A questão indígena no Brasil tem se
constituído, desde o início da década de 70 do século passado, em grande
obstáculo aos interesses de grupos econômicos que pretendem explorar os recursos
naturais, minerais, hídricos e as demais potencialidades e riquezas que as
terras brasileiras oferecem, especialmente para a agricultura e pecuária. Em
função disso, os povos indígenas que têm direitos sobre as terras que
tradicionalmente ocupam foram e continuam sendo brutalmente atacados,
violentados e desrespeitados.
Os governos que comandaram o país
independentemente de suas ideologias (ditatorial, capitalista, socialdemocrata,
socialista) ao longo dos últimos 40 anos executam políticas alicerçadas nas
ambições exploratórias das oligarquias regionais e das empresas transnacionais,
o que desencadeou um intenso processo de devastação e violações dos direitos
humanos. Os que governaram e governam são, portanto, responsáveis pela dizimação
de dezenas de povos, bem como pelas demais práticas de violências desencadeadas
contra os mais de 240 povos indígenas que habitam o
país.
Embora, ao longo dos últimos 25 anos,
tenham ocorrido avanços na legislação indigenista especialmente no tocante ao
reconhecimento da diferença e ao direito à demarcação e garantia das terras –
como bem explicita o Artigo 231 de nossa lei magna quando afirma:
“São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários s obre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens” – percebemos que o direito à terra, para a maioria dos
povos e comunidades indígenas, vem sendo negligenciado. Além desta determinação
constitucional, há também nas disposições transitórias de nossa lei maior
(artigo 67) a determinação de que todas as terras indígenas deveriam ser
demarcadas no prazo de cinco anos (portanto, até 05 de outubro de 1993).
Passados 24 anos desde a promulgação do texto da Constituição, só 361 terras
tiveram seus processos concluídos. Outras 339 sequer tiveram providências
iniciadas.
O governo Lula, de quem mais se
esperava ações em defesa dos direitos sociais, homologou apenas 88 terras
indígenas. A sua sucessora, também do Partido dos Trabalhadores, em quase dois
anos de mandato, homologou apenas 10 terras indígenas.
Respaldada na morosidade e omissão
governamental, vem sendo desencadeada pela CNA (Confederação Nacional da
Agricultura e Pecuária) uma intensa campanha contra os direitos constitucionais
dos povos indígenas, dos quilombolas, bem a recente desfiguração do Código
Florestal. Tais iniciativas contam com amplo apoio de parlamentares ligados ao
agronegócio, instalados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. No tocante
aos direitos indígenas, o objetivo principal dos latifundiários é tornar sem
efeito o dispositivo constitucional que declara como nulos os títulos de
propriedade que incidem sobre as terras de ocupação indígena e que também
estabelece a competência privativa da União para demarcar estas terras, proteger
e fazer respeitar os bens que estão sobre elas.
A campanha antiindígena é referendada
por variados segmentos políticos, econômicos e sociais, dentre estes setores
pode-se citar o PT, partido político que historicamente fazia a defesa dos
direitos indígenas no Congresso Nacional, mas que hoje, sendo o que ajuda a
gerenciar o país, tornou-se aliado das oligarquias regionais e faz, de modo
irrestrito, o apelo pelo desenvolvimentismo a qualquer custo. Nesta agremiação
política, salvam-se alguns poucos parlamentares que ainda se indispõem com o
partido e cobram soluções para as demandas dos povos
indígenas.
Neste contexto, o direito à terra tem
sido não apenas negligenciado, mas veementemente contestado, especialmente em
estados que afirmam ter vocação para a produção agropecuária e que, por isso,
buscam estender ao máximo os limites dos latifúndios. É o que ocorre hoje, por
exemplo, em Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os
principais argumentos utilizados para colocar em questão o direito dos povos
indígenas – e particularmente dos Guarani-Kaiowá e dos Guarani – às terras
tradicionais podem ser resumidos em quatro enunciados, sendo dois deles herança
do ideário ditatorial dos anos 1970, reeditados hoje com uma nova roupagem: o
primeiro é o de que seria muita terra (produtiva) para pouco índio – tese
retomada para dizer que não haveria interesse em assegurar o direito de usufruto
exclusivo sobre as terras, posto que estas são pretendidas para a produção em
larga escala. A menção a dados estatísticos e quantificações é uma das
principais estratégias usadas para conferir legitimidade aos discursos de
setores ruralistas, que tem na senadora Kátia Abreu uma das principais
porta-vozes. Em seus últimos pronunciamentos, a parlamentar, que é também
presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, faz questão de
divulgar dados sobre a população indígena brasileira e extensão de terras
demarcadas e a demarcar, reativando a tese de que se trata de “muita terra para
pouco índio”.
