Frei Gilvander Luís Moreira*
No Jornal A Verdade –Um jornal
dos trabalhadores a serviço da luta pelo socialismo– na edição de agosto de
2012, Ano 12, n. 142, p. 8, foi publicada uma entrevista comigo. Na entrevista
tratamos de seis assuntos intimamente relacionados. Abaixo, apresentamos, em
forma de texto, o teor da entrevista.
1. A luta pelos Direitos Humanos e a Comissão da Verdade.
Dia 16 de maio último, a Presidenta Dilma
Rousseff, atendendo a um grande clamor do povo organizado, instalou a Comissão
da Verdade que, em dois anos, tentará apurar violações aos direitos humanos
ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar-civil-empresarial.
Essa Comissão investigará pelas brechas já abertas pelo Movimento contra a
tortura. Esse quer passar a limpo os horrores cometidos nos anos de chumbo. Mas
uma Comissão oficial jamais conseguirá o que precisamos: apurar de fato a
verdade que liberta, aquela que precisa revelar quem torturou e matou e quem
mandou torturar e matar. Para isso será indispensável que o Movimento de luta
pelos Direitos Humanos, nas suas mais diversas especificidades, organize e
dissemine Comissões de Verdade e Justiça independente do
governo e dos militares. Precisamos não apenas de sete, mas de "setenta vezes
sete” pessoas integrando Comissões locais e regionais. Não poderemos descansar
enquanto não punirmos todos os ditadores e seus vassalos e enquanto não
conquistarmos a abertura dos arquivos da ditadura. Em vários países
afrolatíndios muitos generais já foram julgados e estão detrás das grades.
Perdoar ditadores e torturadores é ser cúmplice da perpetuação da tortura.
2. As
contradições do "desenvolvimento” nas grandes cidades.
Desde Collor, passando por FHC e Lula até
Dilma, a política econômica do Governo Federal tem feito opção pelo capital e
seus adeptos banqueiros, empresários e latifundiários. O PAC é, na prática,
Plano de aceleração do Crescimento das empresas, não do povo. As grandes obras,
faraônicas por sinal, tais como Transposição do rio São Francisco, Usinas e
barragens de Jirau, Santo Antônio (em Rondônia) e Belo Monte (no Pará),
ferrovias, Transnordestina, construção e/ou reforma de portos e aeroportos, doze
estádios etc., promovem crescimento econômico para um pequeno grupo de grandes
empresas, a maioria delas transnacionais. Isso fomenta a especulação
imobiliária nas cidades. Com isso, ficam à míngua – quase sem orçamento - as
áreas sociais da saúde, educação, habitação, reforma agrária e outros direitos
humanos. Assim os empobrecidos estão sendo, de forma sorrateira e lenta, expulsos
para as periferias das regiões metropolitanas. Isso é progresso para uma
minoria e desgraça para a maioria. O Deus da vida abomina essa política
econômica neoliberal que impõe uma ditadura econômica sobre o povo. Inclusão
pelo consumo é enganação. As pessoas não têm só estômago e barriga. A gente
quer é vida com dignidade, o que passa por reformas agrária e urbana (que é
algo muito diferente de urbanização de favelas), agricultura familiar segundo o
paradigma da agroecologia, sustentabilidade ambiental, economia popular
solidária e direitos humanos para todos e não só para uma minoria.
3. A
criminalização dos Movimentos Sociais Populares que fazem ocupações rurais e
urbanas.
As condições de vida real do povo não estão
coloridas como aparecem na propaganda dos partidos políticos e na grande
imprensa. Infelizmente, a injustiça social e ambiental está crescendo e a
classe trabalhadora, cada vez mais marginalizada, não está tolerando mais a
corda no pescoço. Como uma panela de pressão no fogo, nas entranhas da vida
social há efervescência e ebulição. O povo organizado conseguiu inscrever na
Constituição de 1988 que toda propriedade deve cumprir sua função social. Para
isso é preciso ser simultaneamente produtiva, respeitar o meio ambiente, ter
relações trabalhistas justas e partilhar sua produtividade. Descumprindo a
função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade
que é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social e está
vazio deve sim ser ocupado. Ninguém tem a posse de uma área vazia. Posse é algo
concreto, real, que se pode tocar e pisar. Em outras palavras, que está nas
mãos. Como conseqüência lógica não pode o Poder Judiciário, baseado somente no
registro, dar as garantias da ação possessória. Invasor é aquele que se diz
proprietário sem legitimidade. Em um país campeão em concentração fundiária e
com grandes propriedades sem cumprir sua função social, ocupar é um direito e
um dever. Ai dos pobres que não se unem e não se organizam para ocupar os
terrenos abandonados. Morrerão aos poucos. Parabéns ao povo das ocupações que
está lutando por emancipação humana a partir da conquista da terra.
4. Ameaças
de morte (e de ressurreição).
