência que vem se acentuando nas duas últimas décadas. O
declínio dos católicos e o avanço crescente dos evangélicos. Dos 24.6%
de queda do catolicismo, desde 1980, 19.7% decresceram desde 1991. No
mesmo período, o número de evangélicos dobrou. Como o campo
institucional dos evangélicos é mais diversificado, acelerou-se o
processo de diferenciação religiosa no país. Para se ter ideia, no campo
evangélico, que dobrou, os pentecostais triplicaram o número de adeptos
no período de duas décadas, apesar da queda percentual de crescimento
na última década (de 4.6% na década de 1990 para 2.7% na década de
2000).
Números
Os dados preliminares do Censo mostram também uma concentração dos
que se declaram religiosos nas camadas menos escolarizadas (39.8% de
católicos; 42.3% de pentecostais e 33.7% de evangélicos não
determinados) e com baixa renda (66% de católicos; 75.3% de pentecostais
e 69.6% de evangélicos não determinados), dispersados em regiões
periféricas dos grandes centros e nas regiões nordeste e centro-oeste.
Nessas mesmas camadas também aumentou muito o número dos que se declaram
sem religião.
População cristã
Outro dado importante refere-se à soma da população cristã no país.
Apesar de ligeira queda, elas atingem ainda o percentual de 86,8% da
população, enquanto as demais religiões somam, juntas, 5%, e os sem
religião chegaram a 8%, em um crescimento acelerado.
Aprimoramento
Essa diversificação institucional religiosa, porém, possui também
características metodológicas e regionais que merecem mais atenção. Foi a
primeira vez que o Censo aprimorou a tipologia de identificação da
população, acrescentando ateus e agnósticos entre os sem religião. A
mídia tem complementado esse aprimoramento com o uso de aplicativos na
análise dos dados – como o Tableau Public – que permite realizar
agrupamentos aprimorados dos dados, como fizeram os jornais Folha de S.
Paulo e o Estado de São Paulo, nas matérias sobre o assunto.
Considerando a aceleração das mudanças dessas características, na
série histórica recente, as religiões no Brasil tendem a compor
futuramente um campo complexo e difuso de filiações e trânsitos dos
fiéis entre elas, com tendências ao acirramento da concorrência
religiosa.
IHU On-Line – Qual é o perfil do católico que emerge do Censo 2010? Quais são os traços mais característicos deste perfil?
José Rogério Lopes – Segundo os dados do Censo,
trata-se de um perfil popularizado, concentrado nos estratos de baixa
renda e escolaridade, indicados anteriormente. O crescente avanço dos
carismáticos entre os católicos tem acentuado um perfil espiritualista,
mas conservador, com foco nas interações midiáticas e em grandes
eventos. Por outro lado, é importante considerar que o catolicismo tem
historicamente uma dinâmica plural de identificações e filiações,
característica dos consensos hegemônicos, que libera os católicos de
filiações rígidas e disciplinadoras. Assim, mesmo considerando as
tendências conservadoras acima citadas, o perfil do católico ainda se
caracteriza por uma composição variada e multifacetada.
IHU On-Line – Muitos jovens, a partir dos dados do Censo,
declararam não possuir religião, porque não encontram a verdade em
nenhuma delas. Nesse sentido, como o senhor avalia o real papel das
religiões? E como os jovens começam a ver, compreender e vivenciar a
religião no mundo atual?
José Rogério Lopes – A “busca da verdade” torna-se,
cada vez mais, um caminho com várias possibilidades. Essa justificativa
indicada pelos jovens tem a ver também com o fato de que o crescimento
da diversificação religiosa aumenta a “oferta de verdades”, mesmo quando
esse aumento é produzido de forma mimética, como entre os evangélicos
pentecostais e, sobretudo, os neopentecostais.
