Delegação
com 40 indígenas do Acre esteve em Brasília durante esta semana para
reuniões na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do
Ministério da Saúde, Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério da
Educação e Procuradoria Geral da República (PGR). Vindos direto da
ocupação da sede regional da Funai em Rio Branco,
que começou em 18 de abril, as lideranças representam dezenas de povos
com reivindicações relativas a problemas fundiários, de educação e
saúde.
Conforme
as lideranças indígenas, a ocupação parece não sensibilizar o governo
federal, tampouco o governo estadual. Mesmo com a ruidosa realidade
vivida pelos indígenas, onde entre outubro de 2011 e abril deste ano 24
crianças morreram de diarreia no Alto Rio Purus e alunos são obrigados a
abrir os guarda-chuvas dentro da sala de aula em dias de tempestade,
nenhuma medida concreta de resolução das dificuldades foi tomada pelos
governos.
Ao
contrário, a resposta dos gestores públicos ficou em promessas e a
elaboração de programas que nunca se efetivaram – como a histriônica
campanha anunciada em janeiro deste ano, pela Sesai e Secretaria de
Saúde do Acre, para combater as mortes por diarreia no Purus. Hospital
de campanha, voadeiras (barcos rápidos), helicóptero e equipes
de saúde percorrendo as aldeias, além da distribuição de 600 filtros de
barro, não passaram de medidas nunca cumpridas – conforme atestou equipe
que percorreu o rio Purus (leia texto abaixo).
Em
Brasília, porém, as reuniões não ocorreram. Na Funai, a presidenta
Marta Azevedo não pôde recebê-los alegando não ter agenda. Na Sesai a
situação foi constrangedora: as lideranças foram informadas de que não
havia ninguém para atendê-los. Ao ameaçar um protesto, foram recebidos
pelo secretário Antônio Alves e toda sua equipe. Alves alegou não ter
sido encaminhado nenhum pedido de reunião. Ao receber o protocolo
comprovando a solicitação, mudou o discurso e informou aos índios que
eles tinham entrado por outro anexo do Ministério da Saúde.
No
entanto, com as autoridades que se dispuseram a reuniões com os
indígenas as lideranças alegam terem tido uma estranha constatação: o
governo do Acre tem dissimulado informações, omitindo os problemas e
construindo uma imagem de que o estado atende as demandas dos povos
indígenas, sobretudo na área da saúde e educação. Por sua vez, o governo
federal também deixa de cumprir com as obrigações fundiárias, de saúde e
educação.
De
acordo com os indígenas, a situação forma um mosaico de tragédias.
Ressaltaram também que o governo Tião Viana segue tentando aliciar as
comunidades indígenas a aceitar os projetos de comércio de carbono e
REDD, baseados em acordos entre o Poder Público acreano e o governo da
Califórnia, Estados Unidos.
Leia trechos da primeira parte de uma série de reportagens sobre a situação da saúde indígena no Acre, intitulada Mortos no Paraíso: Uma Jornada Rio Purus Adentro,
publicada desde abril pelo jornal Porantim. Com o texto, mostramos
parte da angústia vivida pelos indígenas, que agora estão em Brasília em
luta para serem ouvidos pelas autoridades públicas.
Surto de diarreia faz 24 vítimas e escancara situação da saúde indígena no Acre
de Santa Rosa do Purus (AC)
Mãe Madja segura filho em estado avançado de desnutrição. Foto: Ariel Lima Guimarães
|
O dia era de ajie na aldeia Madja. A festa
com canto e dança não obedece a calendário ou hora. Pela manhã as
mulheres se levantam e com varinhas cutucam os homens para irem caçar.
Elas ficam na casa e lá reúnem o que há de macaxeira, arroz e milho. O dossehe,
tal como os Madja chamam a busca por comida, é parte integrante da
festa; a caça trazida pelos homens e a comida organizada pelas mulheres
são espalhadas em panelas no centro do terreiro, sobre uma lona amarela.
