“Se a Igreja não intervier nesses casos, ela negará a
sua natureza. Ela tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do
explorado. Ela não deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser
solidária ao povo”.
É com essa declaração que o arcebispo emérito de
Porto Velho, Dom Moacyr Grechi, reafirma o posicionamento que a Igreja
deve tomar diante da construção de empreendimentos no Norte e Nordeste
do país, como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, que estão sendo
construídas no rio Madeira, gerando impactos às populações ribeirinhas e
ao meio ambiente. Depois de uma longa trajetória ao lado das
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, no Acre, onde foi bispo, e em
Porto Velho, onde foi arcebispo, Dom Moacyr destaca que a questão
ambiental e ampliação das periferias nos estados brasileiros merecem
atenção da Igreja. “É na periferia que o crime organizado continua.
Muitos jovens são mortos e, além disso, a droga é algo comum nesses
locais. Então, as periferias são um grande desafio para a Igreja hoje”,
assinala. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line,
Dom Moacyr descreve um pouco da trajetória da Igreja na Amazônia e
critica: “Quando assisto aos programas de televisão da Igreja, vejo que
estão abençoando demais pela televisão. (…) A Igreja permite e até
aconselha benzer água como lembrança do batismo, como forma de gratidão
pelo batismo recebido, mas tem valorizado demais o devocionalismo, e
esquece o fundamental da pregação”.
Dom Moacyr Grechi, arcebispo emérito de Porto Velho: A Igreja tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do explorado. Ela não deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser solidária ao povo |
Como o senhor avalia o décimo encontro da Igreja na Amazônia,
realizado em Santarém? Quais foram os temas mais candentes do encontro?
Avalio como um encontro muito bom. A maior dificuldade foi o fato de
não ter havido uma preparação em tempo. Talvez também não tenhamos
levado o número de assessores suficiente que pudessem nos ajudar, em
certo momento, porque no início de qualquer reunião com mais de 150
pessoas não é fácil encaminhar o trabalho. No entanto, o encontro
confirmou o documento de Santarém, elaborado em 1972, e tirou toda a
ambiguidade que existia nos documentos da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil – CNBB, no sentido de confundir Comunidades Eclesiais
de Base – CEBs com as novas comunidades, redes de comunidades, que podem
dizer tudo ou não dizer nada.
Isso quer dizer que…
Eu diria ainda que o documento de Santarém é a carteira de identidade
da Igreja da Amazônia, porque é a partir dele que a Igreja começa a ter
traços próprios. O documento de 1972, resultado do encontro em
Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972, já demonstrou as características
que a Igreja deveria ter na Amazônia: assumir a causa do povo e dos
pobres como se fosse nossa; considerar a evangelização libertadora no
sentido pleno de libertação não só do pecado, mas de todas as
consequências. Essas duas estrelas iluminaram as prioridades do
documento que, naquela época, tinha como objetivo formar agentes
pastorais, porque, na prática, 80% dos ministros, padres, bispos e irmãs
vinham de outros países. Muitos não só evangelizaram, mas deram a vida
pelo povo da Amazônia, auxiliaram em diversas áreas, como saúde, cultura
e educação. A formação de agentes pastorais buscava acreditar nas
possibilidades do povo da Amazônia. Quem trabalhava com os índios tinha
de acreditar que eles poderiam assumir a sua missão em todos os níveis
da Igreja. Nessa época, a Pastoral Indígena tinha sido um pouco
esquecida, com exceção da atuação dos salesianos, no Mato Grosso e no
Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, e da atuação dos jesuítas,
no Mato Grosso. Criou-se, então, o Conselho Indigenista Missionário –
Cimi e as frentes pioneiras, pois estava iniciando o êxodo, e pessoas do
Rio Grande do Sul e do Paraná migravam para a Amazônia.
Como o senhor vê os povos da Amazônia hoje, 40 anos depois?
Já faz alguns anos que, a partir das palavras de Dom Erwin Kräutler,
de Dom Antônio Possamai e de outros bispos da região, a Igreja começou a
descobrir a Amazônia, porque eles não tinham ideia do que era a nossa
Igreja e os nossos desafios. Com o tempo a Igreja foi ficando mais
esclarecida, até que surgiu a Comissão Episcopal para a Amazônia,
coordenada por Dom Jayme Chemello, então bispo de Pelotas, Rio Grande do
Sul. Creio que, do ponto de vista eclesial, houve um crescimento de
conhecimento e de colaboração, pois muitas pessoas vieram reforçar nossa
caminhada. Os que participam do nosso cotidiano percebem que na
Amazônia não existe só pobre e jacaré, mas muita gente consciente do
Evangelho, que vive a fraternidade, que não deixa o povo abandonado e se
engaja na política. Nesses últimos anos houve, infelizmente, uma
corrupção generalizada, e as comunidades foram atingidas. As comunidades
nunca quiseram se confundir com partidos políticos ou sindicatos; elas
formavam e incentivavam as pessoas a participarem daquilo que achavam
melhor. Incentivavam-nas a participar do sindicato, mesmo que este fosse
coordenado por um ateu ou crente. O importante era lutar pela causa do
povo.
Em 1972, a Igreja na Amazônia assumiu para si a questão indígena,
dando origem posteriormente ao Cimi. Hoje, que questões a Igreja deve
adotar para si?
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Nós, Igreja, temos de falar com humildade e questionar o que há de
ruim na sociedade. Muitas coisas que não são boas também acontecem entre
nós. Hoje, o pobre é novamente excluído. No tempo em que atuei no Acre,
por exemplo, havia apenas os partidos PMDB e PDS, os quais não deixavam
os colonos e seringueiros participarem das discussões políticas. Foi aí
que surgiu o PT, que abriu espaço para essas pessoas, embora hoje todos
os partidos estejam meio parecidos. Hoje a Igreja tem que admitir que a
problemática da terra mudou um pouco de feição, mas o atual modelo do
agronegócio e a criação de bois estão recriando o conflito e a
destruição da Amazônia. Só em Rondônia têm 13 milhões de cabeças de
gado, quer dizer, onde tem gado criado extensivamente, a floresta cai.
Então, estamos alertando para que as pessoas tenham cuidado com o
agronegócio, para que ele não destrua áreas de florestas virgens, porque
a floresta é fundamental para manter a sustentabilidade. Nesse sentido,
os quilombolas, os ribeirinhos também devem ter a oportunidade de viver
uma vida decente.
Em sua avaliação, como a Igreja deve se pronunciar diante do anúncio da construção de novas hidrelétricas na região amazônica?
Se a Igreja não intervier nesses casos, ela negará a sua natureza.
Ela tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do explorado. Ela não
deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser solidária ao povo, porque
essas pessoas mais pobres são ameaçadas de morte a todo instante por
juízes corruptos. A Igreja não pode ficar alheia, ela tem de correr
riscos, inclusive de morte, como já perdemos diversos padres – bispos
até agora não mataram nenhum, e não me matam mais porque eu morro antes.
Algumas regiões do Brasil continuam achando que a Amazônia é a colônia
do país. Como Portugal via o Brasil como colônia, de onde tudo tirava e
nada dava, o restante do Brasil vê a Amazônia como a província
energética da nação. As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau são dois
monstros. Há 25 mil operários trabalhando na construção dessas usinas.
Obras colossais como essas atingem a criação de peixe, os trabalhadores
que vivem da pesca; atingem aqueles que moram na periferia.
O medo da energia atômica faz com que muitos apoiem a construção de
hidrelétricas. Muitas pessoas em Porto Velho faziam política dizendo que
as hidrelétricas trariam o progresso. A Igreja, com suas pastorais, tem
a obrigação de tornar clara essa situação, ou seja, explicar que
existem aspectos positivos e mostrar quais são as implicações negativas
para a Amazônia. Será que o povo da Amazônia não tem de ser compensado?
Já retiraram da região a borracha, o ouro, a madeira. Quando viajo, aos
sábados e domingos pelo interior, encontro tanto caminhão com madeira
clandestina. Posso dizer hoje que houve alguma melhora nos locais em que
as autoridades são sérias e cumprem as leis, porque ao menos as pessoas
têm liberdade para falar e denunciar sem serem presas ou torturadas.
Fazendo um balanço dos 20 anos do documento “Santarém. A Igreja arma
sua tenda na Amazônia”, quais são os desafios da igreja, hoje, na
região?