O segundo argumento usado para
contestar o direito indígena apregoa que os procedimentos de demarcação das
terras destes povos ferem o estado democrático de direito e criam insegurança
jurídica, já que os títulos de propriedade sobre certas terras (indígenas) foram
adquiridos por terceiros antes da promulgação da Constituição. Vale lembrar que
os povos indígenas têm direito originário e inalienável sobre suas terras, e
mesmo que tal direito tenha sido reconhecido na Constituição de 1988, diz
respeito a algo que antecede a formação do estado nacional.
O terceiro argumento é o de que os
indígenas estariam sendo manipulados por ONGs e pela Funai, o que reacende a
tese da incapacidade destes povos para definir suas demandas e reivindicações e
para traçar com autonomia as estratégias de luta pela garantia de seus direitos.
Por fim, o quarto argumento é o de que a Fundação Nacional do Índio seria
incapaz de interpretar os “verdadeiros” anseios destes povos e comunidades, que
reivindicariam assistência e benevolência e não a demarcação de suas terras. Tal
reivindicação se fosse real, seria equivalente a dizer que os índios abrem mão
do controle de seus territórios para viver do assistencialismo e das migalhas
deixadas para eles.
Os argumentos rearticulados na
atualidade para contestar e desautorizar os processos demarcatórios evidenciam
que é a terra, inegavelmente, a grande questão do presente. O que se tem hoje é
uma ênfase na exploração desenfreada dos recursos naturais e, em decorrência, o
acento na expansão das fronteiras agrícolas, na produção em larga escala e no
fortalecimento cada vez maior do agronegócio, o que configura uma espécie de
“etapa II” do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC, assentada
fundamentalmente sobre a terra. Sob essa perspectiva, a construção de obras de
infraestrutura (hidrelétricas, estradas e rodovias, portos) serve, entre outras
coisas, para favorecer o escoamento de uma produção que se planeja ampliar cada
vez mais, ocupando nichos de mercado abertos pela crise agrícola estadunidense e
pelos acordos estabelecidos com a China, por exemplo. Trata-se, então, de
garantir infraestrutura, incluindo-se aí terras amplas e produtivas para suprir
as atuais demandas do agronegócio. E isso se expressa hoje, de modo contundente,
no estado de Mato Grosso do Sul quando se contesta com tanto ardor as
demarcações das terras dos Guarani-Kaiowá.
O modelo da produção em larga escala é apresentado como
o único possível, um destino promissor, uma forma de alavancar o desenvolvimento
e conduzir o Brasil, com segurança, para um novo patamar na estrutura econômica
e na ordem global. Ocorre que, longe de ser um modelo de redistribuição e de
promoção da justiça social, ele acirra e potencializa desigualdades,
especialmente porque se estrutura sob bases concorrenciais. Olhando para as
formas de produção agrícolas praticadas no Brasil – de um lado o agronegócio, de
outro a produção baseada na agricultura familiar, a produção respaldada por
modelos de posse coletiva da terra, a partir de um equilibrado manejo dos
recursos naturais, entre outras – deve-se perguntar: qual destes estilos de
produção tem condições de competir, de concorrer, de responder a uma demanda
de alta lucratividade que se supõe necessário para o desenvolvimento do país?
Aqui, a resposta é óbvia!
Um exemplo da clara opção pelo
agronegócio é a reportagem publicada na revista Dinheiro Rural (a revista do
agronegócio brasileiro), edição de outubro de 2012, na qual se celebra as
expectativas de crescimento para as safras de grãos no país, decorrentes da
grande seca que assolou a agricultura norte-americana. De acordo com a
reportagem, o plantio da soja, em especial, se expande por sobre áreas de
pastagens, de plantio de outros alimentos, incluindo ainda aquelas áreas
desmatadas da Amazônia, tudo isso para assegurar uma safra
recorde.
