Secretário Executivo do Cimi
O achincalhamento à Constituição Federal ganha matizes cada vez mais perversas e assustadoras no que diz respeito ao direito dos povos indígenas às suas terras tradicionais. Não bastasse o ataque violento e sistemático interposto pelo latifúndio, de matiz multinacional, nas figuras de seus conglomerados empresariais, bancada ruralista e entidades de classe, o capítulo “Dos Índios” da nossa Carta Magna vem sendo violado pela práxis do atual governo brasileiro.
Temos insistido que a ‘não demarcação’ potencializa e eterniza os conflitos e faz aumentar o nível de violações de direitos e violências, inclusive físicas, contra os povos indígenas. Tudo isso vem sendo ‘devidamente’ provado pela conjuntura político-indigenista em nosso país.
Há muito vimos falando da morosidade governamental na condução de procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas no Brasil. Em si desrespeitosa, a morosidade “evoluiu”, recentemente, para uma situação mais gravosa de total paralisação dos procedimentos de demarcação. Temos observado, com tristeza e indignação, que ambas estratégias, no entanto, são apenas parte de uma “decisão de governo” muito mais ampla e mais agressiva aos povos indígenas.
A morosidade e a paralisação dos procedimentos de demarcação mostram-se como etapas ‘preparatórias’ da práxis, que já está em curso, da “redução das terras indígenas”. Nossa constatação é que as maiores vítimas dessa “decisão de governo” são os povos e comunidades que se encontram em situação de maior fragilidade sócio-política. Vejamos.
A morosidade nos procedimentos deixou dezenas de comunidades indígenas, durante anos a fio, em situação de extrema vulnerabilidade, muitas em acampamentos improvisados nas beiras de rodovias, em diferentes regiões do país. O governo visava, com isso, associar o conceito de demarcação, de acordo com o direito dos povos, à eternização de condições degradantes de existência dos mesmos.
Ao mesmo tempo em que agia com lentidão relativamente à implementação do direito dos povos às suas terras, o governo inflacionou os financiamentos subsidiados e incentivos aos setores político econômicos antiindígenas. Para se ter uma idéia disso, enquanto o orçamento da União para a ação ‘demarcação de terras indígenas’ manteve-se estagnado, girando em torno de 20 milhões de reais mal executados ao ano, os planos safra para o agronegócio saltaram de aproximadamente 20 bilhões, no início da década de 2000, para extraordinários 156 bilhões nesta última edição.
Assim, a paralisação nos procedimentos de demarcação anunciada pelo próprio governo em 2013 e reafirmada neste primeiro semestre de 2014, dá-se num contexto de marcante vulnerabilidade de muitos povos indígenas, por um lado, e de inconfundível fortalecimento de seus inimigos, por outro.
Como temos visto, a força política e econômica destes grupos tem sido cotidianamente sentida pelos povos indígenas, na forma de força bélica, por meio de discursos de incitação ao ódio, de leilões para contratação de milícias armadas, de despejos extrajudiciais, de ameaças a mão armada, de assassinatos, de invasão para exploração de recursos naturais das terras indígenas.
É neste contexto caótico e violento contra os povos que o governo brasileiro, por meio de agentes públicos, tem assediado lideranças e comunidades indígenas na perspectiva de que estas dêem seu “aceite” para propostas de redução de suas terras tradicionais. Como fica evidente, ao denominar essa prática de “mesas de diálogo”, o governo demonstra estar agindo desprovido de qualquer tipo de escrúpulo. Como pode haver diálogo ao redor de uma mesa onde uma das partes está com a “faca no pescoço”? Por meio de seu ministro da Justiça, o governo chegou ao ponto vexatório de denominar como “ajuste de direitos” o que efetivamente trata-se de explícita violação de direitos.
Vários são os casos de terras indígenas que se enquadram nessa fase de redução. Podemos citar, a título de exemplo, a Terra Indígena Mato Preto, do povo Guarani, no Rio Grande do Sul, com portaria declaratória assinada pelo ministro José Eduardo Cardozo em 2012, atestando a tradicionalidade de 4.230 hectares, cuja proposta é de redução para 600 hectares, e a Terra Indígena Herarekã Xetá, do Povo Xetá, no estado do Paraná, cujo relatório circunstanciado de identificação e delimitação inicialmente comprovava a tradicionalidade de aproximadamente 12 mil hectares e que foi publicado, no último dia 30 de junho, pela presidência da Funai, com 2.686 hectares
Caso também emblemático nesse contexto é o da Terra Indígena Cachoeira Seca, no estado do Pará. Declarada em 1993 como terra tradicional do povo Arara, de recente contato, pelo então ministro da Justiça Maurício Corrêa, com 760 mil hectares, foi reduzida durante o segundo mandato do govermundo@cimi.org.brno Lula, pelo então ministro da Justiça Tarso Genro, que assinou, em 2008, nova Portaria Declaratória para a mesma terra. Está situada na região de abrangência da UHE Belo Monte, cuja desintrusão, além de direito constitucional, é uma das condicionantes estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a concessão da Licença Prévia da hidrelétrica. No entanto, nem uma, nem outra determinação legal têm sido suficientes para que os Arara tenham o seu direito, líquido e certo, respeitado. Ao contrário, além de continuar intrusada, a terra indígena está sofrendo intenso processo de esbulho por parte de madeireiros instalados na região. Neste contexto extremamente adverso, chegou-nos a informação acerca de reunião realizada nessa quarta-feira, 23, envolvendo autoridades, invasores e indígenas para tratar acerca de proposta de mais uma redução da terra.
Os inimigos dos povos indígenas não estão em ‘recesso’ para a eleição que se avizinha. Eles estão ‘em campo’. Não é hora de baixar a guarda. No período eleitoral, a luta dos povos em defesa de seus direitos territoriais deve ser intensificada.
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