Trânsito religioso
Essa oferta crescente evidencia que o pluralismo religioso é
concorrencial e as doutrinas religiosas apelam constantemente para a
cooptação ou a fidelização dos fiéis. Assim, a concorrência religiosa
que exterioriza essa variedade de verdades pode aparentar-se a uma
prateleira de supermercado, como que expondo mercadorias à espera de
clientes (o que favorece um trânsito religioso). Mas a crescente oferta
de verdades tende a produzir uma reflexividade entre aqueles que a
buscam. Afinal, entre tantas verdades, como escolher uma? Como já
indicou o pensador americano Alvin Toffler , no livro O choque do futuro
(4ª ed. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1972), essa ilusão de uma miríade de
escolhas acaba embotando a capacidade de discriminação dos indivíduos.
“Religião em trânsito”
Nesse sentido, o papel das religiões passa também por reflexividades
institucionais endógenas, em contraste com “ameaças” exógenas diversas.
Embora concorde com o pensador francês Luc Ferry (O que é uma vida bem
sucedida. Rio de Janeiro: Difel, 2004), na ideia de que a religião ainda
tem um papel importante na definição do que seja uma boa vida, desde a
composição de parâmetros éticos e ideais de realização pessoal e
coletiva, a definição desse papel depende da dinâmica dessa
reflexividade institucional em desenvolvimento e das orientações que as
religiões passarão a adotar (o que evidencia um modelo de “religião em
trânsito”, como indicado pelo antropólogo Ronaldo de Almeida ).
Já o aumento crescente de jovens em segmentos religiosos
conservadores e desapegados da vida cotidiana (Toca de Assis e Arautos
do Evangelho , no catolicismo, por exemplo) mostra que a vivência dos
jovens, em matéria de religião, tem se orientado por experiências com
forte apelo corpóreo e espiritualista, de fundo disciplinador e
comunitarista.
IHU On-Line – Qual o principal desafio que as religiões enfrentam atualmente?
José Rogério Lopes – Vejo dois desafios importantes.
O primeiro refere-se à necessidade das tradições religiosas traduzirem
suas místicas, seus princípios éticos e seus sistemas doutrinários em
linguagens acessíveis e atrativas às novas experiências sociais (que
muitos autores têm tratado como “novas gramáticas sociais”), sem perder
suas “estruturas de plausibilidade”, como bem argumentou Peter Berger,
frente aos desafios do secularismo . Nesse caso, o Simpósio que o
Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoverá sobre Igreja, Cultura e
Sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas
gramáticas da civilização tecnocientífica pode ser um marco importante
de análise. O segundo desafio é encontrar mediações para ampliar o
diálogo inter-religioso, em um campo de concorrência acirrada entre
tradições ou denominações religiosas.
IHU On-Line – Que pistas os resultados trazidos pelo Censo podem nos oferecer com relação à sociedade atual e a do futuro?
José Rogério Lopes – Nos dois casos propostos para
análise, vou me autorizar a reproduzir uma introdução que elaborei para
um livro organizado por amigos.
Os resultados do último Censo permitem reconhecer que o campo
religioso contemporâneo carrega a marca da pluralidade e se define, mais
do que antes, pelas problematizações que tal pluralidade provoca. Isso
porque os reptos constantes que as diversas denominações religiosas
dirigiram, e ainda dirigem, à predominância católica no Brasil, têm
flexibilizado as fronteiras e os padrões sociais das práticas
religiosas, e modificado o cenário institucional religioso.
Simultaneamente, vimos emergir nesse mesmo campo religioso de
pluralismo concorrencial, nas últimas décadas, processos de significação
individuais e coletivos que, combinados com estruturas de sentimentos
abertas a novas percepções, rearranja de forma reflexiva os modelos
prevalecentes de religiosidade. Reagindo a esse reordenamento, as
antigas tradições religiosas se atualizam seletivamente, ora
incorporando, ora desincorporando representações e crenças diversas. E
seguindo a máxima de que nada se perde, tudo se transforma, essas
mudanças têm deixado lacunas sobre as quais os atores religiosos
contemporâneos fabricam novos modelos, ou também atualizam os antigos.
Nesse quadro de atualizações e fabricações religiosas inacabadas (que
tenho denominado de campo performático-religioso), as experiências
religiosas populares têm ganhado força, novamente, pela sua capacidade
performática de produzir estratégias e gerir identidades em negociação
com alteridades distintas.
Enquanto as institucionalidades religiosas se atualizam
vagarosamente, em virtude de suas premências normativas (isso
repercutiu, no último Censo, na constatação da queda dos fiéis da
Congregação Cristã no Brasil, por exemplo), foi agindo em um plano
transgressor, subversivo ou residual às normas religiosas, mesmo
sub-repticiamente, que as experiências religiosas populares se
atualizaram e passaram a reivindicar reconhecimento, no campo religioso.
IHU On-Line – A Igreja Universal também perdeu 10% dos fiéis na última década. Isso está relacionado com que fatores?
José Rogério Lopes – Vários fatores estão envolvidos
nessa queda. Destacaria três. As cisões no interior da Igreja Universal
do Reino de Deus - IURD, tendo como exemplo a saída de bispos da Igreja
que foram para a recém-fundada Igreja Mundial do Poder de Deus,
arrastando milhares de fiéis; a difusão de uma ética indolor, pragmática
e experimental – como indicada por Gillles Lipovetsky , em A sociedade
pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos
democráticos (Barueri: Manole, 2005) – na experiência de pertencimento
religioso, que desobriga os fiéis do cumprimento de deveres absolutos e
exteriores e reforça o processo de individualização e autonomia deles
(perspectiva que atinge outras lógicas de pertencimento religioso
contemporâneo); e a expansão da privatização religiosa, que era
característica de católicos e, mais recentemente, de algumas
denominações de protestantes históricos, que se define pela
religiosidade vivida “à minha maneira”, como declaravam categorias de
indivíduos, no Censo de 2000.
Hibridismo
Esses fatores permitem inferir que o crescimento religioso de uma
denominação religiosa, sobretudo nos centros metropolitanos, como
apontado pelos últimos Censos, está associado à crescente diferenciação
de seus fiéis, pelo caráter contrastivo que sua concentração produz.
Aqui, evidencia-se um hibridismo que se caracteriza pela intercorrência
de escalas de crescimento religioso e urbano, como fenômenos que se
interpenetram em fluxos constantes e que se arranjam em composições
variadas. Esse fenômeno ainda carece de análise.
Outra explicação desse decréscimo diz respeito ao jogo de forças
travado pela concorrência religiosa, no campo evangélico e pentecostal,
com repercussões midiáticas que geram alianças conjunturais e
repercussões na opinião pública, como ocorreu na última década, muito
bem analisadas por Ricardo Mariano.
IHU On-Line – Por que as regiões Nordeste e Sul ainda concentram o maior número de católicos?
José Rogério Lopes – Porque essas regiões estão
dispostas em tradições populares e étnicas, respectivamente, da formação
da sociedade brasileira, o que corresponde de forma apropriada com os
resultados preliminares do Censo 2010, aqui em discussão.
IHU On-Line – Como pode ser definido o conceito de “desafeição religiosa”? Em que consiste? O que ela significa?
José Rogério Lopes – O conceito permite caracterizar
uma indefinição crescente da identificação confessional declarada pelos
informantes, sobretudo justificada por “uma insatisfação dos fiéis com
os serviços prestados pelas suas igrejas”, como afirmou o sociólogo
Pedro Ribeiro de Oliveira, em entrevista ao IHU (5 de julho de 2012) .
Essa desafeição refere-se a uma mudança geracional que afeta as
tradições religiosas (a diminuição crescente do número de jovens
católicos e dos protestantes históricos), e que se reforça no aumento
acelerado dos que se declaram sem religião nas décadas recentes.
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