“... chame-lhe progresso quem do extermínio secular se ufana; eu, modesto cantor do povo extinto, chorarei nos vastíssimos sepulcros que vão do mar aos Andes e do Prata ao largo e doce mar das Amazonas”. (Antônio Gonçalves Dias – Os Tymbiras, canto III. Citado no Documento Y-Juca-Pirama, o índio: aquele que deve morrer).
O que dizer nos 40 anos do Cimi que não seja apenas congratulações e reconhecimento de um trabalho de solidariedade integral aos povos indígenas, cujos resultados são visíveis, louváveis e da maior importância na sociedade brasileira racista e antiindígena? Por que isso tudo seria apenas, ao manter-se a formalidade da homenagem.
Vou destacar em primeiro lugar algumas dimensões da solidariedade integral aos povos indígenas. A dimensão política, aquela que fez do Cimi protagonista de uma árdua batalha para convencer a sociedade brasileira de que os povos indígenas possuem direitos, pois são os habitantes originários dessa terra e são sujeitos ativos na vida sócio-política brasileira. O protagonismo do Cimi levou a construção de um campo jurídico que atualizou os elementos componentes do direito indígena, de maneira inovadora, até a instituição de uma assessoria jurídica que os povos indígenas não possuíam até então. Muitos juristas envolveram-se com a causa indígena e foram decisivos nos debates e nas formulações teóricas e ideológicas. Como furar o cerco da tutela sem perder direitos e, mais do que isso, conquistar direitos ainda não explicitados? Não foi o Cimi que promoveu exclusivamente esse debate, mas foi o Cimi que ousou formalizar uma assessoria jurídica , até hoje inédita nas organizações indígenas e indigenistas; e que produz uma reflexão jurídica da maior importância. Há outras ações inéditas, igualmente importantes, tais como uma imprensa voltada exclusivamente para os assuntos indígenas e o envolvimento pioneiro com as questões da educação e da saúde indígenas.
O aspecto, jurídico, é parte essencial da trama política que envolveu o conjunto dos missionários na luta de solidariedade aos povos indígenas. A coragem de embrenhar-se nas matas através de caminhos cheios de armadilhas e emboscadas, enfrentando a morte, as feridas e o medo, tornou os missionários o grupo de referência em todas as regiões do Brasil. Isso sem falar no carinho e nos laços de amizade estabelecidos entre os missionários e os indígenas, mesmo que em certas ocasiões e circunstâncias esses laços tenham se transformado em relações conflituosas. É importante destacar essas relações conflituosas porque nelas reside uma essência valorativa que opõe e nega as benesses monetárias das “mitigações” para não entregar o bem maior que é a terra. No âmbito dos movimentos sociais, da ação parlamentar, das universidades, das ONGs, das paróquias, das dioceses está sempre o Cimi a estabelecer parcerias, a articular aliados e a colocar pedras nos sapatos daqueles que querem “uma paz sem índios” ou “índios sem problemas”.
Porém, as dimensões social e política mais importantes residem na contribuição decisiva para a construção do movimento indígena. Quando os primeiros missionários esforçaram-se para realizar a primeira Assembléia de Chefes Indígenas plantaram a semente do processo de rompimento da solidão social e política na qual viviam os povos indígenas no Brasil.
A política indigenista republicana, formulada em 1910, além de colocar em prática os instrumentos integracionistas, consistiu em manter a população indígena sob controle absoluto. O principal instrumento integrativo foi conduzir os indígenas para atividades produtivas consideradas trabalho de fato: a agricultura indígena deveria ser modificada, tanto em termos dos produtos cultivados, quanto em termos das técnicas agrícolas. Assim, tratores e plantadeiras manuais são introduzidos nas áreas para que os indígenas aprendessem a trabalhar; como a produção também deveria ser comercializada o SPI instrui seus servidores a arregimentar os indígenas para o trabalho nos grandes roçados, sob controle dos Chefes de Posto mediante promessa de divisão dos rendimentos após a comercialização da produção; assim os indígenas aprenderiam novas técnicas e novas modalidades sociais, como esse arremedo de trabalho assalariado que sempre foi mais um modo de trabalho escravo. O controle das áreas indígenas, chamadas reservas, abrangia também a mobilidade espacial: para sair da aldeia os indígenas necessitavam de uma autorização por escrito emitida pelo Chefe de Posto, que, desse modo, dominava o conjunto de informações necessárias para controlar todas as atividades individuais e coletivas dentro e fora das aldeias. Não raro o Chefe de Posto negava a autorização para a saída de indivíduos ou famílias. Esse dispositivo disciplinar, sustentado pela necessidade de exercer a tutela, tornou-se a estratégia de controle mais eficaz para cassar a voz política dos povos indígenas. Cada comunidade, considerada um todo indissolúvel e fechado, constituía uma unidade cultural idiossincrásica, isto é, portadora de um particularismo sem comparação com outras comunidades.
Desse modo, cada comunidade recebia uma parcela de terra proporcional ao número de famílias que receberiam o tratamento civilizador apregoado pelo Estado: a preservação de línguas e hábitos culturais, o não desmembramento das famílias; apenas se ensinaria aos indígenas a trabalhar para que pudessem se preparar para a integração na sociedade nacional.
O controle era exercido, portanto, sobre uma ou poucas comunidades que viviam dentro do limite da reserva, cujo perímetro era definido pelo SPI, tendo em vista a integração, isto é, a saída da área, a saída da condição indígena, e não o futuro da comunidade, reproduzindo e aumentando sua população. Assim, aqueles que migravam, para outros sítios ou para as cidades “dispensavam a proteção” do Estado e passavam a viver a outra forma da solidão social: o ocultamento de sua condição indígena. Dentro do limite das reservas funcionários do Estado foram investidos de uma autoridade que possibilitou toda sorte de desmandos: o Chefe de Posto contratava funcionários braçais assalariados, regulava o uso dos recursos designados para aquela área e promovia a eleição do Capitão ou Cacique que deveria responder por toda a comunidade. Assim, em volta do funcionário chefe formava-se uma escuderia disciplinadora, totalmente manipulada, formando uma hierarquia política, funcional e autoritária.
Esses capitães permaneceram no controle de muitas áreas indígenas até os dias de hoje, obrigando as comunidades a votarem num chefe que nunca correspondeu ao modelo político tradicional. Ao contrário, eles eram e ainda são os receptores de recursos externos, seja do Estado ou de outros organismos presentes nas áreas, igrejas, ONGs e toda sorte de beneméritos comovidos com a pobreza indígena. Certa vez, numa aldeia Kaiowá Guarani em Mato Grosso do Sul, duas mulheres envolvidas na luta de seu povo assim explicaram: a principal fonte de violência dentro das nossas aldeias vem dos capitães, que são figuras criadas pela FUNAI e não tem nada a ver com a gente. Eles querem dinheiro, envolvem os jovens em coisas erradas e tudo o que chega fica com eles. Outra fonte de controle é o agenciamento da mão de obra indígena para o trabalho nas fazendas próximas às áreas, realizado tanto pelo funcionário chefe quanto pelo capitão. É interessante notar que mesmo depois que os indígenas passaram a ocupar os cargos da FUNAI não houve modificação nas funções e nem no modelo de gestão das áreas indígenas.
Foi esse modelo que propiciou a criação das polícias indígenas que ainda existem em muitas comunidades. No período da ditadura militar a criação da Guarda Rural Indígena / GRIN, que funcionou em alguns lugares foi ao que tudo indica uma versão mais sofisticada do modelo de controle e que introduziu o treinamento militar especializado e a tortura. O empoderamento de uma casta dentro da comunidade do poder disciplinador e dos instrumentos de violência faz parte do rol de maus exemplos que a sociedade brasileira oferece aos povos indígenas. São as páginas tristes de uma história que deve ser olhada de frente para que possamos compreender melhor uma das facetas da violência e das formas de sociabilidade que vigoram em diversas comunidades.
O Cimi, há 40 anos, atua para furar o cerco do controle do Estado e romper a solidão em que cada comunidade vivia (algumas ainda vivem) confinada sob o comando dos chefes funcionários. As ilhas sociais, às quais correspondem ilhas territoriais, reduziam a população a uma identidade única, sem comunicação com outras comunidades e povos. Nunca vou esquecer Maria Rosa Kaingang, lá no Icatu, no interior de São Paulo, em 1976. A área era dividida entre Terena e Kaingang. A presença Terena provinha do fato de que a reserva Indígena de Icatu havia sido presídio indígena, por isso tinham ficado por lá algumas famílias. Maria Rosa dizia que aquela terra era dos índios e que, por isso, os Terena não deveriam permanecer; afinal, índios eram os Kaingang, como se fossem sinônimos. Nem essa noção, de que índios pertencem a uma categoria social histórica, possuíam.
Conhecer outros povos, identificar sua condição enquanto categoria social brasileira, trocar experiências, construir a luta pela demarcação de terras, constituir direitos, enfim, criar o movimento indígena, essa foi a contribuição que o CIMI deu aos povos indígenas que viviam isoladamente sua solidão social e política. Se isso fosse pouco já seria bastante.
O documento que inspirou o título dessa colocação Y-Juca-Pirama termina assim:
“Neste esforço de assumir nossa existência em todas as suas dimensões, sentimo-nos solidários com tudo o que existe no mundo, especialmente na América Latina, em favor da libertação do homem e dos povos, em particular dos povos indígenas. (...)
“Chegou o momento de anunciar, na esperança, que aquele que deveria morrer, é aquele que deve viver”.
E aí estão vivos e fortes, guerreiros e guerreiras a lutar por suas terras, por seus direitos e, infelizmente ainda, contra a violência.
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