Em destaque na mesma revista são
apresentadas as cifras que têm sido geradas pela exportação de grãos, feita por
grandes aglomerados, tais como o grupo Bom Futuro, de Eraí Maggi Scheffer. A
cadeia produtiva do milho movimentou cerca de 20 bilhões de reais e da soja 22
bilhões. Reclama-se, então, para esses cultivos, maiores investimentos públicos
e infraestrutura para a ampliação da produção.
Outra reportagem deste periódico mostra
que, respondendo às demandas por crédito, a Caixa Econômica Federal vai abrir
linhas de financiamento específicas para o agronegócio. Segundo o Ministério da
Agricultura (citado na reportagem) o governo vai liberar 115,2 bilhões para a
agricultura empresarial por meio do Plano Safra 2012/2013. “Desses recursos, 86
bilhões serão destinados ao custeio e à comercialização. Outros 28,2 bilhões vão
para investimentos. Para alcançar tal cifra, o governo não apenas aumentou a
dotação orçamentária como também reduziu em 18,5% os encargos financeiros de
suas linhas de créditos para custeio, comercialização e investimento” (Dinheiro Rural, 96- out. 2012, p.
101).
Obviamente não se cogita a hipótese de
que seja muita terra sob o controle de grandes produtores de grãos,
particularmente de soja, ou de que os incentivos do governo sejam restritivos,
porque neste caso supõe-se que estas seriam as prioridades do país para a
exploração de seu potencial agrícola e de exportação. Também não se questiona a
monocultura de cana-de-açúcar ou os desertos verdes de eucalipto, porque estes
também se enquadram na lógica de maximização do lucro e da produção.
As pautas de crescimento e as demandas
dos setores que mais tem enriquecido nos últimos anos – a exemplo dos
banqueiros, dos latifundiários, dos grandes produtores – são apresentadas como
se fossem iniciativas que visam o bem-estar maior da nação. Do mesmo modo, é em
nome da legalidade, do Estado de direito e dos interesses “maiores” da nação que
se defende os investimentos de recursos públicos em obras que terão, em grande
medida, finalidades privadas. Também nesta lógica é que se perdoam as dívidas de
grandes empresários e se amplia a dotação orçamentária para os negócios da
agricultura enquanto se restringem os das demandas sociais. E assim, quando há
reivindicações de indígenas, quilombolas e de outras comunidades para a garantia
da terra, bem que gera a vida, estes segmentos são criminalizados e sua luta
pelo cumprimento de preceitos constitucionais é caracterizada como sendo
geradora de insegurança jurídica, como ilustra a Campanha da CNA, referida
anteriormente. Contudo, é o desrespeito aos preceitos constitucionais
estabelecidos no Artigo 231, isto sim, gerador de insegurança jurídica. Como
manter a confiança em instituições que selecionam quais artigos da Constituição
devem ser resguardados e quais podem ser negligenciados?
Os povos indígenas têm sido, mais do
que nunca, considerados entraves ao modelo desenvolvimentista que se pretende
implantar. Não é à toa que, há anos, o Mato Grosso do Sul lidera o ranking de
violências, particularmente no tocante a assassinatos, lesões corporais e
suicídios. Aliás, um dos efeitos mais visíveis da precarização das condições de
vida dos Guarani-Kaiowá é o alarmante aumento no número de suicídios,
praticados por uma parcela muito jovem da população.
Entre 2000 e 2011, segundo dados do Ministério da Saúde, foram registrados 555
casos, uma taxa que supera 62 casos por 100 mil habitantes. Para a OMS
(Organização Mundial da Saúde),
um índice de 12,5/100 mil já é considerado muito
alto.
A escassez de terra e a morosidade
nos procedimentos de demarcação são a causa principal das violências praticadas
contra os indígenas. Nos governos petistas dos últimos anos registram-se os
menores investimentos e ações para a garantia desse direito. Especificamente
para os Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, entre 2004 e 2009 o governo Lula
demarcou apenas quatro áreas, correspondendo apenas a 17.164 hectares. Nos quase
dois anos do governo Dilma, nenhuma área foi demarcada.
Isso demonstra, por um lado, a conduta
do Governo Federal de desrespeito sistemático aos direitos indígenas e, por
outro lado, a tendência de fortalecimento do agronegócio, que se esparrama sobre
as áreas indígenas que o mesmo governo recusa-se a demarcar. O resultado dessa
relação governo-agronegócio é o agravamento dos conflitos e das
violências.
Porto Alegre, RS, 06 de novembro de
2012.
Roberto Antonio
Liebgott
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