Por Renan Antunes de Oliveira
Assassinado
a golpes de facão por jagunços, o índio guarani-kaiowá Teodoro Recalde
foi perseguido além da morte: um fazendeiro queria deixá-lo apodrecer na
beira da estrada, nos grotões do Mato Grosso do Sul
Me
contaram que cinco indiozinhos esperavam pelo pai na aldeia Y’poi, ao
cair da noite em que o mataram, a terça-feira 27 de setembro de 2011.
Teodoro
Recalde saiu ligeiramente bêbado de um boteco em Paranhos, cidade na
fronteira do Paraguai. Disse a companheiros de trago que queria “voltar
pra casa mais cedo” porque levaria pão e refrigerante para os filhos.
Talvez
o álcool tenha feito este índio guarani kaiowá de 33 anos ignorar os
jagunços que ainda hoje cercam sua aldeia – ela fica num lote ocupado
pela tribo em 2009, dentro da fazenda São Luiz, no Mato Grosso do Sul.
O
bloqueio já dura três anos. A ordem do cerco é do dono da fazenda, dom
Fermino Aurélio Escobar, de 80 anos. Ele já tentou sem sucesso expulsar
os kaiowá pela força e pela fome, enquanto busca obter uma ordem
judicial de despejo.
Para
voltar o índio deveria ter esperado a escuridão da madrugada e usar uma
rota protegida por baixadas e riachos, cortando caminho com cautela
pela fazenda vizinha, a Cabeça de Boi.
Tanto
esforço para se chegar numa aldeia pra lá de miserável. É composta por
meia dúzia de barracos de plástico. Não tem luz nem água.
Está
fincada numa nesga de mato inservível para pastagens – a fazenda São
Luiz que a cerca é do tamanho de dois mil campos de futebol, com mil
cabeças de gado gordo.
O CRIME
“O
melhor caminho para a Y’poi seria cruzar a fronteira para o lado
paraguaio, aumentaria a caminhada em quatro quilômetros, mas evitaria os
jagunços”, ensina o cacique Anastácio Peralta. “Nosso irmão deveria ter
sido cuidadoso”, lamenta.
Ainda
no boteco, quando o índio anunciou que tentaria furar o bloqueio,
alguém o avisou com um “abre o olho Teodoro”. Sem demonstrar medo ele
começou meio trôpego sua última caminhada, na companhia de duas mulheres
da tribo – é delas o relato do crime.
Aconteceu quando eles estavam quase chegando na aldeia. Foram descobertos pelos jagunços, liderados por um apelidado “Negão”.
O encontro fatal se deu na rota mais conhecida, a baixada perto do riacho da fazenda Cabeça de Boi.
Montado
num cavalo escuro da raça quarto de milha Negão atacou sem aviso.
Golpeou o índio com porrete e facão, várias vezes, até deixá-lo
sangrando e inconsciente. Em pânico, as mulheres correram para a aldeia.
A AGONIA
Teodoro
Recalde agonizou sozinho e morreu em algum momento da quente noite de
27 de setembro de 2011 – na manhã seguinte, quando o corpo foi
encontrado, o pão e o refrigerante, que levava para os filhos, tinham
sumido.
As
mulheres podem ter sido poupadas para contar o que viram e assim
infundir terror na pequena aldeia Y’poi – a idéia é fazer com que a
tribo abandone a fazenda São Luiz.
Quando
elas chegaram com a notícia do crime, lá pelas 10 da noite, o resultado
foi oposto – afinal, Teodoro Recalde já era o terceiro assassinado no
pedaço.
O
cacique Rodolfo pegou o celular e disparou telefonemas, alertando
outros índios do crime: “Está acontecendo de novo, mataram mais um irmão
nosso”.
KURE! KURE! KURE!
Antes
de continuar é preciso contar uma pequena história paralela: a do
assassinato em 31 de outubro de 2009 de dois primos de Teodoro Recalde,
os professores Rolindo e Genivaldo Verá.
Eles lideraram a invasão Y’poi em 27 de outubro – quatro dias depois morreriam por causa dela, mártires da luta guarani kaiowá.
Os
dois primos levaram pra Y’poi 50 indígenas da aldeia Pirajuy, em sua
maioria velhos, mulheres e crianças – guiados por seu Mário Verá, de 89
anos.
Quando
eles acamparam naquele lote no cocoruto de um morro, o capataz da São
Luiz ligou para o patrão Escobar por celular. O pai chamou três filhos,
Rui, Evaldo e Fermino Filho, três cinquentões sarados.
Eles
acionaram a prefeitura e o Sindicato Rural de Paranhos para pedir ajuda
aos vizinhos e organizar o despejo: o lema deles é “um por todos e
todos por um”.
No
dia seguinte, dois cavaleiros da fazenda São Luiz fizeram o
reconhecimento do terreno ocupado. Constataram que os índios estavam
desarmados.
O
presidente do sindicato e vereador Moacir Macedo circulou pela cidade
de megafone contratando peões e jagunços paraguaios para o despejo – por
lá, o pessoal primeiro tenta resolver a coisa com sua milícia
particular, só se falhar é que vai à Justiça.
O
prefeito Dirceu Bettoni participou da logística da batalha que logo
aconteceria cedendo um caminhão F4000 branco, da secretaria de
Agricultura – transporte para os jagunços.
No sábado 31 de outubro Rui, Evaldo e Fermino Filho se reuniram com Moacir e sua tropa de jagunços num galpão da São Luiz.
O
pessoal foi armado com porretes, espingardas e pistolas – com ao menos
uma Luger calibre 9mm, a preferida dos nazistas, capricho que mais tarde
permitiu aos peritos da Polícia Federal identificar seu dono: Fermino
Aurélio Escobar Filho.
A tropa teve churrascada com muita cerveja e cachaça. De barriga cheia, o pessoal descansou um pouco na sombra do galpão.
Lá
pelas três da tarde os jagunços já estavam recompostos e receberam a
ordem de atacar – por todos os relatos, foi Rui Evaldo Nunes Escobar
quem liderou o ataque.
Os
jagunços foram até perto do pé do morro, desembarcaram do caminhão da
prefeitura e entraram no mato para “atacar a aldeia de forma covarde e
violenta”, como mais tarde descreveu o promotor Thiago Luz, do
Ministério Público Federal, na denúncia contra os atacantes à Justiça.
A
PF ouviu testemunhas: “Eles entraram gritando “kure” (ofensa em
guarani, significa porco) enquanto davam tiros para o alto e na direção
das pessoas”.
No ataque, “atingiram o idoso Mário Verá com uma paulada” e “alguém acertou um tiro nas costas de Genivaldo”.
Sem
nenhuma chance de revidar, os índios debandaram. Depois que os
atacantes se foram eles voltaram para resgatar seus feridos. O corpo de
Rolindo nunca foi encontrado. O de Genivaldo, furado de bala, seria
recolhido uma semana depois no fundo de um riacho.
Denunciados
pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário, órgão da Igreja Católica),
os assassinatos ganharam repercussão internacional.
O
Tribunal Regional Federal da 3ª Região ordenou um cessar-fogo,
permitindo a permanência da tribo na aldeia Y’poi até a Funai provar que
a terra pertenceu aos guaranis – o processo burocrático começou antes
de os índios ocuparem a terra e se arrasta há sete anos.
Lula
incluiu a aldeia no Plano Nacional de Proteção aos Defensores de
Direitos Humanos (PPDDH), sob supervisão da Secretaria de DH da
Presidência da República, mas nos grotões esta medida nada vale.
A
Justiça levou dois anos para acolher a denúncia do MPF contra a
filharada do velho Escobar. O caso está parado na 1a Vara Federal de
Ponta Porã. Os réus estão soltos.
Como
o fazendeiro não conseguiu expulsá-los pela força, então proibiu a
entrega de cestas básicas aos índios pela Funai. Até hoje o dia a dia da
aldeia Y’poi por comida é um jogo de gato e rato.
Para
cumprir sua própria lei, os Escobar fecharam a fazenda São Luiz com um
cordão de jagunços, entre eles Negão – o que nos leva de volta ao crime
de Teodoro Recalde.
O COMPLICADO RESGATE DO CADÁVER
Quando as mulheres deram a notícia do ataque, a tribo não tinha como ir socorrê-lo, nem como resgatá-lo depois de morto.
O
cacique da Y’poi fez o que um branco faria: chamou a polícia. Neca. Ele
então pediu socorro a padres católicos e pastores evangélicos.
Os
padres chamaram “seu João”, o chefe da Funai em Paranhos. Só na manhã
seguinte aquele diligente funcionário conseguiu uma equipe para resgate.
Com as dicas das mulheres, a polícia chegou ao cadáver.
Morto, Teodoro Recalde era o improvável mártir da hora da causa indígena.
O HOMEM ERRADO
Em vida, ele não era militante-alvo. As lideranças são as mais visadas nos ataques de jagunços.
Ele
fazia o tipo desligadão. Fumava muita maconha paraguaia, quase de graça
por lá. Tinha levado a família para a Ypo’i por insistência da irmã,
uma guerreira quando se tratava de cuidar dos cinco filhos dele.
Passava
o tempo todo fora da aldeia, fazendo bicos nos canaviais ou bebendo nos
botecos – não era nem um invasor tipo aqueles de exibir arco e flecha
para fotógrafos ou cantar gritos de guerra ante câmeras de TV.
O
pessoal do CIMI acha que Teodoro Recalde foi morto não só pela ousadia
de tentar furar o cerco, mas sim por ter sido confundido com um cacique.
O
delegado PF Guilherme Santana, que investiga o caso de terno e gravata
naqueles grotões, disse que já viu “muitos casos de assassinato de
índios que parecem coisa de jagunços, mas não são, e outros que parecem
coisa dos próprios índios, mas que são de jagunços”.
As duas índias moram na aldeia e sabem bem a diferença.
Elas
testemunharam contra o jagunço Negão na delegacia da Polícia Civil de
Paranhos. Deram detalhes até da cor do cavalo – por lá, as pessoas
identificam os animais dos vizinhos assim como na cidade se reconhecem
carros nas garagens dos condomínios.
O
delegado local não saiu à cata do acusado porque isso seria função da
Polícia Federal, que por sua vez só apareceu três dias depois do
enterro.
A
PF começou no caso devagar quase parando, entrevistando os policiais da
delegacia de Paranhos no maior sigilo, para não melindrar os colegas.
Enquanto
isto, o jagunço Negão, visto nos botecos da cidade no mesmo cavalo
algumas horas depois do crime, sumiu de vez. O cavalo também.
“NÃO QUERO
ESTE ÍNDIO VAGABUNDO
ENTERRADO AQUI”
ESTE ÍNDIO VAGABUNDO
ENTERRADO AQUI”
Fazendeiro Fermino Todoro Recalde |
A
PF patinou na primeira versão dada pelas índias. Os agentes não
gostaram porque elas só falavam guarani e eram traduzidas por um cacique
que eles consideraram “hostil”: sabe-se lá qual é a guerra dos
federais.
Um índio de fora da aldeia foi contratado para interrogá-las. Assustadas pelo desconhecido, as índias ficaram de bico calado.
Um
agente da PF disse que “as índias mentem para ajudar na causa deles de
retomada da terra”. Pedindo confidencialidade, ele diz ao repórter que
“estes índios da Y’poi são matreiros, jogaram ossos de antepassados,
desenterrados de outro local, no solo da fazenda São Luiz, para que eles
fossem encontrados pelos antropólogos da Funai e assim provar que eram
terras ancestrais”.
Com
esta linha de investigação, fica fácil fazer um update em 4 de novembro
de 2012: o crime de Teodoro Recalde ainda não teve solução.
CAIXÃO DE 800 REAIS
O
corpo dele foi para a funerária Pax Vita, de Paranhos, e dali para uma
autópsia na cidade vizinha de Ponta Porã. Confirmado, morte por pauladas
e facadas.
A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) pagou a conta de 800 reais pelo caixão.
No fim do mesmo dia as autoridades liberaram o corpo para o enterro – foi quando começou um drama dentro do drama.
Os índios foram barrados na tentativa de sepultar Teodoro Recalde na Y’poi, a “teko-há”, terra sagrada deles.
Jagunços
impediram a passagem do cortejo fúnebre pela São Luiz – fecharam a
porteira mesmo com a presença da Funai, da polícia e, última ofensa,
ante o caixão.
“Dei
a ordem porque eu não queria aquele índio vagabundo enterrado na minha
fazenda”, admite sem rodeios o fazendeiro Escobar, pai.
O
impasse espantou até os advogados do CIMI, acostumados com tudo. A
Funai recorreu à Justiça. Um pedido foi levado com urgência à 1ª Vara
Federal de Ponta Porã, a mesma onde corre a ação de despejo da aldeia.
Enquanto
se dava a batalha legal, o corpo rolou dentro de uma camionete, sem
destino, por 48 horas, até sair a ordem judicial obrigando o fazendeiro a
permitir o enterro na Y’poi.
O
precedente de sepultamento em terra disputada foi considerado afronta
pelos fazendeiros da região, solidários com a decisão do patriarca dos
Escobar.
Dom Fermino curvou-se à Justiça, mas não sem resmungar: “Por mim poderiam jogar o corpo na beira da estrada”.
“ESTA TERRA É MINHA”, DIZ O FAZENDEIRO
A história não pode continuar sem que os leitores tenham um breve perfil deste homem.
Ele
é muito respeitado no pedaço, se não o mais. Invoca direito ancestral
branco: “Herdei tudo do meu pai, Romão, que herdou do meu avô, Miguel”,
este um espanhol que segundo vários relatos chegou a Paranhos em 1886,
depois que a Guerra do Paraguai quase dizimou os guaranis. Escobar quer
deixar tudo para os filhos: “Esta terra é minha”, afirma, com orgulho.
O
patriarca conta que “no tempo do meu avô os índios não eram problema”.
Ele também gosta de apontar para um ponto atrás de um galpão e dizer
“minha mãe está enterrada ali” – dois argumentos usados no processo de
despejo dos índios.
O homem chega para entrevista montando um cavalo quarto de milha de pelo claro. É forte, atarracado, muito branco.
Apesar de tantas décadas na região, ainda fica vermelho quando pega sol.
Ele
jura que na terra dos guaranis não tinha nenhum guarani: “Nasci aqui em
1932 e não havia índio naquele tempo, estes da Y’poi vieram do Paraguai
para me tomar a terra”.
Neste
ponto da fala ele gesticula como se estivesse suplicando, franze o
rosto, pede compaixão aos interlocutores: “Estes índios estão fazendo
minha vida um inferno, outro dia me roubaram uma vaca”!
Escobar
se recompõe e avisa: “Assim não posso continuar trabalhando aqui”. Aí
ele informa que comprou uma fazenda maior ainda, na Amazônia,
supostamente para escapar dos guaranis que lhe roubaram a tal vaca.
Escobar
fala o que lhe dá na telha. Para o delegado PF Santana ele disse “me
ajude a me livrar deste problema que então eu posso ajudar vocês”,
parando segundos antes de oferecer propina ao delegado para despejar os
índios.
Sem
que ninguém lhe pergunte ele diz que a morte de Teodoro Recalde “foi
coisa de briga entre cachaceiros” – já tentando salvar a pele dos
filhos.
É que poucos dias depois desta entrevista os três filhos dele seriam acusados pelo MPF do crime contra os professores.
Fácil constatar que por ali só os Escobar têm interesse no despejo da Y’poi, além da provada ousadia de fazê-lo pela força.
NA CASINHA DA FUNAI
O
último ato antes do sepultamento de Teodoro Recalde aconteceu na sede
da Funai, em Paranhos – nessa cidade com megaconflitos, ela é apenas uma
meia-água. Chove dentro. Com certeza os banheiros do Ministério da
Justiça, que dirige o órgão, são mais amplos, mais limpos, mais seguros e
mais bem equipados.
O
encarregado naqueles dias do enterro era o tal seu João que resgatou o
corpo. Ele não disse o sobrenome para não se comprometer – circulava
incógnito na cidade.
Temia
pela vida e pela reputação: implorou para não sair em reportagens
porque queria ser transferido. Ele se queixa que em Paranhos precisa
estar em sintonia com a prefeitura e com as autoridades estaduais, estas
francamente contra a causa indígena.
“O
conflito de interesses paralisa minha repartição”, desabafa – quais
serão as qualificações exigidas e como será que alguém é escolhido para o
cargo dele são mistérios.
Depois que a Funai obteve a ordem judicial para o enterro, seu João despachou o caixão do índio guarani para a aldeia Y’poi.
Choveu um pouco na manhã daquele sábado, primeiro de outubro de 2011.
A cerimônia foi rápida.
Não teve seu João, nem padre, nem pastor – mas teve pajé.
Os filhos choraram a morte do pai.
Alguém tirou as fotos que ilustram esta reportagem.
Elas
mostram que o guarani kaiowá Teodoro Recalde foi para sempre sepultado
na sua tekohá, coberto pela terra que nunca lhe pertenceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário