Por André
Campos
Carta Capital
Em maio de 2012, o Supremo Tribunal Federal anulou
os direitos de propriedade dos fazendeiros que ocupavam a maior parte da Terra
Indígena Caramuru-Paraguaçu, criada em 1926 e repassada a agricultores por meio
de títulos de posse emitidos pelo estado da Bahia. Uma querela fundiária
associada a sazonais escaladas de violência na região, das quais o pataxó
Diógenes Ferreira dos Santos é um dos protagonistas. "Eu não gosto nem de
falar, porque ainda me dá ódio."
Santos fala tanto do passado quanto do presente. Na
década de 1960, era criança quando dois policiais expulsaram a sua família das
terras onde viviam, acionados, diz o pataxó, por um fazendeiro que reclamava a
propriedade. A família migrou para uma fazenda próxima, onde trabalharam por
cinco anos, até serem novamente expulsos. Foi quando decidiram voltar ao antigo
lar na área Caramuru-Paraguaçu.
Bastaram 15 dias para os policiais regressarem,
desta vez com a missão de escoltar Santos e o pai até a cidade. "Ficamos
seis dias presos na delegacia de Pau Brasil", relembra. "Até que veio
a ordem de nos levarem para o Krenak, que eu nem sabia o que era.
Ainda hoje, poucos sabem o que foi o Krenak, ou
melhor, o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, experimento estatal que,
quatro décadas depois, permanece como um dos segredos da atuação da ditadura
para "manter a ordem" nas terras indígenas brasileiras.
O reformatório comecou a funcionar em 1969 em uma
área rural do município de Resplendor (MG). A administracão cabia a policiais
militares, a quem, meses antes, a Fundação Nacional do Índio (Funai) havia entregue, por meio de um
convênio, a gestão das terras indígenas
em Minas Gerais.
Em boletim informativo da Funai de 1972, há uma das poucas menções oficiais a respeito do
reformatório. Segundo o texto, tratava-se de uma experiência de
"reeducação de índios aculturados que transgridem os princípios
norteadores da conduta tribal, e cujos próprios chefes, quando não conseguem
resguardar a ordem na tribo, socorrem-se da Funai visando restaurar a hierarquia nas suas comunidades".
"O reformatório não teve sua criação publicada
em jornais ou veiculada em uma portaria", escreve o pesquisador José
Gabriel Silveira Corrêa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de um
dos poucos estudos sobre a instituição. "Seu funcionamento e a própria
"recuperação" lá executada passavam pela manutenção do sigilo.
Por aqueles com a vida marcada pelos acontecimentos
em Resplendor, aos termos "reformatório" e "centro de
reeducação" acrescenta-se outra denominação. "Naquela época, onde eu
vivia, todos os índios conheciam o Krenak", revela a pankararu Cleonice
Maria da Silva. "Era, na verdade, uma cadeia.
Moradora de Araçuaí (MG), Cleonice viveu uma
trajetória errante, marcada por um fato definidor em sua infância. Em 1969,
após uma briga violenta com outros integrantes da etnia, seu avô e seu tio
foram levados pela polícia da Terra Indígena Pankararu, no sertão pernambucano,
sem maiores explicações aos familiares. Pouco tempo depois, a mãe de Cleonice
saiu pelo mundo à procura do pai, de quem não recebia notícia.
Com a filha a tiracolo, passou por Brasília e por
aldeias na Ilha do Bananal (TO), onde havia uma base da Força Aérea Brasileira.
"Lá pousavam aviões transportando presos entre a ilha e o Krenak. Lembro
da minha mãe mandando recados ao meu avô através desse pessoal.
Carta Capital teve acesso a documentos da Funai datados de 1969 a 1975 que
revelam um cenário de graves violações aos direitos humanos no cotidiano do
presídio indígena da ditadura.
Pela manhã, após o desjejum, os
"confinados" eram levados para trabalhos rurais, que prosseguiam
depois do almoco. Formas de tratamento degradante, como, por exemplo, escassez
no fornecimento de comida, calçados e vestimentas, são descritas em ofícios
internos do órgão indigenista. "À tarde eles chegam do serviço, tomam
banho e vestem a mesma roupa molhada de suor", escreve o cabo da PM
Antônio Vicente, um dos responsáveis locais, ao pedir providências a seus
superiores.
