segunda-feira, 7 de maio de 2012

A QUEM INTERESSA A REGULAMENTAÇÃO DA CONVENÇÃO 169 DA OIT?


Por CTI - Centro de Trabalho Indigenista

O Governo brasileiro, via Ministério das Relações Exteriores e Secretaria Geral da Presidência da República, tem convocado reuniões formais para discutir com lideranças indígenas e quilombolas uma espécie de marco regulatório da Convenção (CV) 169 da OIT. Esta Convenção foi ratificada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no143 de abril de 2004 – e, portanto, tem força de lei. Basicamente este instrumento legal dá aos povos indígenas do país o direito de consentirem ou não com o uso de parcelas do seu território para todo e qualquer empreendimento que os afeta, independentemente de estes empreendimentos estarem fisicamente fora das terras indígenas formalmente reconhecidaspelo Estado brasileiro. Além de serem convocados pelo governo sobre normas legislativas que de alguma forma possam lhes afetar, “Os povos interessados terão o direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento na medida em que afete sua vida, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam para outros fins, e de controlar, na maior medida possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, eles participarão da formulação, implementação e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional e regional que possam afetá-los diretamente” (Artigo 7 §1).

Assim sendo o Governo criou um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para definir o que chama de “regulamentação” dos procedimentos de consulta. E convocaram a sociedade civil para se manifestar nessa agenda. Esta é a nossa manifestação.

Desde logo consideramos no mínimo curioso que esta iniciativa do Governo Federal reconhece a autoaplicabilidade da CV 169, como vemos no esboço de agenda proposta por aquele GTI (anexo):

Diante dos preceitos e princípios do Direito Internacional, ratificados pelo Direito Constitucional Nacional, todo tratado internacional incorporado tem aplicação direta no Brasil, prescindindo qualquer tipo de regulamentação para sua máxima vigência ou aplicação. Nesse sentido, a Convenção 169 OIT, que foi recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio em 2004, é autoaplicável e vigora, na sua plenitude, desde então.

Logo, a

motivação do atual trabalho, através da interação GTI e sociedade, está necessariamente (sic) no compromisso afirmado pelo Estado brasileiro em respeitar e contemplar a alteridade, os usos e os costumes e tradições, organização social e representatividade política desses Povos e Comunidades, buscando normalizar os processos de consulta prévia e informada, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas que sejam suscetíveis de afetá-los.

Ou seja, como o Estado brasileiro (e não o Governo repara-se, ou mais precisamente a Constituição Federal) tem o autocompromisso acima afirmado, nada mais justo do que “normatizar” a consulta aos diferentes do nosso Brasil europeu (povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais). Mas por que o Estado brasileiro demorou oito anos para tomar essa iniciativa?

Antes de tentar atinar sobre o porquê de justamente agora essa iniciativa, é o caso de se perguntar onde e em quais circunstâncias (projetos de infraestrutura, legislação infraconstitucional, legislações estaduais ou mesmo municipais) buscou o Estado brasileiro, por meio dos três governos que o ocuparam desde 2004, aplicar a CV 169 por sua iniciativa? Nossa lembrança não encontra nenhuma obra ou lei que, afetando os interesses indígenas (para ficar com o “segmento” que atendemos), tivesse sido alvo de convocatória dos governos de FHC e Lula para que os povos indígenas consentissem ou não com obras ou iniciativas legislativa que lhes afetem ou dizem respeito. Nenhum procurador da AGU, que por dever de ofício deveria estar ciente da existência da CV 169 e do Decreto Legislativo 143/2002, agiu para que os agentes dos governos fizessem a convocatória das consultas. Nada. As consultas havidas neste período foram arrancadas pelos povos indígenas, pelo MPF e pelas ONGs indigenistas e indígenas. É o caso da criação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), proposta das entidades indígenas e indigenista congregada no Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI) e ratificada pelo Acampamento Terra Livre. Como foi quando participamos por solicitação da Associação Timbira Wyty-Cate e da Associação Xavante Warã, dos Estudos de Impacto das AHEs de Estreito e as planejadas no rio das Mortes. Nestes casos, obrigamos, com o auxílio do MPF no primeiro caso, o governo a consultar os povos indígenas afetados, não antes de revelarmos à própria FUNAI (ausente em ambos os licenciamentos em suas fases iniciais, por omissão ou prevaricação) a existência mesmo dos processos de licenciamento destas obras.