Alimento pouco para tantos e logo não sobra mais nada. No geral,
mulheres e crianças se alimentam antes, pois cozinham e os pequenos
ficam ao redor. Às margens do rio Purus, Acre, essa festa ocorre entre
os Madja quando há escassez de comida e dividir é herança doutras
estações, no período em que os indígenas viviam em grandes malocas, no
interior da floresta, e não na beira do rio em casas separadas. Porém,
apenas o dossehe foi possível de ser realizado. A ajie não. Os tempos são de dificuldades e mortes na Terra Indígena do Alto Rio Purus.
Chamada por Euclides da Cunha de “um paraíso perdido”, quando o escritor lá esteve em expedição durante o ano de 1905, a
região do Alto Purus segue exuberante, longe do desenvolvimento
propagado por quase um século de exploração da seringa, ameaçada pelas
novas promessas depredatórias de crescimento social, caso do
agronegócio, madeireiras e empresas estrangeiras interessadas na
captação de carbono, e com suas populações tradicionais violentadas por
todos os anos de esbulhos e violações. Entre essas populações os povos
Madja e Huni Kuĩ, comunidades com a memória viva das expulsões do
território e massacres sofridos com a chegada da seringa e agora
lançadas à sorte determinada por projetos faraônicos estatais que viram
entulho nas aldeias, falta de assistência médica e um quadro de saúde
alarmante.
Durante
20 dias, equipe composta por integrantes do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), um assessor da Federação Huni Kuĩ e dois barqueiros
percorreu as aldeias da Terra Indígena do Alto Purus. O objetivo era
investigar junto aos índios os motivos que levaram a morte de crianças
indígenas, sob os mesmos sintomas: diarreia, vômito e febre. Ao fim da
jornada, iniciada no dia 11 de fevereiro e encerrada no dia 2 de março,
os cadernos de anotações davam conta de 22 nomes de meninos e meninas,
abaixo dos cinco anos, que foram a óbito. Em março, a notícia de mais
uma morte, e no início de abril outra – sinal claro de que as mortes não
cessaram. Outras crianças apresentavam quadros variados de anemia,
sendo alguns casos idênticos ao visto em países africanos de fome
absoluta.
Foto: Renato Santana
|
As marcas da morte estavam por todos os lados. Uma
mulher indígena grávida, que morreu por falta de pré-natal, um suicídio
impulsionado pelo consumo de álcool, sendo que o indígena se atirou de
um barranco para dentro das águas caudalosas e turbulentas do Purus,
além da falta de saneamento e a inoperância dos órgãos públicos em
controlar a situação – apesar da operação anunciada no fim de janeiro, em Rio Branco,
pelo coordenador da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai),
Antônio Alves. O relatório com as denúncias e as imagens captadas pela
equipe foram encaminhados ao Ministério Público Federal do Acre pela
Federação Huni Kuĩ e Cimi.
No
acre, o Purus corre entre as cidades de Santa Rosa do Purus, fronteira
com o Peru, e Sena Madureira, divisa com o Amazonas, percurso do rio que
nasce no vizinho sul americano e deságua no estado amazonense. As águas
do Purus cortam de forma vertical o estado, num trajeto com cerca de 500 km.
Na Terra Indígena do Alto Rio Purus, homologada em 2005 depois de
demarcada quase duas décadas antes pelos indígenas, 45 aldeias estão
organizadas de forma social e política num espaço humano, cultural e
natural de 465 mil hectares. Nesse pedaço de terra da Amazônia
brasileira vive o menino Madja com desnutrição aguda e ‘acusado’ de ter
fugido para o mato quando os profissionais do Samu foram buscá-lo para
tratamento e não o encontraram. Sem nenhuma proximidade com a questão
indígena, a equipe chegou de forma brusca e ao lado de dois Huni Kuĩ,
povo que mantém questões históricas com os Madja. O medo da mãe foi
tamanho de ver o filho sequestrado, que o levou para se esconder na
floresta. A criança, portanto, seguiu doente na aldeia. O ajie teve de ficar para outro dia.