Atualmente uma das problemáticas da Igreja é a questão do meio
ambiente. Veja a questão da soja, que é plantada no Mato Grosso e
transportada de caminhão para Porto Velho – são cerca de 1500 caminhões
por dia. Depois, a soja é descarregada no rio Madeira, e as cargas são
transportadas até Manaus, de onde saem os navios para o Japão e todo
lugar do mundo. Imagina o lucro que deve dar essa soja, apesar do alto
custo com transportes. Se não houver muito rigor das autoridades, nada
vai mudar. Precisamos acabar com a corrupção. Se acabarmos com ela, a
Amazônia será defendida. Do contrário, não sei como a floresta vai
acabar. Hoje, o povo está ficando mais consciente. Ele resiste. Veja,
porém, o casal de extrativistas que morava no Pará: resistiu e foi
assassinado (José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo). A Irmã
Dorothy Stang, que sempre apresentou o Evangelho diante dos assassinos,
também foi morta friamente, e os assassinos foram soltos.
Quais as maiores dificuldades que o senhor encontrou no período em que foi bispo no Acre e arcebispo de Porto Velho?
O maior problema que eu encontrei foi o crime organizado, e o caso do
coronel Hildebrando Pascoal. Certo dia houve uma briga em um posto de
gasolina, e um cidadão matou um parente do Hildebrando, que mobilizou a
polícia para “caçar” essa pessoa. Nesse meio tempo, alguém matou um
cidadão que estava ao lado do corpo do parente dele: serraram com uma
motosserra os dois braços e as pernas, e depois colocaram o corpo dentro
da sede da televisão Manchete. Por conta do assassinato, Hildebrando
ofereceu uma oferta para quem indicasse onde estava o assassino do
parente dele. Quando estávamos reunidos no Palácio do Governo com todas
as autoridades da segurança – o juiz, o presidente do tribunal, o futuro
presidente do tribunal, o comandante da polícia, o superintendente da
polícia federal e eu -, Hildebrando abriu a porta chutando e disse: “Eu
vou matar o assassino do meu irmão e quem passar na minha frente vai
morrer também”. Nenhuma dessas autoridades reagiu! Um advogado pediu que
eu intervisse e conversasse com ele. Aí eu fui falar com o comandante
do Exército, e ele respondeu: “Dom Moacyr, eu não posso, por lei,
interferir e, no mais, os meus fuzis são velhos e os meus recrutas não
sabem atirar bem. Quem atira bem são os policiais que estão
acostumados”.
O que aconteceu depois deste incidente?
Fui procurado pela rede Globo para conceder uma entrevista para o
Fantástico. Na época, telefonei para a CNBB e perguntei se eu poderia
conceder a entrevista. Eles disseram que sim, e que eu não estaria
prejudicando, de jeito algum, o conjunto da Igreja. Concedi a entrevista
que foi apresentada no Fantástico durante oito minutos. Depois da
divulgação dessa matéria, Hildebrando não foi mais eleito deputado, e o
Brasil teve conhecimento do crime organizado no Acre. No ano passado,
fui chamado para depor num outro caso envolvendo o Hildebrando, e ele
estava presente na sala. Os advogados me perguntaram se ele havia me
ameaçado de morte. Eu disse que nunca, nem direta nem indiretamente.
Contei que uma pessoa que ele e eu conhecíamos havia me dito que
Hildebrando sabia que duas pessoas poderiam destruí-lo: o presidente do
tribunal e o bispo, mas que ele não conseguia ter ódio do bispo. Nesse
momento ele se levantou, me cumprimentou, e disse: “Os meus sentimentos
são os mesmos”. Lidar com essa situação do crime organizado foi muito
difícil. O Hildebrando tinha cerca de 300 soldados que prestavam
serviços a ele.
O senhor foi ameaçado de morte alguma vez?
Fui ameaçado de morte várias vezes. Certa vez, um cidadão chamado
João Sorbile pegou uma terra de três mil hectares, que era dos índios, e
passou para 300 mil, com a conivência do Cartório de Boca do Acre, no
Amazonas, e a vendeu para colonos do Paraná. Quando os índios voltaram
para a terra – porque eles mudam de área de acordo com o período do ano,
em busca de caça -, os colonos descobriram que a terra não era deles e
foram expulsos.
