Quem decidiu que os países do Mercosul devem ser em conjunto os principais produtores e provedores mundiais de soja? Isso é resultado de uma decisão planificada soberanamente ou o produto da estratégia de um punhado de empresas transnacionais da alimentação e da biotecnologia que manejam o pacote tecnológico do atual modelo produtivo? Falando do setor industrial, o que significa que o grosso do intercâmbio de bens intra-Mercosul esteja constituído por produtos da indústria automobilística? A quem isso beneficia? O artigo é de Julio Gambina.
Julio Gambina*
O processo bicentenário de luta pela emancipação em nossa América supunha o imaginário da integração regional, mais como território e identidade compartilhada que como relações entre nações. Esta última é a história do capitalismo nativo e do vínculo entre os países. Cada institucionalização integradora teve o selo do capitalismo da época, seja a Industrialização Substitutiva de Importações (ISI) ou o recente período neoliberal.
A crítica popular ao livre comércio e à ordem econômica hegemônica, na mudança de século, construiu a possibilidade de limitar a proposta da ALCA, que se renova com tratados bilaterais e multilaterais impulsionados pela Europa ou pelos Estados Unidos. Por isso, não devemos nos confundir e pensar que, regionalmente, já superamos o ciclo de inserção mundial subordinada, funcional à estratégia global de um grupo reduzido de transnacionais.
Quem decidiu que os países do Mercosul devem ser em conjunto os principais
produtores e provedores mundiais de soja? Isso é resultado de uma decisão planificada soberanamente ou o produto da estratégia de um punhado de empresas transnacionais da alimentação e da biotecnologia que manejam o pacote tecnológico do atual modelo produtivo?
Falando do setor industrial, o que significa que o grosso do intercâmbio de bens intra-Mercosul esteja constituído por produtos da indústria automobilística? A quem isso beneficia? Aos trabalhadores do setor de autopeças da região que devem diminuir significativamente sua produção porque para as montadoras é mais barato importar as peças de qualquer lugar do mundo? Ou as 12 grandes transnacionais que pagam, em termos de hora média de trabalho, quase a terça parte do que pagam no sudeste asiático, exportando a preços internacionais? Não é só o Mercosul. Pode verificar-se o crescimento da integração da Argentina com o Chile, sendo a mineração um motivo compartilhado de entrega de recursos naturais a investidores com dimensão adequada para uma exploração em grande escala com risco certo de contaminação.
A “sojização”, o privilégio à mineração em céu aberto e o caráter de indústria montadora estão ligados aos fenômenos de subordinação ao programa capitalista dominante. São os interesses nacionais contraditórios, ou melhor ainda, os das classes dominantes de cada país, que obstaculizam uma estratégia que assuma a perspectiva originária de articulação de um projeto regional autônomo e emancipado. A crise mundial em curso nos devolve os limites da integração capitalista no programa da liberalização. É o caso da Grécia, da Espanha ou da periferia europeia, países chantageados pelo poder do Banco Central da Europa, dos bancos alemães ou franceses, do FMI, e pela mediação da burocracia política administradora do capitalismo no velho continente.
A hegemonia capitalista define em cada país e em cada região o curso da acumulação, especialmente em época de crise, onde o horizonte de preservar e restaurar lucros se constitui no objetivo principal. É imprescindível a busca de alternativas. Não existe caminho na imitação das articulações integradoras hegemônicas. O que tampouco devemos esquecer é que, na contramão do que ocorre nos países centrais, a periferia latino-americana vive um de seus melhores momentos em termos dos preços internacionais de seus produtos de exportação. O que ocorrerá se terminar esta conjuntura favorável com a acumulação de reservas soberanas, os superávits fiscais que financiam a política social e sustentam os pagamentos da dívida externa? Como os governos se ajustarão a esse novo cenário, se ele ocorrer?
Por isso, faz falta ensaiar um novo caminho que reconstrua o imaginário originário em nossa América. Uma chave desse caminho pode surgir do postergado Banco do Sul, se ele servir para impulsionar outro modelo produtivo, que afirme soberania alimentar, energética ou ambiental, para uma diferente equação de beneficiários e prejudicados. Pode ser o caminho da generalização de intercâmbios em moeda local, incipiente entre Brasil e Argentina, e entre os sócios da ALBA, e para criar um debate sobre a criação de uma moeda regional na disputa pela independência da inserção regional na divisão internacional do trabalho.
Trata-se de observar a estratégia concentra de desenvolvimento da Petrocaribe, que envolve 18 países da América Central e Caribe e supõe, desde as importantes reservas venezuelanas de gás e petróleo, a construção de refinarias e plantas de armazenamento localizadas na região, com financiamento a baixas taxas de juros e uma fatura petroleira a pagar em condições favoráveis para países dependentes da dominação transnacional. A cooperação energética é importante na promoção soberana de um projeto autônomo, o que significa recuperar soberania sobre os recursos naturais e dispô-los em uma lógica não mercantil.
A perspectiva de construir uma estratégia econômica comum na Unasul, superando o caráter de fórum político, com exclusão dos EUA, possibilita discutir os limites da ordem capitalista em nossos países, base imprescindível para pensar uma integração alternativa.
(*) Doutor em Ciências Sociais na Universidade de Buenos Aires. Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas (Fisyp) e integrante do Comitê Diretivo do Clacso.
A crítica popular ao livre comércio e à ordem econômica hegemônica, na mudança de século, construiu a possibilidade de limitar a proposta da ALCA, que se renova com tratados bilaterais e multilaterais impulsionados pela Europa ou pelos Estados Unidos. Por isso, não devemos nos confundir e pensar que, regionalmente, já superamos o ciclo de inserção mundial subordinada, funcional à estratégia global de um grupo reduzido de transnacionais.
Quem decidiu que os países do Mercosul devem ser em conjunto os principais
produtores e provedores mundiais de soja? Isso é resultado de uma decisão planificada soberanamente ou o produto da estratégia de um punhado de empresas transnacionais da alimentação e da biotecnologia que manejam o pacote tecnológico do atual modelo produtivo?
Falando do setor industrial, o que significa que o grosso do intercâmbio de bens intra-Mercosul esteja constituído por produtos da indústria automobilística? A quem isso beneficia? Aos trabalhadores do setor de autopeças da região que devem diminuir significativamente sua produção porque para as montadoras é mais barato importar as peças de qualquer lugar do mundo? Ou as 12 grandes transnacionais que pagam, em termos de hora média de trabalho, quase a terça parte do que pagam no sudeste asiático, exportando a preços internacionais? Não é só o Mercosul. Pode verificar-se o crescimento da integração da Argentina com o Chile, sendo a mineração um motivo compartilhado de entrega de recursos naturais a investidores com dimensão adequada para uma exploração em grande escala com risco certo de contaminação.
A “sojização”, o privilégio à mineração em céu aberto e o caráter de indústria montadora estão ligados aos fenômenos de subordinação ao programa capitalista dominante. São os interesses nacionais contraditórios, ou melhor ainda, os das classes dominantes de cada país, que obstaculizam uma estratégia que assuma a perspectiva originária de articulação de um projeto regional autônomo e emancipado. A crise mundial em curso nos devolve os limites da integração capitalista no programa da liberalização. É o caso da Grécia, da Espanha ou da periferia europeia, países chantageados pelo poder do Banco Central da Europa, dos bancos alemães ou franceses, do FMI, e pela mediação da burocracia política administradora do capitalismo no velho continente.
A hegemonia capitalista define em cada país e em cada região o curso da acumulação, especialmente em época de crise, onde o horizonte de preservar e restaurar lucros se constitui no objetivo principal. É imprescindível a busca de alternativas. Não existe caminho na imitação das articulações integradoras hegemônicas. O que tampouco devemos esquecer é que, na contramão do que ocorre nos países centrais, a periferia latino-americana vive um de seus melhores momentos em termos dos preços internacionais de seus produtos de exportação. O que ocorrerá se terminar esta conjuntura favorável com a acumulação de reservas soberanas, os superávits fiscais que financiam a política social e sustentam os pagamentos da dívida externa? Como os governos se ajustarão a esse novo cenário, se ele ocorrer?
Por isso, faz falta ensaiar um novo caminho que reconstrua o imaginário originário em nossa América. Uma chave desse caminho pode surgir do postergado Banco do Sul, se ele servir para impulsionar outro modelo produtivo, que afirme soberania alimentar, energética ou ambiental, para uma diferente equação de beneficiários e prejudicados. Pode ser o caminho da generalização de intercâmbios em moeda local, incipiente entre Brasil e Argentina, e entre os sócios da ALBA, e para criar um debate sobre a criação de uma moeda regional na disputa pela independência da inserção regional na divisão internacional do trabalho.
Trata-se de observar a estratégia concentra de desenvolvimento da Petrocaribe, que envolve 18 países da América Central e Caribe e supõe, desde as importantes reservas venezuelanas de gás e petróleo, a construção de refinarias e plantas de armazenamento localizadas na região, com financiamento a baixas taxas de juros e uma fatura petroleira a pagar em condições favoráveis para países dependentes da dominação transnacional. A cooperação energética é importante na promoção soberana de um projeto autônomo, o que significa recuperar soberania sobre os recursos naturais e dispô-los em uma lógica não mercantil.
A perspectiva de construir uma estratégia econômica comum na Unasul, superando o caráter de fórum político, com exclusão dos EUA, possibilita discutir os limites da ordem capitalista em nossos países, base imprescindível para pensar uma integração alternativa.
(*) Doutor em Ciências Sociais na Universidade de Buenos Aires. Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas (Fisyp) e integrante do Comitê Diretivo do Clacso.
Publicado em Carta Maior
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