A operação
A
aldeia Família é uma das maiores às margens do Purus. De tão próspera,
dela nasce a Nova Aliança – expansão social e política do núcleo
habitacional de origem. Nelas vivem indígenas do povo Huni Kuĩ. Ligadas
por laços familiares, as comunidades choram quatro crianças mortas na
aldeia Família durante surto de diarreia, febre e vômito. Morreram uma
seguida da outra, em oito dias, na última quinzena de dezembro do ano
passado. No dia de Natal, Hilário Augusto Huni Kuĩ enterrou a pequena
Juçara, de 1 ano.
“Levei
minha filha para Santa Rosa do Purus, mas ela continuava ruim. Tinha
cãibras e só fazia vomitar e ter diarreia. Encaminhamos então nossa
menina para Rio Branco. Juçara ficou três dias na UTI (Unidade de
Terapia Intensiva) e depois morreu. Foram quatro paradas cardíacas. Ela
não resistiu”, conta Hilário, vice-prefeito de Santa Rosa. O surto no
rio Purus não distingue possíveis privilégios. Porém, o indígena
conseguiu transporte em embarcação rápida, a chamada voadeira, para os municípios de Santa Rosa, Manoel Urbano ou até mesmo para a capital do estado, Rio Branco.
Das
24 crianças mortas, 15 feneceram na aldeia sem nenhum atendimento
médico ou acesso a medicamentos. Em poucas aldeias Madja e Huni Kuĩ
foram encontrados envelopes de soro caseiro, mas nenhuma orientação de
como prepará-lo com sal e açúcar. A vida mudou de prisma para Hilário
depois da morte da filha. Enquanto antes passava mais tempo em Santa Rosa
do Purus, agora fica na aldeia ao lado da companheira “tentando
esquecer, mas é impossível”. O indígena aponta que depois que a Sesai
substituiu a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), as duas equipes de
saúde que percorriam o Purus no início e fim do mês deixaram de atuar.
Não há mais remédios e o Polo Básico de Saúde, em Santa Rosa, está inoperante.
“Depois
que minha filha morreu, uma equipe de Brasília (Ministério da Saúde)
chegou a Santa Rosa, mas não fizeram nada de relevante, além de
papeladas. Não distribuíram remédios, não foram às aldeias. Nada.”, diz.
Apenas um mês após a morte de Juçara, além de outras crianças durante o
período, ocorreu a reunião entre o secretário da Sesai Antônio Alves e a
secretária de Saúde do Acre, Suely Melo, em Rio Branco. Na
ocasião ambos anunciaram uma operação que contava com helicóptero,
hospital de campanha no meio da Terra Indígena do Alto Rio Purus,
embarcações e equipes de atendimento. Mais um mês para frente, apenas
uma equipe do Samu (dois médicos, dois enfermeiros e dois técnicos),
vinda do Piauí, com o apoio do Exército, estava em Santa Rosa. Porém,
sem cumprir agenda de visitas às aldeias, pois a voadeira do Polo não
estava funcionando – as desculpas posteriores foram: falta de remédios e
autorização para sair em operação. A morte, por sua vez, seguia o curso normal de dor para as famílias indígenas.
“Surpreendeu-nos
chegar a Santa Rosa, percorrendo as aldeias, vindos de Manoel Urbano,
mostrarmos 18 mortes (contabilizadas até aquele momento) e o pessoal da
Secretaria de Saúde do município dizer que tinham apenas oito. Não
queriam nem saber de que aldeias eram ou como as mortes se deram. Não
assustou ninguém. Quando chegamos a Santa Rosa, estava tudo alagado (por
conta da cheia do Purus) e a desculpa foi essa para o polo estar
fechado, sem o rádio funcionando e medicamentos disponíveis”, afirma o
missionário do Cimi, Rodrigo José Domingues. A equipe do Samu estava
parada em Santa Rosa;
primeiro por falta de medicamentos, depois se esperava por uma
autorização e, por fim, não tinham pedidos de socorro registrados.