Certa vez, esse João Sorbile me ameaçou e disse para o governador do
Acre que iria me matar. O governador disse para eu sair do Acre por um
tempo, mas eu fiquei, porque achava que era corajoso. Um dia, quando
estava numa estrada na cidade de Boca do Acre, encontrei um carro
estacionado e vi que era de João Sorbile. Senti um frio da cabeça aos
pés, entrei no Jipe, fui embora, e vi que, como todo mundo, tenho medo
da morte.
A partir da sua experiência no Acre e em Rondônia, quais os problemas
que ainda afetam a sociedade destes dois estados, e envolvem as opções
que a Igreja fez nesses dois contextos?
Um aspecto novo que surgiu são as imensas periferias das capitais e
das cidades menores. É na periferia que o crime organizado continua.
Muitos jovens são mortos e, além disso, a droga é algo comum nesses
locais. Então, as periferias são um grande desafio para a Igreja hoje.
As pessoas que moram na periferia não têm acesso à saúde e moradia
adequadas.
Como vê as Comunidades Eclesiais de Base nos dias de hoje? Elas continuam com as mesmas características?
Alguns bispos e padres acham que as Comunidades Eclesiais de Base são
uma fórmula política ou coisa assim. Falam isso por total falta de
conhecimento. Eu tenho quarenta anos de convivência com as CEBs,
admiro-as e fui, em parte, convertido por elas – não me converti de todo
porque tenho um coração duro. Durante esses anos vi muitos atos de
solidariedade, de amor, de ajuda ao outro. Vi pessoas caminharem dez
quilômetros para ir a uma celebração na paróquia da comunidade para
ouvir a palavra de Deus, rezar, para encontrar com outras pessoas e
reforçar a sua fé. As comunidades precisam ser incentivadas na linha da
missão. É preciso formar discípulos missionários. As santas missões
populares, que são feitas em muitas de nossas paróquias, têm sido um
instrumento para animar as comunidades, fortalecê-las e atualizá-las,
porque hoje muito mais pessoas têm acesso à leitura e sabem ler. Nesse
sentido, o Evangelho pode iluminar as situações de perigo das
comunidades em relação à droga, por exemplo, e ajudar a tomar medidas
necessárias.
Quanto às CEBs, ou elas mantêm as mesmas características ou têm que
rasgar o Ato dos Apóstolos, porque as comunidades nasceram da
ressurreição de Cristo e do Espírito Santo. Nesse sentido, o
fundamental, em primeiro lugar, é a palavra de Deus: um cristão que não
escuta a palavra e passa a escutar com os demais é muito melhor, porque
na comunidade há colaboração, partilha, e as pessoas da comunidade se
entendem melhor. Além do mais, nessas comunidades ninguém fica excluído,
porque as pessoas se conhecem. Apesar de o ritmo da eucaristia na
Amazônia ser mais devagar, porque dá para manter de duas a três
celebrações por ano, as comunidades de base precisam ser preparadas para
valorizar o sacramento da eucaristia: o corpo e o sangue de Cristo, que
deu a vida para que nós tenhamos vida, para criar a Igreja.
E a Igreja de hoje no Brasil ?
A Igreja de hoje é a mesma dos Atos dos Apóstolos. É claro que ela
mudou, mas existem coisas que não podem ser mudadas, porque são
substanciais. Quando assisto aos programas de televisão da Igreja, vejo
que estão abençoando demais pela televisão. Deveriam insistir mais na
participação concreta e investir em programas com a substância da
proposta da Igreja: morte e ressurreição de Cristo; amor ao próximo;
perdão e amor até aos inimigos; abertura para todo homem e mulher como
irmão e irmã. Esses pontos deveriam ser mais acentuados, em vez de
benzer água. A Igreja permite e até aconselha benzer água como lembrança
do batismo, como forma de gratidão pelo batismo recebido, mas tem se
valorizado demais o devocionalismo, e esquece o fundamental da pregação.
Além disso, a Igreja insiste muito na iniciação. Precisamos novamente
voltar a uma preparação séria, sólida do batismo em etapa, depois a
crisma, depois a eucaristia, sempre dentro de uma comunidade. É
impossível iniciar alguém na fé fora de uma comunidade; ela é
fundamental desde o começo, e assim será até o fim dos tempos.
Fonte: http://tribunadonorte.com.br
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