Relatórios mensais descreviam a evolução no
comportamento dos detentos. "Elemento trabalhador, educado e obediente. No
corrente mês não praticou nenhuma indisciplina ou ato que possa desabonar sua
conduta" escreve o cabo Vicente sobre um índio kaingang. Já outro, da
etnia karajá, é descrito como lerdo, preguiçoso e de pouca vivacidade. "Um
elemento fraco, parecendo até mesmo ser um retardado. Não se interessa em
aprender nenhuma profissão e, se pudesse, não faria nenhum serviço."
Ex-integrante do Conselho Indigenista Missionário em Minas Gerais, a pedagoga
Geralda Chaves Soares conheceu, durante sua trajetória profissional, diversos
ex-internos do Krenak. Deles ouviu relatos de tortura típicos dos porões da
ditadura, incluindo índios acoitados e arrastados por cavalos. "Uma das
histórias contadas é a de dois urubu-kaápor que, no Krenak, apanharam muito para
confessar o crime que os levou até lá", exemplifica. "O problema é
que eles nem falavam português."
Dado o caráter sigiloso de suas atividades, é
difícil mensurar quantos indígenas
passaram pelo "centro reeducacional". Com base em referências dispersas
em arquivos da Funai, é possível
identificar ao menos 120 indivíduos, entre eles algumas mulheres, de 25 etnias.
Homicídios, roubos e o consumo de álcool nas aldeias estão entre os principais
motivos alegados para temporadas corretivas. Outras situações comuns eram as
brigas internas, uso de drogas, prostituição, conflitos com servidores públicos
e atos descritos como vadiagem.
Em 1971, por exemplo, um urubu pederastia" em
sua aldeia. Segundo documentos da Funai,
o índio tentou se matar: cortou o abdome com uma gilete, mas foi socorrido a
tempo. Meses depois fugiu do reformatório. Acabaria recapturado.
Em Resplendor, em paralelo à chegada dos
"delinquentes", dezenas de índios krenak habitavam as terras vizinhas
ao reformatório. Submetidos à tutela dos mesmos policiais responsáveis pela
instituição correcional, não tiveram facilidades. "Se percebiam alguém com
cheiro de pinga, prendiam mesmo. Seis meses, por causa de uma dose de
cachaça", relembra Zezão Krenak, um dos remanescentes.
Na Terra Indígena Krenak, homologada em 2001 no
município, muitos ainda têm histórias para contar sobre o período. "Uma
vez fiquei 17 dias preso porque atravessei o rio sem ordem, e fui jogar uma
sinuquinha na cidade", rememora José Alfredo de Oliveira, patriarca de uma
das famílias locais, num exemplo típico do que era considerado vadiagem.
Assim como em outras regiões do País, os krenak só
podiam deixar o território tribal com a autorização do chefe local da Funai. Mesmo a caça e a pesca fora dos
postos indígenas, não raro pequenos
e impróprios para prover a alimentação básica, podiam resultar em temporadas no
presídio.
No início dos anos 1970, a área do reformatório
vivia dias de intensa disputa, reivindicada por posseiros que arrendaram lotes
nos arredores. Como saída para o impasse, o governo de Minas Gerais e a Funai negociaram uma permuta entre as
terras e a Fazenda Guarani, localizada em Carmésia (MG) e pertencente à PM
mineira. Em 1972, o reformatório mudou de lugar.
No mesmo período mudou o chefe da Ajudância Minas-Bahia,
coordenação regional da Funai
responsável pelo reformatório. Quem assumiu o posto foi o juruna João Geraldo
Itatuitim Ruas, um dos primeiros servidores de origem indígena a ocupar cargos
de comando no órgão federal. "Imagina o que era, para mim, ouvir a ordem
do dia do cabo Vicente, botando todos os presidiários ern fila indiana, antes
de tomarem um café corrido, e falando que seria metido o cacete em quem andasse
errado. E que, para aquele que fugisse, havia quatro cachorros policiais,
treinados e farejadores, prontos para agir.
Ruas afirma ter procurado o ministro do Interior
Maurício Rangel Reis, morto em1986, para discutir o fim da instituição
correcional. Saiu do encontro, diz, sob ameaça de demissão. Mesmo assim, conta
ter começado a enviar, de volta às aldeias de origem, diversos dos confinados.
Perderia o cargo pouco tempo depois.
As últimas denúncias sobre o uso da Fazenda Guarani
como depósito de índios são do início dos anos 1980. No local vive hoje um
pequeno grupo pataxó fugido de conflitos fundiários na Bahia.
Longe de uma experiência isolada, o reformatório
Krenak representa a ponta do iceberg de um modelo de vigiar e punir imposto às
aldeias durante a ditadura. Em 1969, nasceram as Guardas Rurais indígenas (Grins), milícias armadas e
integradas exclusivamente por índios, responsáveis por ações de policiamento
nas áreas tribais.
Cabia a elas, segundo uma portaria da Funai, impedir o ingresso de pessoas
não autorizadas e a exploração criminosa dos recursos naturais nas aldeias.
Também eram responsáveis por "manter a ordem interna", coibir o uso
de bebidas alcoólicas e evitar "assaltos e pilhagens nas povoações e
propriedades rurais".
Em fevereiro de 1970, os primeiros 80 Grins se
formaram em Belo Horizonte. Vestidos com o uniforme oficial da guarda, em
patrióticos tons verde e amarelo, representantes de diversas etnias cantaram o
Hino Nacional, juraram à bandeira e fizeram demonstrações das técnicas
aprendidas no curso. O evento foi noticiado em todo o Brasil.
Não demoraria muito para que as Grins voltassem aos
jornais. Quatro meses depois, surgiram relatos de arbitrariedades cometidas
pelos índios soldados, na Ilha de Bananal. Um cabo acusado de vender bebida aos
índios, teria sido obrigado a praticar orgias sexuais na aldeia. A guarda teria
tentado ainda instituir uma casa de prostituição de índias no local.
Ao enxertar uma nova autoridade nas aldeias,
estranha às tradições locais, os mentores da guarda reacenderam conflitos entre
etnias. Por vezes, guardas de uma determinada tribo diferente eram colocados
para controlar uma totalmente distinta. "Chegou-se ao desplante de criar
as vilas Grins nas reservas, com luz e água encanada", completa Ruas,
sobre a segregação. "Um Grin ganhava 400 cruzeiros e a professora, 80.
Ofícios da própria Ajudância Minastatal sobre
atitudes inaceitáveis. Um dos casos registrados foi o de um maxacali, que em
maio de 1971, forçou relações sexuais com uma índia após ameaçar prender o
marido dela.
Alguns Grins foram recrutados diretamente entre
ex-internos do Krenak considerados leais, esforçados e disciplinados. "O
elemento está se recuperando dia a dia, tem trabalhado muito bem em todos os
serviços braçais. Está ansioso para ser colocado na Guarda Rural
Indígena", atesta ofício sobre um índio fulni-ô há 14 meses no
reformatório.
Eu gostava de ser policial, pois recebia as roupas
e os materiais. Só que os índios não gostavam. Polícia não é cultura do índio,
é do pessoal branco", comenta Totó Maxacali, um ex-miliciano, em sua casa
na Aldeia Verde, município de Ladainha (MG).
A falta de informacões sobre o reformatório e a
milícia incomoda novas lideranças como Douglas Krenak, ex coordenador do
Conselho dos Povos indígenas de
Minas Gerais, ele também vítima indireta do sistema. "Meu avô foi arrastado
aqui com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés, porque tinha saído da
aldeia", conta.
Casos de desaparecimento também são relatados. Um
deles é o de Dedé Baenã, índio originário do sul da Bahia cujo sumiço é narrado
por moradores em sua região de origem. Um ofício da Funai confirma que, em 1969, Dedé foi levado a Resplendor a pedido
de um funcionário do órgão, sob a acusação de ser um "índio-problema"
com vasto histórico de agressões a "civilizados". Nunca mais foi
visto.
Sobraram poucos documentos oficiais e quase não
existem relatos na mídia. Ao menos 120 indígenas
passaram pelo Krenak
Os confinados enfrentavam trabalhos forçados e
racionamento de comida. Muitos apanhavam ou eram arrastados por cavalos.
Campo de concentração. Qualquer motivo bastava para
as prisões. Milícias de índios vigiavam índios
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