Por Amyra El Khalili*
A
palavra inglesa "commodities" vem sendo usada há anos nos jornais e
cadernos especializados em notícias econômicas, mas pouco se sabe
efetivamente o que são "commodities". Sempre grafada no plural -
commodities - e raramente no singular - commodity -, após a Rio+20, a
palavra-expressão tornou-se vedete dos debates socioambientais que a
utilizam tanto no plural quanto no singular para se referir à
"comoditização" dos bens comuns.
"Commodity"
significa mercadoria padronizada para compra e venda e pode ser
negociada em diversos mercados com múltiplos instrumentos econômicos.
Veja que não se trata simplesmente de mercadoria com a palavra expressa
em português, pois mercadoria pode ser qualquer coisa que tenha
comprador e vendedor, ou seja: que tenha mercado. Se a mercadoria é
lícita ou ilícita , ética ou não, trataremos mais adiante ao separarmos o
trigo do joio.
A
diferença entre mercadoria e commodity se caracteriza pela padronização
- ação de padronizar, torná-las iguais. Assim sendo, é necessário
desenvolver critérios de produção, classificação, certificação, normas e
regras de comercialização legalmente constituídas. Não é tão simples
"comoditizar" - transformar uma mercadoria em commodity. É um sistema
caro, complexo e que depende de acertos em acordos internacionais, além
de regulações nacionais no âmbito do direito econômico, tributário e
fiscal.
Muitos
confundem "commodities" com instrumentos contratuais, como títulos e
certificados negociados nos mercados bursáteis (bolsas de valores) e de
balcão (entre partes fora dos mercados organizados) sem compreender
exatamente o que se pode e o que não se pode fazer nestes mercados
financeirizados que são, na maioria das vezes, mais virtuais do que
reais. Outros afirmam que o preço na comoditização é padronizado
internacionalmente. O que também não é verdade, pois há várias Bolsas e
mercados correlatos com preços diferenciados sendo negociados com as
mesmas commodities em outros continentes. Por outro lado, quando o preço
futuro está controlado por uma única Bolsa internacional, como é o caso
da soja e do cacau, a formação de preço para exportação, sem considerar
os fatores socioeconômicos regionais, muitas vezes promove distorções e
deslealdades nestas negociações.
Quando
nos referimos aos mercados de capitais, usamos a palavra-expressão
sempre no plural - "commodities" -, uma vez que os contratos estabelecem
negócios em grandes quantidades com escala de produção. Nos mercados de
capitais não se negocia "uma commodity", mas toneladas, arrobas ou
barris delas, como, por exemplo, as agropecuárias (milho, soja, trigo,
arroz, cacau, café, açúcar, boi, frango, suíno), as minerais (petróleo,
aço, ferro, ouro, prata, cobre entre outros). Este fato impede a
participação de pequenos e médios produtores agropecuários e
mineradores, a não ser quando se juntam para negociar através de
cooperativas agropecuárias ou associações. Mesmo assim, ainda enfrentam
dificuldades tremendas e exigências de padronização quase que
impraticáveis, considerando-se o avanço tecnológico que envolve estas
produções.
O
que, a princípio, está padronizado é o objeto do contrato, a commodity,
e não o preço, já que é flutuante e formado por inúmeros fatores, como
clima, custo de produção, frete, taxas, impostos, corretagens e serviços
entre oferta e demanda e, oscilam rapidamente de acordo com a
conjuntura econômica tanto quanto as cotações nas Bolsas. Daí a
complexidade de se formar um mercado global que seja transnacional e
consensual em acordos supranacionais nos fóruns internacionais (OMC,
Mercosul, Alca), pois cada país tem a sua realidade socioeconômica,
ambiental , financeira e política.
Compreenda
também a disputa concorrencial de mercados. Os países desenvolvidos
olham para a América Latino-caribenha como fornecedora de insumos e
matéria prima e tratam suas relações comerciais como se os recursos
naturais e os recursos humanos estivessem eternamente à disposição dos
capitalizados desde os tempos da colonização europeia, para que possam
continuar desenfreadamente produzir bens e serviços e depois revenderem a
nós, latino-americanos e caribenhos, seus produtos com tecnologia de
ponta, cobrando caro na condição de potencial consumidores que somos, as
mesmas commodities reprocessadas por eles, que foram produzidas por
nós.
E
por que aceitamos tudo isso? Por que não questionamos os critérios de
"comoditização" e ainda praticamos extrativismo predador enquanto
indústria e agronegócio com o paradigma daqueles tempos em que as
Américas e Ilhas Caribenhas foram descobertas por estes colonizadores?
Até hoje, vigora a prática dos "royalties", pagamento que se fazia à
realeza pela extração das riquezas naturais, como ouro e petróleo.
Jogar
a palavra "commodities" para debaixo do tapete e tentar substituí-la
por outros códigos, como, por exemplo, "produtos ecossistêmicos", para
dourar pílula e tornar mais palatável a comercialização dos bens comuns é
repetir o mesmo modelo condenado pelos socialistas em seus combates
ferozes contra o capitalismo. A palavra "commodities" vai aparecer mais
adiante com uma nova roupagem, a da legalização do ilícito, como a
biopirataria, a comercialização de lixo e a poluição, com o "modus
operandi" de monopólio e formação de cartel convenientemente chancelados
por governos e corporações em convenções internacionais. Aparecerá
também em sua forma mais perniciosa, a de que ecossistemas vitais para a
sobrevivência humana e de todos os seres vivos seja mercantilizada com a
regulação de preços nos mercados de Bolsas e de balcões.
Preferimos
enfrentá-la, discutindo os critérios de "comoditização" e propondo um
novo modelo econômico que faça contraponto a essa forma mercantilista e
utilitarista da produção de bens e serviços, de seres humanos como mão
de obra barata e escrava, seja na forma ilícita e desumana de trabalho
escravo propriamente dito, ou a indireta dissimulada, escravizando
pequenos e médios agricultores, campesinos e extrativistas, além das
comunidades tradicionais, como índios e quilombolas, entre outras
minorias, com contratos unilaterais e leoninos. Assim sendo, separaremos
o trigo do joio esclarecendo conceitos sobre a comoditização.
Commodities Convencionais
As
"commodities convencionais" são aquelas produzidas nesse modelo
econômico criticado anteriormente. Obedecem critérios de padronização
internacionais, são produzidas em grandes quantidades para atender à
demanda de mercados altamente competitivos e abastecer as corporações e
transnacionais que produzem também em alta escala, como o setor
automotivo (comprador de minério), o agronegócio (comprador de grãos e
carnes), a construção civil (compradora de madeira e minério), enfim,
cada setor da economia consome muita produção de commodities para
abastecer os 7 bilhões de habitantes deste Planeta Terra. No entanto, os
recursos naturais necessários à produção de commodities não eram
considerados na contabilidade destas produções. A água que irriga a
lavoura, a energia que consome a produção de aço, a biodiversidade
impactada pela exploração de petróleo, o solo degradado pelo plantio de
espécies que propiciam rápido crescimento e corte, como "pinus" e
eucaliptos e toda gama de tecnologias para produção de alimentos que
aceleram o plantio e colheita contra pragas, secas e inundações com
engenharia genética para atender aos prazos e demandas da voracidade dos
seres humanos que precisam tanto dos alimentos para comer, quanto da
água para viver e do ar para respirar. Acrescentando ainda o padrão de
conforto dos produtos industrializados, aparelhos eletrônicos, carros,
televisões, celulares, enfim, tudo o que a inteligência humana foi capaz
de criar e produzir para supostamente melhorar a vida das pessoas.
Os
mercados de commodities convencionais empregam menos pessoas e utilizam
cada vez mais tecnologia, como maquinários pesados, tratores,
colheitadeiras e sistema sofisticado de produção com a mecanização. A
cada avanço da modernização, milhares e milhares de pessoas que
prestavam serviços são substituídas por máquinas. É o caso dos
cortadores de cana. Apesar de ser uma profissão ingrata e abusiva, os
cortadores de cana, mais conhecidos como boias frias, dependiam desta
tarefa para seu sustento e, com a mecanização do corte de cana, estão
sem alternativa de trabalho. A substituição da mão de obra no corte da
cana não foi praticada com uma política pública preocupada com o
trabalhador braçal, mas unicamente com o setor sucroalcooleiro. Ainda
que o argumento de que o corte de cana manual era atividade insalubre e
sem condições de segurança, sua substituição não foi realizada pensando
naqueles que fizeram do setor sucroalcooleiro um dos maiores produtores
de commodities do mundo.
Esses
sofridos trabalhadores estão por ai, vagando pelas cidades e vão
engrossar as fileiras dos movimentos sociais sem terra, sem casa, sem
teto, sem trabalho, sem perspectiva de vida e sem esperanças. Este é
apenas um dos exemplos dos impactos da commoditização e por que essa
palavra-expressão passou a ser amaldiçoada como o cão chupando manga por
todos que lutam por dignidade, justiça e paz no campo.
O
assunto é vasto e não faltam estudos e trabalhos detalhados relatando
como funcionam os setores que necessitam da produção de commodities.
Commodities Ambientais
As
"commodities ambientais" são mercadorias padronizadas para compra e
venda produzidas pelas comunidades que foram excluídas dos mercados de
commodities convencionais ou que nunca tiveram participação nele. Para
serem ambientais, não podem ser produzidas com os mesmos critérios de
produção impactantes e que promovem a exclusão social, a devastação e a
degradação ambiental. Essas produções são assim conceituadas, pois devem
obedecer também a critérios de padronização, classificação e
certificação, o que não significa que esses critérios devam ser os
mesmos adotados pelo modelo econômico na produção de commodities
convencionais. Nas commodities ambientais, as produções não são em
escala, como no padrão industrial. São diversificadas, respeitando-se os
ciclos da natureza e a capacidade de cada região com seus biomas e
ecossistemas. A palavra "commodities", neste contexto grafada como
"expressão", não está associada à tecnologia de ponta, à engenharia
genética ou às máquinas e equipamentos que são necessários para a
produção das commodities convencionais. Somente serão commodities
ambientais se estas produções gerarem emprego e renda para seus
produtores. Sempre em pequenas quantidades, com critérios de manejos e
integração entre o ser humano e o meio ambiente e com pesquisa
técnico-científica e educacional. Estará "comoditizada" por obedecer a
critérios participativos e que promovem o fortalecimento das produções
dos pequenos e médios produtores, extrativistas, comunidades
tradicionais - índios e quilombolas, campesinos e grupos em exclusão e
de riscos (mulheres, deficientes físicos, presidiários, desempregados,
entre outros).
Ao
contrário das commodities convencionais , expressão usada no plural por
conta da grande quantidade de produtos, nas ambientais, o plural será
na organização social que as produz e decide sobre esses critérios, ou
seja, deve ser associativista e cooperativista. A produção é grupal e
não individual (no singular); ocorre o inverso, nas commodities
convencionais, que concentram o lucro e a produção para poucas pessoas e
corporações.
As
commodities ambientais buscam inserir esses cortadores de cana que
perderam seu sustento com a mecanização do corte, propondo alternativas
de produção e trabalho. São, portanto, a transição do modelo econômico
com políticas públicas participativas e integradas. Não substituem as
commodities convencionais, nem pretendem concorrer com elas, mas criar
um sistema alternativo que abra a base da economia e promova a
conservação e a preservação ambiental com inclusão social, atendendo as
suas demandas.
As
commodities ambientais são originadas das matrizes: água, energia,
biodiversidade, floresta (madeira), minério, biodiversidade, reciclagem e
redução de poluentes (água , solo e ar). As matrizes não são
mercadorias, são ecossistemas e ou processos (conhecimento e ciência).
Não são "commodities", são bens comuns. São a galinha dos ovos de ouro.
Porém, a Economia Verde pretensiosamente propõe comoditizar aquilo que
não pode e não deve ser "mercadoria" através do sistema financeiro com
instrumentos econômicos e contratos padronizados pelos mercados de
capitais. Está bem longe do que propomos nas commodities ambientais.
No
entanto, não podemos dizer que a água não está comoditizada. De que
água estamos falando? Da água que está na bacia hidrográfica - rios,
subsolo, represas, mananciais - ou da água que está engarrafada no
supermercado?
A
água que está no rio, no subsolo, nas represas, nas montanhas, nas
cachoeiras é parte de ecossistemas e não deve jamais ser comoditizada
por um motivo muito simples: é direito humano, direito de todos os seres
vivos e, portanto, essencial para nossa sobrevivência, garantida pela
constituição no Estado Democrático de Direito. Água é bem comum, de uso
público, e o estado é tutelador deste bem; porém, a água que saiu do seu
estado natural e foi reprocessada para ser engarrafada, seja como água
mineral, bebidas, insumos para indústrias, para a agricultura e a
pecuária está commoditizada em forma de produtos industrializados e
alimentos. Alegar que a água não é "commodity" em parte é verdade, pois é
ecossistema, mas ignorar que está incorporada a produção de bens e
serviços na forma de produtos industriais e alimentos é tratar a
discussão com o viés meramente político-ideológico ou total
desconhecimento técnico-científico, sem mensurar as consequências da
superficialidade desta discussão. Se a palavra-expressão "commodity"
está sendo usada para explicar que a água não deve ser regulada,
precificada e controlada pelo sistema financeiro via mercados de Bolsa,
tem razão de ser, mas falta ainda contextualizar como a comoditização
está sendo criticada nesta afirmação. É necessário explicar para as
pessoas leigas do que se está falando. A confusão conceitual alimenta a
ignorância e o desinteresse.
Os
que se negam a ouvir o que estamos propondo, sem nos dar a chance de
provar que é possível transformar a maneira de produzir e que podemos
interferir nos critérios de produção de bens e serviços, não querem
soluções. São, na melhor das hipóteses, reducionistas e demonstram que,
se estão defendendo o direito do povo decidir sobre políticas públicas e
a economia que queremos, negam com esta atitude o direito dos que não
têm alternativas, como os cortadores de cana, índios, quilombolas,
campesinos, entre outros, de encontrarem uma esperança neste mundo real,
ainda, infelizmente, bem longe do mundo ideal. Também demonstram
incompetência para avançar na defesa dos bens comuns, dando munição para
inimigos. Estes incautos acabam advogando para promover aceleradamente a
comoditização e a financeirização dos bens comuns.
Commodities Sujas
Outros
fatores compreensíveis contribuem para essa falta de visão estratégica:
a ação dos oportunistas de plantão, de gente inescrupulosa e desonesta
que se apropria de trabalhos fundamentados para vender gato por lebre.
As commodities ambientais têm sido sistematicamente e propositadamente
confundida com créditos de carbono. A expressão está enfrentando um
assédio conceitual sub-reptício daqueles que se apropriam de ideias
alheias, esvaziam-nas do seu sentido original e se apropriam delas,
preenchendo-as com conteúdo espúrio.
Com
relação aos créditos de carbono ou quaisquer créditos derivados deste
paradigma mecanicista, estamos falando de títulos, de certificados
negociados em Bolsas de Valores ou nos mercados de balcão. Se poluição é
mercadoria, como vão padronizá-la para compra e venda? Quais são os
critérios de classificação e certificação da mercadoria a ser
comoditizada, a poluição (CO2)?
O
absurdo conceitual e o atropelo do oportunismo ganancioso propiciou uma
nova modalidade de comoditização: as "commodities sujas". Transformar
mercadoria em "commodities" significa legalizar o ilícito e o antiético
neste caso. Como dissemos anteriormente, mercadoria pode ser qualquer
coisa que tenha comprador e vendedor formando mercado. Mas "commodities"
são padronizadas. E para padronizar é necessário adotar critérios que
devem se submeter a regras e normas. No caso das "commodities sujas",
estão legalizando o mercado de poluição que nada tem a ver com o
conceito de "commodities ambientais". Uma vez que se deseja eliminar,
não se pode multiplicar, produzir estoque, comoditizar e mercantilizar.
O paradigma organicista versus paradigma mecanicista
O ambientalista e doutor em Ecohistória, Arthur Soffiati, conclui:
"Hoje, os cinquenta tons de cinza confundem as posições e a compreensão dos conceitos. Mesmo assim, é possível reconhecer dois paradigmas: o mecanicista e o organicista.
O primeiro continua acreditando que o planeta e as pessoas são recursos
a serem explorados em caráter ilimitado para ganhar dinheiro. O segundo
propõe uma mudança radical, criticando tanto a direita quanto a
esquerda por suas posições retrógradas. A geoengenharia, a transgenia, a
biologia sintética são novas roupagens para velhas propostas que se
reúnem hoje sob o rótulo geral de Economia Verde. Elas se
vinculam ao surrado paradigma mecanicista que alimenta o capitalismo e o
socialismo (que nunca representou um projeto radical de revolução). Já o
projeto de commodities ambientais se alinha com o novo paradigma
organicista, que condena veementemente o objetivo de transformar todas
as manifestações da natureza em mercadoria."
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