Por Eliana Tavares, jornalista.
Até quando veremos, impávidos, o extermínio, sem fazer nada?
Quando
os portugueses chegaram à costa brasileira nada mais queriam do que
ouro e riquezas, da mesma forma que os espanhóis na região central de
Abya Yala. Dar de cara com outros povos, outra língua e outra maneira de
organizar a vida não causou problema. Eles tinham o poder das armas. E,
assim, pela força dos arcabuzes, impuseram um deus, escravizaram,
dizimaram, destruíram. A invasão de Pindorama nunca foi um “encontro de
culturas”. Foi genocídio. Naqueles dias, milhões de pessoas foram mortas
por conta da ganância dos estrangeiros. “Não têm alma”, diziam os
piedosos padres. Os que resistiram se embrenharam nas matas, fugiram do
litoral e conseguiram ficar à margem do extermínio por algum tempo. Mas
foi um curto período. Com a colonização, os portugueses abriram caminho
para o interior e nesse movimento tampouco pouparam pólvora. Os
indígenas eram apagados do mapa. Depois, com a chegada dos imigrantes,
novamente os indígenas passaram por violentas levas de extermínio.
O
tempo passou e as comunidades indígenas que sobreviveram foram travando
suas lutas. Houve páginas memoráveis de resistência. Na região norte,
de mais difícil penetração, muitos grupos conseguiram seguir com suas
vidas. Mas, no início do século XX, com a nova política de ocupação
nacional, os indígenas voltaram a ser contatados, dessa vez com menos
violência física, mas com a mesma intenção de negação da sua cultura e
do seu modo de vida. A proposta era a de integrá-los à vida nacional,
considerada “a civilização”. Apesar das boas intenções de figuras como o
Marechal Rondon, a decisão de integração era unilateral. Ninguém
perguntara aos indígenas se era esse o seu desejo. Era uma política de
estado e estava baseada na ideia de que o modo originário de vida não
era bom.
Na
verdade, essa proposta de integração forçada também se configurava uma
violência contra as comunidades. E, os que não aceitaram “se integrar”
ao “mundo civilizado” tiveram de se manter em “reservas”, lugares
previamente demarcados para sua “proteção”. Assim, aqueles que eram os
donos legítimos dessas terras passaram a viver de favor, confinados e
dependentes do governo em praticamente tudo, inclusive a comida. Não
bastasse serem tutelados, os indígenas acabaram na linha de fogo de uma
batalha contra aqueles que haviam se apropriado das terras: fazendeiros,
grileiros, latifundiários. Não foram poucos os conflitos que se
seguiram quando o Brasil decidiu ampliar sua fronteira agrícola. As
comunidades que estavam em áreas férteis logo passavam a ser acossadas.
Na região amazônica, as riquezas em madeira e biodiversidade tornaram a
área extremamente cobiçada e também nas profundezas da selva os
indígenas tiveram de enfrentar os mesmos inimigos de sempre:
missionários, grileiros, ONGs, os “bem-intencionados”.
Todas
essas lutas sempre se deram num contexto desigual. Primeiro, os
indígenas eram os selvagens que precisavam ser civilizados, depois eram
os preguiçosos que não queriam saber de trabalhar no mundo novo que tão
bondosamente tinha sido dado a eles. De um jeito ou de outro eram
apresentados à nação como seres inúteis, passíveis apenas de se manterem
como “coisa exótica”. Quando essas comunidades começaram a lutar, outra
vez, pelos seus territórios, toda essa carga de preconceito voltou à
tona. E os índios passaram a ser apontados como aqueles que impediam o
progresso do país. Garantir grandes extensões de terra a essa gente era
vista como um absurdo, afinal, eles não trabalhavam. Tal e qual os
portugueses de 1500, as gentes do poder seguiam olhando para os
indígenas como seres de segunda categoria, incapazes, atrapalhos, coisa
para ser aniquilada.
Ainda
assim as lutas prosseguiram. Na Constituição de 1988 as comunidades
indígenas lograram conquistar direitos. Seguiam ainda tuteladas, mas
consolidavam um espaço de disputa no qual já era impossível negar a
importância dessas gestes, de sua cultura e seu modo de vida, tão
absolutamente outro, diferente do proposto pelo modo de produção
capitalista hegemônico no mundo ocidental.