Já fui ameaçado de morte (e de
ressurreição) muitas vezes. É só os conflitos se acirrarem e a luta de classe acontecer
que as ameaças surgem. Logo após o covarde e truculento despejo da Ocupação
Eliana Silva, do MLB, em
Belo Horizonte, MG, dias 11 e 12 de maio último, quatro
homens foram vistos no portão da minha casa em um horário em que eu deveria
chegar, mas quem chegou foram outros dois frades. De 22 de junho último, até o
dia 14 de julho, recebi no meu celular oito ameaças. Um ameaçador ligando a
partir de telefone público e dizendo "Padreco, sua batata queimou. Some de Belo
Horizonte enquanto é tempo.” Depois: "Você ainda está em Belo Horizonte? Se
prepare!” Coisas desse tipo. Sei muito bem que acompanhar as ocupações rurais
do MST em Minas Gerais
e as ocupações urbanas em
Belo Horizonte, Itabira, Timóteo e Uberlândia, denunciar as
injustiças sociais e ambientais, cobrar direitos humanos dos presos e dos
homossexuais, tudo isso consola quem está na aflição, mas incomoda quem está
gozando as benesses do capitalismo. Mas seguiremos lutando até o dia em que
construirmos uma sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável
ecologicamente. Ai de nós se nos calarmos diante de tantas violências perpetradas
contra os pobres. O Deus da vida conta conosco nessa empreitada de luta por
vida e liberdade para todos e tudo.
5. Ocupação
Eliana Silva: organização, despejo e a continuidade da luta por moradia digna.
As 350 famílias sem-terra e sem-casa da
Ocupação Eliana Silva se organizaram durante meses buscando se libertar da cruz
do aluguel, que come no prato do pobre, que é veneno para quem ganha só
salário-mínimo. Na madrugada do dia 21 de abril de 2012, em Belo Horizonte, MG,
ocuparam um terreno abandonado há mais de 40 anos. O MLB coordenou a Ocupação
Eliana Silva com idoneidade, com participação ativa e paixão pela defesa dos
pobres. Durante três semanas, a comunidade se construía. Mas o prefeito de Belo
Horizonte, Márcio Lacerda, exigiu na justiça reintegração de posse, mesmo sem
comprovar ter a posse do terreno. O Judiciário - defensor do privilégio que é
propriedade só para alguns – mandou despejar Eliana. Sem avisar, chegaram mais
de 400 policiais da polícia militar de Minas Gerais: tropa de choque, GATE e
outros pelotões da PM, inclusive com caveirão, um tanque de guerra. A Ocupação
Eliana Silva resistiu 36 horas, inclusive dormindo ao relento após terem suas
barracas destruídas. O povo foi despejado, mas não baixou a cabeça. Está se
organizando para um novo embate. A luta vai continuar até depois que todos
conquistem terra e moradia digna. O povo da Eliana Silva está de parabéns pela
firmeza, organização e ousadia com que está lutando. Não foi em vão o choro das
crianças e toda a dor perpetrada pelo Estado. Vamos transformar a sexta-feira
da paixão que fizeram com a Ocupação Eliana Silva em um domingo de
ressurreição.
6. Movimentos
Sociais Populares e Imprensa Popular nos próximos anos.
Infelizmente, a crise plural que nos
envolve se agravará, pois o dragão, que é o capitalismo, ainda soltará muito
fogo sobre os empobrecidos e sobre a biodiversidade. A crise econômica européia
está chegando ao Brasil. As massas estão sendo seduzidas pelo canto da sereia
da inclusão pelo consumo. A dívida externa foi internalizada. Com isso a dívida
pública que o Estado brasileiro tem para com 20 mil banqueiros é quase
impagável. É uma tremenda injustiça deixar de investir anualmente 250 bilhões
de reais nas áreas sociais para repassar para banqueiros credores da dívida
pública. Estima-se que em paraísos fiscais Maluf e muitos outros magnatas
brasileiros já esconderam mais de 520 bilhões de reais. As massas vão sentir
cada vez mais as conseqüências do endividamento, a intensificação do trabalho,
arrocho salarial e as agruras de morar cada vez mais distante dos centros das
cidades. Nesse contexto, felizes os empobrecidos que se unem, se organizam e,
de cabeça erguida, partem para a luta. Sonho com o dia em que todos os
Movimentos Populares do campo e das periferias das cidades dêem as mãos e em
lutas conjuntas possam sacudir o edifício do capitalismo que está podre e deve
ser derrubado o quanto antes. O que move o mundo, no mais profundo, não são as
armas, mas os sonhos libertários. Sonhemos acordados, de mãos dadas na luta. É
preciso acreditar na força da microcomunicação através dos jornais populares,
rádios populares, internet – e-mails, facebook, twitter, blogs, sítios etc.
Cada militante deve adquirir o hábito de colecionar endereços eletrônicos e,
assim, ampliar seus braços, sua voz e seu corpo. A luta faz nascer e crescer a
esperança. Só perde quem não entra na luta ou quem desiste da luta. Lutar até
depois da vitória, eis a nossa tarefa que deve ser abraçada por amor, por
paixão
.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 06 de agosto de
2012.
* Frei Gilvander Luís Moreira é padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica; professor no Instituto
Santo Tomás de Aquino – ISTA/BH e no Seminário da Arquidiocese de
Mariana, MG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina.
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