Antes que nos acusem de radicais, vamos supor que esta iniciativa do governo federal seja bem intencionada e vise de fato cobrir a omissão da AGU e do Governo Federal (quando não do Estado brasileiro), com o resultado do GTI publicado em Decreto obrigando os diversos órgãos da administração pública federal a consultar povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais sempre que seus interesses forem afetados por obras ou normas administrativas, na forma estabelecida e discutida com os beneficiários da CV 169. Certo, mas como definir no Decreto tais “interesses”? Como caracterizar claramente a “afetação” e seu grau? Porque estas são as premissas básicas estabelecidas na CV 169 no seu artigo 6º: “A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação desses povos (indígenas e tribais), deverá, com sua participação e cooperação, ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões que habitam (grifo nosso)”. Ora, em primeiro lugar, estes povos e comunidades habitam em um (ou mais) Estado da federação e num ou vários municípios e nenhum Decreto pode, por força do pacto federativo estabelecido na CF, determinar que os Governos Estaduais e Municipais convoquem povos indígenas e quilombolas para que participem prioritariamente nos seus planos de desenvolvimento. Só a lei ordinária tem esse pendão e ela já existe! Basta aplicá-la. Mas, como já dissemos, jamais foi aplicada formalmente nestes oito anos de existência!

Em segundo lugar, as definições acima mencionadas (de “interesse” e “afetação”) já foram, no nosso entendimento, estabelecidas pelo Governo Federal por meio da Portaria Interministerial nº 419, de 26 de outubro do ano passado (publicada no DOU de 28/10/2011): as obras licenciadas pelo IBAMA (e “somente só”) que afetam os povos indígenas são ferrovias, dutos, rodovias, portos, empreendimentos de mineração, termoelétricas e hidrelétricas e somente são afetadas por estes tipos de empreendimentos as Terras Indígenas com Portaria do Presidente da FUNAI (aprovando seus Relatórios de Identificação) e que se situem nas distâncias estabelecidas no Anexo II da referida Portaria (para uma análise crítica desta Portaria acessehttp://www.trabalhoindigenista.org.br/noticia.php?id_noticia=109). As obras e medidas administrativas emanadas/propostas dos/pelos governos estaduais e municipais – repetimos, base territorial onde as terras indígenas e de quilombolas existem institucionalmente – ficam de fora desta Portaria, como ficarão de fora do suposto futuro Decreto normalizador (?) da CV 169. E então? Então vale a Lei em vigor para todos os casos, ora!

Em terceiro lugar, a CV 169 é clara: além de os povos indígenas deverem ser consultados, amelhoria de suas condições de vida (de trabalho, saúde e educação) deve ser prioritária na definição das políticas de desenvolvimento das regiões onde habitam – ou seja, os estados federados. Ler o consignado no artigo 6º da CV 169 e lembrarmos, por exemplo, das condições dos Guarani no Mato Grosso do Sul é constatar que este é um país onde as leis não valem (uma obviedade) e que os políticos que as estabeleceram o fizeram por mero descuido, sem cuidar/refletir sobre suas consequências. E o Estado brasileiro deveria agir como manda um tratado internacional que assinou e validou perante a sociedade brasileira – sob pena de prevaricar.

Portanto, e retomando o argumento, estamos diante de uma situação no mínimo estranha onde o governo num momento disciplina a participação dos órgãos responsáveis por tratar/representar com/os diferentes nacionais no processo de licenciamento perante os órgãos licenciadores, impondo-lhes limites e prazos, e noutro pretende normatizar os mecanismos de consulta. Ou talvez o que o governo pretende com a normalização (sic) do mecanismo de consulta é simplesmente adequar as consultas obrigatórias que a FUNAI e Fundação Cultural Palmares (e o IPHAN) devem realizar aos prazos estabelecidos na Portaria 419. Se esta for a intenção isso é gravíssimo, pois uma consulta prévia e informada, obrigação do Governo, não pode ser açodada por prazos inexequíveis como os propostos na referida Portaria, ainda mais em se tratando de povos com os quais a consulta plena esbarra em questões operacionais de acesso e comunicação, pois, em sua maioria, aqueles povos não têm nem o domínio total do português e nem a obrigação de entender os processos – além do que a CF no seu artigo nº 231 reconhece usos, costumes e tradições que lhes são específicos e diferentes do conjunto dos nacionais.

Outro ponto interessante é o papel ambíguo da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria Federal neste contexto. Para defender, por exemplo, os atos do governo federal (governo Lula) na cessão de terras para comunidades quilombolas (por força do artigo 68 das Disposições Transitórias da CF de 1988) na ADI 3239 proposta pelo Partido Democratas (DEM) contra o Decreto que regulamenta aquela cessão, a AGU invocou a CV 169, assim como a PGR. Mas essa mesma AGU não invocou a CV 169 quando o MPF propôs a paralisação de Belo Monte baseado justamente na forma com que o governo federal realizou a consulta aos povos indígenas afetados pelo empreendimento.

Da aplicabilidade imediata da CV 169 e a Consulta Prévia

O princípio de participação é elementar à aplicação de todo o texto da CV 169 e o Comitê de Peritos (CPACR) definiu que “(...) A consulta é o instrumento previsto pela Convenção para institucionalizar o diálogo, assegurar processos de desenvolvimento inclusivos e prevenir e resolver conflitos. A consulta, nos termos previstos na Convenção, pretende harmonizar interesses, às vezes contrapostos, mediante procedimentos adequados” (CEARC, no169). E o artigo 15º da Convenção explicita que esta consulta deve se dar antes que os governos estatais empreendam ou autorizem qualquer programa de prospecção ou exploração de recursos existentes no habitat dos povos indígenas.

“... a Convenção reconhece o direito de posse e propriedade desses povos e preceitua medidas a serem tomadas para salvaguardar esses direitos, inclusive sobre terras que, como observado em determinados casos, não sejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais tenham, tradicionalmente, tido acesso para suas atividades e subsistência”(Introdução). O artigo 14o reza que a Convenção 169 se aplica sobre os espaços territoriais dos povos indígenas que compartilham com terceiros; e o já citado artigo 15o, que ela se aplica“(à) totalidade do habitat das regiões que esses povos ocupam ou utilizam de alguma maneira”.

Os procedimentos de consulta previstos na Convenção 169 têm por finalidade chegar a um acordo ou lograr o consentimento; mas “não é necessário, claro está, que um acordo logre ou obtenha consentimento” (Informe do Comitê – doc. 16200MEX169B, in ISA “Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais”, 2009: 43). E a consulta deve ser feita pelo Governo (artigo 7o) e é prévia, inclusive se dando na realização dos estudos de impacto ambiental: “Os povos indígenas têm o direito de participar em todos os níveis de tomada de decisão enquanto prevalecer a situação criada por decisões estatais, tenham aqueles consentido ou não com a medida proposta” (op. cit.: 2009: 36, grifo nosso).

“O resultado de um procedimento de consulta pode ser indicador do seu êxito, mas não da sua legitimidade (...). Ou seja, o processo de consulta não requer o consentimento como condição à sua legitimidade, mas quando um projeto afeta direitos territoriais de forma substancial, então o consentimento faz-se necessário; não para prestar legitimidade ao processo de consulta, mas sim para legitimar a medida a ser tomada pelo governo” (op. cit: idem).

A Constituição Federal (CF), por outro lado, estabelece que os tratados internacionais tem força hierárquica infraconstitucional, equiparando-se à força da lei ordinária (Art. 102, III, b). E o artigo 5o (parágrafo 2o) determina que os direitos e garantias estabelecidos na CF não excluem aqueles estabelecidos em tratados internacionais que o Brasil seja parte. O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar ambos os artigos, tem entendido que os tratados internacionaisque versam sobre direitos humanos (e a Convenção 169 é um deles) têm hierarquia superior a lei ordinária. No tribunal, e sobre esse tema, ainda resta definir duas linhas de argumentação, ambas baseadas na leitura da Emenda Constitucional 45/2004: uma que interpreta que a discussão sobre o status constitucional foi esvaziada pela Emenda e outra que entende que a Emenda equipara a força hierárquica dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil àquela da Constituição. A consequência da primeira interpretação é que, em caso de conflito entre a norma constitucional e a norma internacional, o texto constitucional não seria revogado, mas deixa de “ter aplicabilidade diante do efeito paralisante destes tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria” (voto do ministro Gilmar Mendes); já a outra interpretação (Ministro Celso de Mello) atribui qualificação materialmente constitucional à normativa dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos. O STF não retomou ainda esta discussão, mas de toda forma e em qualquer caso, para o Tribunal a Convenção 169 possui status superior à lei ordinária já que versa sobre os direitos dos povos indígenas – e os direitos dos povos são, por definição, um direito humano.

Portanto, além de autoaplicável, a CV 169 possui um estatuto superior à lei ordinária – logo por sobre qualquer decreto ou Portaria que o venha “normatizar”. O Governo brasileiro possui os elementos necessários, na própria Convenção, para agir, aplicando-a. Se quisesse, poderia ao invés de normatizá-la, solicitar à AGU que circulasse entre os Ministérios e o Congresso (suas lideranças) um parecer do Advogado Geral sobre a autoaplicabilidade, o autorreconhecimento e sobre tudo que ali dispõe a ser feito pelos governos.

O artigo 6º da CV 169 é claro:

1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) criar meios pelos quais esses povos possam participar livremente, ou pelo menos na mesma medida assegurada aos demais cidadãos, em todos os níveis decisórios de instituições eletivas ou órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que lhes afetem; c) estabelecer meios adequados para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas próprias desses povos e, quando necessário, disponibilizar os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento 23 em torno das medidas propostas possa ser alcançado.

A boa fé apregoada pela CV 169 de pronto inviabilizaria “normatizar” aquilo que já está claramente exposto na própria lei. “Criar meios” para a participação dos povos indígenas ou “estabelecer meios adequados para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas próprias desses povos” contraria os princípios da normatização/regulamentação, pois em cada situação, em cada contexto e com cada povo devem ser pensadas, discutidas e avaliadas os critérios de participação e representação.

Parece-nos que, na atual conjuntura política, constituir Grupos de Trabalho para “normatizar” a participação indígena nos destinos de seus territórios não passaria de uma cortina de fumaça para encobrir a real intenção de minar os meios legítimos de consulta e, assim, tutelar as decisões dos povos indígenas a fim de obter-se o domínio completo das riquezas naturais de suas terras. O CTI não participará desse processo.


Brasília, 19 de Abril de 2012.

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