As lutas do presente
Quando
o século XXI alvoreceu, em todo o planeta assomava um movimento
gigantesco de recuperação da memória das culturas que foram oprimidas
pelo colonialismo europeu do período chamado de “modernidade”. Nos anos
90, ainda no século XX, comunidades do Equador invadiram o centro da
capital Quito, ocuparam igrejas e decidiram que tomariam a sua vida nas
mãos. Em 1994 os índios chiapanecos, do México, também se insurgiram, em
armas, tomaram cidades e decidiram que nunca mais o mundo viveria sem
tomar em conta as suas demandas. Depois, foi um espocar de lutas e
rebeliões por toda a faixa andina, na América do Sul, e nos cantões da
América Central, no Caribe, na América do Norte (Estados Unidos e
Canadá). O Brasil não ficou de fora. As comunidades, caladas por 500
anos, assomavam com suas palavras, seu mitos, sua cosmovisão. Queriam
gerir suas vidas e proteger seu território, sistematicamente consumido
pela voraz ambição do capital.
Para
esses povos a terra não é objeto de especulação, é espaço sagrado.
Terra é mãe da vida, água é morada dos deuses, bichos são parte de um
equilibrado sistema de sobrevivência. Essas coisas não tem preço, têm
valor.
Para
os homens do poder, esse movimento indígena é coisa que precisa ser
freada. Não aceitam entregar a eles o domínio sobre suas terras, até
porque muitas delas estão repletas de riquezas. Seus argumentos são
singelos: os índios não sabem proteger seus territórios, vendem madeira
por cachaça, não conhecem os instrumentos do progresso. Ou seja, não
teriam condições de gerir com sapiência, as terras que lhe são
confiadas. Assim, nada melhor do que eles, os capitalistas, para dirigir
e controlar os territórios. Eles são trabalhadores, empreendedores,
podem trazer o progresso, como é o caso das barragens que se constroem
na Amazônia. Isso é cuidar, isso é proteger, isso é dar função social
para a terra. E não essa ideia indígena de deixar a terra sem uso, que
segundo eles, é anti-progresso. E assim vai se fazendo a queda de braço,
tão desigual. Basta uma espiada na obra de Belo Monte para se ver os
estragos causados à mata, à biodiversidade, às famílias ribeirinhas. Os
índios resistem e são sufocados por armas e preconceito. E, na derrota
dos indígenas vem a miséria de todos os que por ali vivem, porque o
“progresso” dos capitalistas significa progresso apenas para alguns.
Não
bastasse toda a história de extermínio, preconceito e opressão, agora a
Advocacia Geral da União, órgão do governo, decidiu baixar uma portaria
que estende para todas as terras indígenas no país, as condicionantes
decididas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Judicial contra a
Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF). E o que
isso significa? Mais um golpe na vida dos 800 mil índios que ainda
resistem nesse país.
O Brasil na contramão
Concretamente,
as tais condicionantes permitem que as terras indígenas possam ser
ocupadas por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas
viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico,
sem que os indígenas sejam consultados sobre isso, coisa que contraria
frontalmente a Constituição e também a Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Da mesma forma permite que haja uma
revisão das demarcações em curso ou já efetuadas que não estejam dentro
dessas regras, mais uma vez violando a autonomia dos povos sobre os seus
territórios. Com isso, o governo tira das comunidades a possibilidade
de elas mesmas decidirem sobre as riquezas naturais que existem em suas
terras. Ou seja, entrega aos capitalistas o direito de explorar.
Outra
forma de pressionar as comunidades indígenas é a transferência, para o
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), do
controle das terras indígenas, sobre as quais, de maneira indevida e
ilegal foram sobrepostas Unidades de Conservação. Ou seja, de maneira
perversa buscam colocar os indígenas no papel de destruidores,
poluidores e invasores de áreas ambientais.
