Assessor Teológico do Cimi
Ao pensar a causa indígena, a reflexão perpassa o tempo pré-colonial dos povos originários das Américas, sua conquista e destruição colonial, às vezes permeada por gritos proféticos, logo silenciados. Hoje, as ameaças contra a vida desses povos não são menores. O capitalismo agroindustrial representado pelo Estado busca uma “solução final” incorporando os territórios ancestrais dos povos indígenas, gradualmente, na monocultura, no latifúndio e no agronegócio. Haverá futuro para os povos indígenas com a continuidade sistêmica? Quais as condições reais para pensar esse futuro? Quais são os horizontes e imperativos proféticos que emergem desse futuro para o Cimi?
1. Que fazer?
Diante das pragas neocoloniais sem data de vencimento nos perguntamos: “Que fazer?”. É a velha pergunta que o Jovem Rico e o Doutor da Lei fizeram a Jesus e que inspirou, no início do século XX, Lenin a escrever um dos seus primeiros tratados significativos: “Que fazer?”. Responderemos, novamente – não como filósofos, mas como militantes – com aquilo que importa: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo”. Assim, Marx condensou a nossa tarefa na última das onze “Teses sobre Feuerbach” (1845).
Ao “que fazer?” se junta outra pergunta: “Como fazer?”. Nós, os sempre indignados com a situação, os descrentes de promessas políticas, os desafinados no coro dos contentes, críticos e, quiçá, proféticos remadores contra a corrente, não perdemos com a prosa da denúncia a poesia que também tem “comunicação secreta com o sofrimento da humanidade” (Pablo Neruda). “Se faltar calor, a gente esquenta [...]. Se parecer impossível, a gente tenta [...]. Se faltar vento, a gente inventa.” Os Engenheiros do Havaí desculpem os empréstimos.
Contra o pragmatismo público, mobilizamos nossa imaginação alternativa. Cimi, CPT e MST, por exemplo, sempre contestaram a falácia daqueles que rotularam o mundo como pós-utópico. Um outro mundo é possível. Compreendemos a nossa missão como a de pastores que juntam o rebanho de esperanças afugentadas. Foi o capitalismo mercenário que entregou o rebanho ao lobo do sistema econômico mundial, em cujos festins muitas esperanças foram devoradas.
Ao velejar entre piratas e caminhar entre lobos, também nós, às vezes, encalhamos na lama de dúvidas sobre a viabilidade da causa indígena no mundo de hoje. Atormentamo-nos com desejos de alcançar resultados mais rápidos e sem todo esse sofrimento cotidiano dos povos indígenas. Contudo, passados quarenta anos, estamos aqui, pastores sobreviventes com seu rebanho de esperanças. Raiz e razão dessa esperança - o sonho do bem viver dos povos indígenas e na nossa fé. O vento do sumak kawsay nos desencalhou na curva do rio e desanuviou o horizonte.
2. Origem
O paradigma sumak kawsay é de origem quéchua e significa bem viver. Esse bem viver é memória e horizonte; memória do bem viver pré-colonial e tradicional do mundo andino e, ao mesmo tempo, protesto e luta contra o processo de destruição desse bem viver, impulsionado pelo capitalismo agroindustrial globalizado. O cataclismo colonial e a destruição neocolonial de sua singularidade cultural e diversidade vivencial fazem os povos quéchua compreenderem seu passado como um mundo do bem viver. Esse bem viver dos povos andinos, hoje assumido como conviver harmonioso entre cosmo, natureza e humanidade, tem um horizonte universal. Saídas políticas no presente vivem, muitas vezes, da memória de um tempo bom, perdido e idealizado, ao mesmo tempo mítico e histórico. Com novas configurações históricas, a reconstrução desse tempo parece possível. O imaginário do passado pode ser e é, muitas vezes, o motor para transformações da realidade presente.
Os dois países empenhados na reconstrução ou atualização do bem viver andino, Bolívia e Equador, nos fornecem poucos documentos históricos, mas fragmentos vivenciais do bem viver pré-colonial: o comunitarismo, por exemplo, e a convivência harmoniosa com o meio ambiente. Um desses poucos documentos, que nos relata fragmentos do bem viver no passado, é a “A primeira nova crônica e bom governo”, de Felipe Guamán Poma de Ayala (1535-1616?). Seu autor lamenta o bem viver andino destruído e propõe a reconstrução de um bem viver através da proposta de um “bom governo”, porém sem romper com as condições coloniais. Guamán Poma se declara cristão e descendente da linhagem incaica. O “buen Govierno”, que ele delineia, e o “buen vivir” são praticamente conversíveis. Através de inúmeros desenhos comentados com poucas palavras, Guamán Poma denuncia a traição do Evangelho e dos princípios de um bom governo. Se as estruturas do sistema colonial interromperam o bem viver andino, as estruturas neocoloniais do capitalismo globalizado bloqueiam com mais força ainda o sonho e a realização do bem viver.
O bem viver, como está descrito nos documentos programáticos do movimento indígena da Bolívia e do Equador, é um paradigma dinâmico que tem por base experiências e sabedoria dos povos originários do mundo andino. Em oposição à lógica do capitalismo neoliberal que propõe “viver melhor” com mais mercadorias que ameaçam o equilíbrio ecológico e social, o conceito do sumak kawsay propõe repartir os bens para que todos possam “viver bem”. A vida humana de todos em harmonia com a natureza é o eixo central dessa proposta.
O “Plano Nacional para el Buen Vivir” (2009-2013) do Equador nos fornece um resumo sucinto deste paradigma andino do “bem viver”. O significado profundo desse Plano está na proposta de uma ruptura conceitual do desenvolvimento baseado em crescimento e em produção cada vez mais rápida e descartável em função de lucro. Concretamente, esse Plano propõe uma ruptura constitucional e democrática para construir uma sociedade justa, diversa, plurinacional, intercultural e soberana. Em seguida, propõe uma ruptura ética e econômica e um redirecionamento dos recursos do Estado para educação, saúde e pesquisa científica. Essa ruptura deve concretizar-se através da democratização do acesso à água e à terra, ao crédito e ao conhecimento. Por fim, através de uma política social articulada com uma política econômica inclusiva e mobilizadora, o Estado deverá garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, sua dignidade como indivíduos e sua soberania como nação. Em suma, propostas razoáveis, desejáveis, aceitáveis por todos.
3. Desafio e horizonte
Qual é o regime político que essas propostas do bem viver exigem? Historicamente, o socialismo ofereceu o anarquismo de Bakunin e a ditadura do proletariado de Marx e Lenin. O socialismo democrático, se for pluripartidário, não funciona devido à permanente ameaça das “próximas eleições”. Assim não haverá continuidade. O projeto socialista será sempre substituído, em maior ou menor prazo, por um partido com interesses contrários. Se for socialismo democrático de partido único, não será democrático. Historicamente, apenas a socialdemocracia tem sobrevivido no interior do sistema capitalista, incorporada num partido de massa, com programa e comportamento partidário muito semelhantes aos de partidos não socialistas. O socialismo perdeu o primeiro round de sua realização histórica.
Como o sumak kawsay se relaciona com o sistema capitalista globalizado? Algumas de suas propostas são como freios no interior da realidade complexa e desafiadora do sistema do mercado global, mas não exigem, de imediato, rupturas sistêmicas. A Constituição Brasileira, de 1988, que garante os direitos básicos dos povos indígenas, pressupõe apenas um regime democrático; não é expressão de uma nova classe política no poder e não rompeu com o sistema capitalista. Se houver uma verdadeira isenção e separação dos poderes (legislativo, administrativo e jurídico) em face do poder econômico, com sua dinâmica de crescimento e sua capacidade de suborno, a maior parte dos Dispositivos da Constituição Federal referentes aos índios poderá ser observada (Art. 20, 22, 49, 67, 109, 129, 176, 210, 215, 231s). As lutas pelos Direitos Humanos, pela igualdade de gênero ou pelas cotas universitárias dos afro-brasileiros, em geral, não são entendidas como lutas antissistêmicas.
Por sua lógica interna, o capitalismo – sustentado pelo lucro individualizado, pela produção e consumo de sempre novos bens e pela expansão territorial – não aceita o sistema de vida e a maneira de pensar dos povos indígenas. O reconhecimento constitucional da alteridade indígena permanecerá mero formalismo enquanto não houver um Estado e uma nova classe política fortes, independentes do capital e eticamente honestos, que garantam o cumprimento das promessas constitucionais. Sendo assim, somos obrigados a nos perguntar se o “bom governo” no sistema colonial e o “bem viver” no capitalismo agroindustrial não seriam ilusões. Não estaríamos brincando com a ilusão bucólica de uma volta ao mundo pré-colonial e pré-industrial ou de uma felicidade messiânica em que o lobo da liberdade será hóspede do cordeiro da igualdade? Nesse reino, anunciado pelo profeta Isaías, “o leopardo vai se deitar ao lado do cabrito, o bezerro e o leãozinho pastam juntos, [...] e o leão, assim como o boi, comerá capim” (Is 11,6ss)?
Nem o governo Evo Morales, da Bolívia, nem o governo Rafael Correa, do Equador, como tampouco o governo Lula se aproximaram, em suas realizações, das perspectivas das novas Constituições que eles impulsionaram através dos seus respectivos partidos. Nos três países, a violência decorrente da continuidade do modelo desenvolvimentista é marcante. A corrupção não foi debelada, os movimentos e lideranças sociais foram parcialmente cooptados e a democracia não se tornou participativa.
A importância do paradigma sumak kawsay não está na realização de uma ruptura, mas na retomada de um horizonte que aponta para a necessidade dessa ruptura. A luta indígena pelo bem viver faz parte de uma luta e aliança ampla pela preservação da vida no planeta Terra. Fome, droga, energia nuclear, destruição do ecossistema e privilégios ameaçam hoje a proposta do bem viver. O interesse objetivo na concretização do sumak kawsay não é anseio de uma classe redentora, mas, sim, desafio de toda a humanidade. A todos que estão envolvidos em projetos educativos, cabe a grande responsabilidade de transformar esse interesse objetivo em consciência subjetiva disposta a lutar por um novo contrato social e uma nova qualidade de vida. Bem viver significa fazer que todos possam fazer aquilo que os meios de produção e a natureza permitem e o que o dinheiro não compra.
4. Imperativo profético
Cercado por esses desafios e conflitos estruturais, o que significa para o Cimi delinear horizontes utópicos? A partir de onde invocar imperativos proféticos? A partir das vozes dos povos indígenas ou da sociedade civil? Nem povos indígenas nem sociedade civil nem movimentos sociais falam hoje com uma voz. A alienação sistêmica está por toda parte e os gritos roucos dos que pedem parceria ou solidariedade nem sempre defendem o bem comum e o bem viver de todos.
Voltemos ao nosso ponto de partida. Em algum momento da nossa vida, a causa indígena nos comoveu como causa de Davi contra Golias, como causa dos pequenos contra os poderosos, dos que têm poucas chances de vida nessa sociedade contra os que se apropriaram dos bens da terra e da palavra. Em algum momento reconhecemos que as catequeses rudimentares que recebemos em casa ou na escola apontam para algo que assim nunca nos foi dito. Em algum momento de graça percebemos que a folhinha do doce coração Jesus, na parede da cozinha da nossa mãe, representava um revolucionário. Essa graça nos permitiu transformar os tabus, que nos foram impostos em seu nome, em Totem. Num tempo tão pobre em figuras de proa, encontramos um profeta, alguém que rasgava um horizonte num céu nublado e nos fez uma proposta que permitiu encontrar na causa dos povos indígenas a causa do Reino; nos fez encontrar no Cimi, que resgatou a nossa fé infantil, companheiros e companheiras para viver, concretamente, essa causa.
Como todo convertido, tivemos que aprender que nossa graça é vivida numa dialética social. Tivemos que distinguir entre a causa do Reino e a prática eclesial. