Por que kamña matou kiña?
Em junho de 1985, sentado na calçada em frente ao prédio da FUNAI, em Brasília, em companhia de dois Waimiri-Atroari ou Kiña, um deles me perguntou à queima-roupa: “O que é que civilizado joga de avião e que queima corpo da gente por dentro?”
Em aula, tão logo tiveram confiança em nós, Doroti e Eu, semelhantes perguntas se sucediam: “Por que kamña (civilizado) matou Kiña?” “O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña?” Kamña jogou kawuni (de cima, de avião), igual a pó que queimou garganta e Kiña morreu logo”. “Apiyemeyekî?” (por quê?). Procurávamos, inicialmente, furtar-nos à curiosidade sobre essas questões, sabedores da susceptibilidade dos agentes da FUNAI e das Forças Armadas, únicos responsáveis pelo destino deste povo.
Um texto de Damxiri dizia: “Apapeme yinpa Wanakta yimata” (“Meu pai me abandonou no caminho da aldeia de Wanakta”). A frase, discutida em aula, nos levou à seguinte história: um dia a aldeia de Yanumá, pai de Damxiri, nosso aluno da escola Yawara, foi atacada por kamña (civilizado). Yanumá procurou reter o ataque, enquanto mulheres e crianças fugiam pelo varadouro que conduzia à aldeia de Wanakta, localizada no Alto Rio Camanaú. Mortalmente ferido, Yanumá ainda conseguiu alcançar a mulher e os filhos. Sentindo-se desfalecer, recomendou à mulher que se refugiassem na aldeia de Wanakta, um líder descrito por eles como: “Wanakta karanî, xuiyá, todapra” (“Wanakta, um homem bom, bonito e gordo”). Sua aldeia estava situada numa região bem fora do roteiro da estrada e dos rios navegáveis. Possivelmente nunca foi vista pelos militares, tendo sido uma das únicas que não foi atingida pela violência praticada pelos militares.
As 31 (trinta e uma) pessoas que compunham a comunidade Yawara, onde desenvolvemos o nosso trabalho, eram sobreviventes de quatro aldeias localizadas à margem direita do rio Alalaú, desaparecidas entre 1970 e 1975. A pessoa mais velha tinha em torno de 40 anos. As demais, acima de dez anos, eram órfãs, com exceção de duas irmãs cuja mãe ainda vivia. Seus pais morreram na resistência contra a rodovia BR-174. As crianças de 4 a 10 anos também eram órfãs. Seus pais morreram de sarampo em 1981, abandonados pela FUNAI à beira da BR-174, no Km 292.
Na medida em que a confiança da comunidade crescia já não éramos apenas professores, mas pessoas envolvidas com o seu desejo de viver. Questionaram a razão pela qual kamña matou os seus pais, parentes e amigos. Desenhavam cenas de violência. Avião ou helicóptero sobrevoando a aldeia, soldados atirando escondidos atrás de árvores e na única frase ao lado, muitas vezes se destacava essa pergunta: “apiyemeyekî?” (por quê?).
Algumas vezes relacionaram os mortos. Panaxi, um jovem pai, descreveu o seguinte episódio que vivenciou no início dos anos 70 com seus pais, irmãos, parentes e amigos numa aldeia na proximidade do baixo Alalaú: “Antigamente não tinha doença. Kiña estava com saúde. Olha civilizado aí! Olha civilizado ali! Lá! Acolá! Civilizado escondido atrás do toco-de-pau! Civilizado matou Maxi. Civilizado matou Sere. Civilizado matou Podanî. Civilizado matou Mani. Civilizado matou Akamamî. Civilizado matou Priwixi. Civilizado matou Txire. Civilizado matou Tarpiya. Com bomba. Escondido atrás do toco-de-pau!”
Yaba escreveu: “Kamña mudîtaka notpa, apapa damemohpa” (civilizado desceu de helicóptero na minha casa, aí meu pai morreu). “Ayakînî damemohpa. Apiyemyekî?” (Minha irmã morreu. Por quê?).
Abaixo, outra relação de mortos: na Mahña mudî, (aldeia do rio Mahña, Alto Alalaú) Mawé, Xiwya, mãe de Rosa, Mayede, marido de Wada, Eriwixi, Waiba, Samyamî, mãe de Xere e Pikibda. Morreu ainda pequena (pitxenme), filha de Wada. Maderê, mulher de Elsa. Wairá, mulher de Amiko que mora no Jara, Pautxi, marido de Woxkî que mora no Jará. Arpaxi, marido de Sidé que mora no Alalaú, Wepînî, filho de Elsa. Kixii e seu marido Mayká, Paruwá, pai de Ida. Waheri, irmã de Wome e mais outra irmã de Wome. Suá, pai de Warkaxi e suas duas esposas e um filho. Kwida. Wara’ye – pai de Comprido. Tarahña, pai de Paulinho. Ida, mãe de Mayedê. Morreu ainda uma mulher velha cujo nome não relacionaram. A filha de Sabe que mora no Mrebsna Mudî, dois tios de Mário Paruwé, o pai de Womé e uma filha de Antônio.
Kramna Mudî era uma aldeia Kiña que se localizava na margem Oeste da BR-174, no Baixo rio Alalaú, próximo ao local conhecido como Travessia sobre a Umá, um “varadouro interétnico” que atravessava o território Waimiri-Atroari de Sul a Norte, para interligar com os Wai Wai e outros povos Karib na Guiana e no Suriname. No final de setembro de 1974, Kramna Mudî acolhia o povo Kiña para uma festa tradicional. Visitantes do Camanaú e do Baixo Alalaú já estavam lá. O pessoal das aldeias do Norte ainda estava a caminho. A festa já estava começando com muita gente reunida. Pelo meio dia um ronco de avião se aproxima. O pessoal sai das malocas para ver. A criançada se concentra no pátio. O avião derramou um pó e todos morreram, menos um. O tuxaua Comprido estava a caminho. Vinha do Norte com a sua gente. Chegando perto estranharam o silêncio. Aldeia em festa sempre está cheia de algazarra. Ao se aproximarem encontraram todos mortos, menos um. Morreram sem um sinal de violência no corpo. Dentro da maloca, nos girais, grande quantidade de carne moqueada, mostrando que tudo estava preparado para acolher muita gente. O sobrevivente só se recordava do barulho do avião passando por cima da aldeia e do pó que caia. Os Kiña forneceram uma relação de 33 parentes mortos neste massacre.
Contaram-nos que Comprido, ao ver os parentes mortos pelo chão, revoltou-se muito. Antes de voltarem para as suas malocas, provavelmente no dia 30 de setembro de 1974 à tarde, um grupo de Kiña atacou três funcionários da FUNAI, João Dionísio do Norte, Paulo Ramos e Luiz Pereira Braga, que subiam o Rio Alalaú para abastecerem o Posto Alalaú II. Mataram os três e jogaram os corpos na altura da Travessia, local onde a Umá (varadouro) atravessa o Alalaú, a aproximadamente seis quilômetros da aldeia chacinada. No dia seguinte, o tuxaua Comprido atacou o Posto Alalaú II, a aproximadamente 500 m da ponte do Rio Alalaú, então, o ponto mais avançado da BR-174.
Casa da Cultura do Urubuí / Presidente Figueiredo / 14 de maio de 2011.
Egydio Schwade
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