A
portaria 303, da AGU, é a forma moderna de dominação dos mesmos velhos
opressores. Se antes eram os arcabuzes, agora é a lei. E o que é mais
espantoso, uma lei que viola a Carta Magna. Ora, a decisão do STF só tem
validade para a área da Raposa Terra do Sol, e já foi uma grande
derrota dos povos indígenas. Por isso mesmo que a luta contra essa
decisão específica não acabou. Os indígenas que ali vivem seguem
questionando, em luta e na justiça, essa decisão. Ainda existem embargos
não julgados. Como então a AGU pode editar uma portaria estendendo as
condicionantes ainda não definitivas para as demais áreas? E quem disse
que a AGU tem poderes para isso? Só o Congresso Nacional pode legislar
sobre terras indígenas. A resposta só pode estar na pressão que vem
sendo feita pelos latifundiários e empresários que querem ocupar e
explorar as terras ricas em poder dos índios.
O
mundo moderno é um mundo em luta pela energia. Esgota-se o petróleo e
todo o modo de produção capitalista - que é destruidor na sua essência –
está em colapso. Por
conta disso, aqueles que detiverem o controle sobre a água e sobre a
biodiversidade serão, sem dúvida, os que dominarão o mundo. Não é sem
razão que grandes extensões de terras vêm sendo compradas por
investidores internacionais em regiões como o Pantanal, a Amazônia, o
Aquifero Guarani, justamente onde estão os indígenas “atrapalhando” o
processo de dominação dos recursos e das riquezas. O governo brasileiro,
seguindo a mesma mentalidade entreguista da maioria dos seus
antecessores, se dispõe a conceder direitos aos ditos “empreendedores”,
mais uma vez condenado os indígenas ao extermínio, e o povo em geral à
dependência.
A
se concretizarem os pressupostos da Portaria 303, qualquer terra já
demarcada pode ser revista e tirada das comunidades, basta que dentro
delas haja algo que seja do interesse dessa gente sempre pronta a sugar
as riquezas do país. E, esse tipo de coisa só acirra ainda mais os
conflitos existentes, nos quais as comunidades indígenas seguem em
franca desvantagem, entregando todos os dias, os seus mortos. Como
combater jagunços fortemente armados? Como se defender de milícias de
mercenários bem treinados, franco-atiradores, assassinos de aluguel? É a
história se repetindo.
Só a união de todos garante a vida
Para
a sociedade, o governo faz propaganda e usa dos meios de comunicação
mentindo descaradamente sobre diálogo e promoção de direitos indígenas.
Mas, na prática, a política segue sendo a do extermínio e do massacre
das culturas autóctones. Na contramão de tudo o que acontece na América
Latina, aonde os povos originários vão conquistando cada dia mais
direitos, o governo brasileiro caminha para o retrocesso, aliado ao
agronegócio e aos interesses internacionais, jogando o povo inteiro nas
malhas da eterna dependência.
É
preciso que as gentes brasileiras conheçam o que está por trás das
letras pequenas das leis. Que os sindicatos informem os trabalhadores,
que se faça uma aliança entre os trabalhadores da cidade, do campo e as
comunidades indígenas. Esses 800 mil índios que ainda resistem ao
massacre iniciado em 1500 são a nossa herança histórica, a célula mãe da
nossa cultura, legado imortal, parte constitutiva da nossa essência
como povo. Defender o seu direito de viver nas terras originalmente
ocupadas, de preservarem seu modo de vida, seus deuses, sua cosmovisão,
de gerirem suas riquezas dentro dos princípios que lhes são únicos, como
o equilíbrio ambiental e a reciprocidade, é garantir a possibilidade da
construção de outra sociedade, justa e soberana.
Não
é possível que as gentes brasileiras permitam que se entreguem as
nossas riquezas aos poderosos de plantão, aos estrangeiros, aos ditos
“arautos do progresso” que, na verdade, nada mais são do que os
destruidores da vida. As comunidades indígenas nos mostram que há outras
formas de vida, outro “progresso”, outro modelo de desenvolvimento.
Negar isso é compactuar com um crime, é agir como agiram os invasores,
os assassinos, é defender o massacre.
Já basta de sangue indígena em nossas mãos. Todo o repúdio a portaria 303.
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