Para
o professor Edmilson Sampaio Esteves Huni Kuĩ, da aldeia Nova Família,
seu filho de sete meses só morreu, porque não tinham medicamentos e
tampouco assistência. “Não tínhamos como acessar o tratamento. O rádio
não funciona e as equipes deixaram de passar. Espero que com essas
mortes o atendimento ocorra, a atenção do governo”, lamenta. O professor
explica que Vinícius, seu filho, morreu em três dias com forte
diarreia, vômito e cãibras. Apesar dos outros quatro filhos, a tristeza
ainda não deixou os olhos de Edmilson. Pelo visto, os indígenas ainda
terão que esperar por mais competência dos governos.
O Pró-Acre deveria ter entregado, conforme programação da operação anunciada em Rio Branco,
600 filtros de barro às aldeias. Apenas 170 chegaram aos indígenas,
incluindo os quebrados. Pelo constatado nas comunidades do Purus, a
maioria dos filtros não foi instalado, sendo que a outra parte foi
montada errada, com a vela invertida do sentido correto para a filtragem
da água. “Tivemos aldeias com três mortes e nenhum filtro entregue.
Assim como teve aldeia que não registrou ninguém morto e todos receberam
filtros. Segundo alguns indígenas, para cada filtro eram requisitados
os documentos de identidade, CPF e título de eleitor”, explica o
assessor da Federação Huni Kuĩ, Adriel Lima Guimarães.
“Bebemos água da chuva”
Cacique
Maurício Huni Kuĩ, da aldeia Porto Alegre, fala com a voz embargada. O
filho do indígena, ao que tudo indica, é a primeira vítima do surto.
Marcinho morreu em 20 de outubro de 2011, depois de uma semana doente e
com apenas nove meses de vida. Mal a família tinha se recuperado da
perca, no último dia 2 de fevereiro Nemerson, o neto recém-nascido do
cacique, não resistiu durante dois dias depois de apresentar também
diarreia, vômito e febre. Quanto mais nova a criança, menor é o tempo de
vida depois de contraídos os sintomas. Isso ao menos nas aldeias do rio
Purus.
“Estamos
todos tristes. Deixam a gente morrer. Não recebemos remédios, consultas
e não entregaram nenhum filtro. Minha aldeia não recebeu. Vieram aqui,
pegaram os nomes dos meninos mortos e foram embora. Só isso”, amarga
cacique Maurício. Para piorar a situação, no final de janeiro e início
de fevereiro deste ano a cabeceira do rio Purus, nos Andes peruanos,
deve ter sido assoberbada por alguma tempestade fazendo com que ele
enchesse em todo seu trajeto, incluindo seus afluentes – os rios Acre,
Yaco, Chandless, além de quase meia dúzia de igarapés. Vários pontos no
Acre ficaram debaixo d’água e as aldeias do Purus mais vulneráveis ao
rio alagaram-se.
As
águas das cacimbas, usadas pelos indígenas e abertas nas encostas,
entre o rio e as comunidades, submergiram nas águas barrentas do Purus.
“Ficamos sem água e o jeito foi pegar a da chuva. Aqui na aldeia tomamos
água das chuvas, porque não tínhamos mais de onde tirar. Temos uma
vertente, mas ela fica a 5 quilômetros
da aldeia”, frisa o cacique. No geral, as mulheres ficam encarregadas
de ir buscar a água, em bacias, panelas e baldes. As vertentes são
fontes de água retiradas comumente de algumas espécies de árvores ou
origem de um poço. Os indígenas sabem como poucos os melhores lugares
para a abertura. O problema é que não são ouvidos pelos técnicos do
governo: amiúde se encontra nas aldeias poços de 60 metros
secos. Dessa forma, os indígenas buscam outras fontes de água e aí está
um dos principais motivadores do surto: as precárias condições de
saneamento básico.
Fonte: CIMI DF
Nenhum comentário:
Postar um comentário