domingo, 16 de agosto de 2015

Do Acre para o Brasil, o arauto do “estado de exceção”

Israel Souza[1]
Incoerência e oportunismo barato elevados ao cubo. Assim os posicionamentos de Jorge Viana (PT-AC) no Senado. Parece que ninguém segura esse “menino do PT”...
 
Não faz muito, quando começaram as manifestações de rua que tomaram conta do Brasil no mês de junho do ano passado, ele alarmou: “Nossa população não pode ser tratada como bandida”.
 
O senador falava isso em razão da truculência com que a polícia estava tratando manifestantes e jornalistas. A agressão era tão gratuita e desmedida que mesmo a grande imprensa - a seu modo e segundo seus interesses - começou a condená-la.
 
Jorge Viana viu ali a possibilidade de aparecer como defensor da democracia. Em um texto (A democracia de Jorge Viana), dizíamos que nem parecia aquele em cujo governo a polícia deteve e reprimiu vários manifestantes em 7 de setembro de 2005. Concluíamos o texto dizendo que a democracia que o senador defendia para o Brasil não era a mesma que ele queria para o Acre.
 
Passados alguns poucos meses apenas, aquele mesmo “defensor da democracia” veio defender a aprovação de uma “lei antiterrorismo”. Claro. O sujeito aqui em questão tenta “surfar” na comoção - midiaticamente – alimentada pela morte do cinegrafista Santiago Andrade[2]. Resta, porém, que suas supostas inclinações democráticas mostram-se cada vez mais insustentáveis.
 
Deixando o senador de lado, por enquanto, cabe perguntar o que representa para a democracia a proposta por ele defendida. Comecemos com a definição de “terrorismo” e os problemas daí advindos.
 
Tratando do problema em mais amplo âmbito, Domenico Losurdo (A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense) argumenta que “não há nenhum esforço para esclarecer o que significa o termo terrorismo”. Trata-se de algo proposital, pois quanto “mais vaga a acusação, tanto mais fácil para sua validade se impor de modo unilateral e tanto mais inapelável se torna a sentença pronunciada pelo mais forte” (LOSURDO: 2010, 15).
 
O mesmo autor argumenta que “seria ingênuo esperar equilíbrio na utilização das categorias, chamadas, na realidade, para rotular o inimigo e seus cúmplices e, portanto, empunhadas e brandidas como armas de guerra” (LOSURDO: 2010, 14).
 
Trilhando caminho similar, Noam Chomsky (O império americano: hegemonia ou sobrevivência) destaca que o “termo terrorismo (itálico do autor) é extremamente difícil de definir”, considerando-o “particularmente obscuro” (CHOMSKY: 2004, 190). 
 
Assim como Losurdo, Chomsky ressalta como o modo vago de definir o termo é uma estratégia usada pelos de cima a fim de que, desse modo, possam manuseá-lo a seu talante contra aqueles que os ameaçam ou simplesmente a eles não se submetem. Não surpreende que mesmo Nelson Mandela tivesse sido acusado de “terrorismo” ao lutar pelo fim da segregação racial na África do Sul. 
 
Sabe-se que, historicamente, quando dada ordem encontra-se em crise, os que nela dominam costumam apontar “inimigos” (reais ou não), atribuindo a eles toda culpa pelos problemas atravessados e declarando-lhes guerra sem trégua. Há anos atrás, tais “inimigos” eram os comunistas. Hoje - e inclusive no Brasil! - são os “terroristas”.
 
O resultado disso é a emergência de um escancarado “estado de exceção”[3] em que são “enquadrados” os “inimigos” e os “não integráveis ao sistema político”. Como alertou Giogio Agamben (Estado de exceção), em razão das crises, das resistências populares (das mais diversas colorações ideológicas e das mais diversas opções de luta) e das reações dos de cima, o “estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na política contemporânea”. Ele vem deixando de ser “uma medida provisória e excepcional” para ser uma “técnica de governo” (AGAMBEN: 2004, 13).
 
Ao “anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo”, o estado de exceção se configura, não como um “direito especial”, mas como “suspensão da própria ordem jurídica” (AGAMBEN: 2004, 14-15). Por essa razão, o estado de exceção se apresenta como um “patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo” (AGAMBEN: 2004, 14). 
 
Sintetizando: o estado de exceção vem se tornando uma técnica de governo, usada permanentemente. A atual crise[4] impõe ao governo (se este assume a defesa da ordem - por carcomida e antidemocrática que esta seja - como sua principal tarefa) que a utilize. E a vaguidade da definição do termo “terrorismo” e a suspensão da ordem jurídica permitem que ele a utilize quase sem peias.
 
Em verdade, a proposta do senador acreano e consortes mostra como andam aparvalhadas as elites brasileiras diante das manifestações que elas não conseguem domesticar. Mostra igualmente como hoje os petistas entendem e tratam a democracia. Se lhes convém, defendem-na; se lhes incomoda ou ameaça, atacam-na sem medir palavras ou esforços. E assim as elites e seus representantes no Congresso preparam sua reação contra as “ruas”.  
 
Acreanizar o Brasil! Ao que tudo indica, essa é a contribuição política que Jorge Viana quer dar ao país. Pois aqui, em nossa terrinha, faz tempo o “estado de exceção” é a regra. Quanto a isso e dado que a democracia não lhe cheira bem, dificilmente poderiam encontrar arauto mais credenciado.



[1] Cientista Político e Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre – UFAC.
[2] Para tratar o assunto aqui em foco a partir desse ponto, recomendo os textos Jorge Viana revisita o passado ao defender projeto de lei anti-terrorismo, Legislador faz terrorismo com o terrorismo e Terrorismo faz senador confundir papel do buchuchu e da urtiga.
[3] Embora nos valendo aqui de Giogio Agamben, conjugamos suas reflexões com as de Walter Benjamin. Este tem uma noção historicamente mais ampla de estado de exceção, colocando no centro de suas análises a opressão e a exploração de classe. Para mais sobre o pensamento deste autor último ver Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Nesta obra, o leitor encontrará as teses sobre história (onde ele formula seu conceito de estado de exceção) do próprio Walter Benjamin acrescidas de comentários de Michael Löwy.
[4] No calor das manifestações de rua ano passado, alguns passaram a falar de “crise de representatividade”. Além dos autores já citados, recomendamos a leitura de Para além do capital, do filósofo István Mészáros, obra em que o autor fala da “crise estrutural” pela qual vem passando o sistema capitalista.

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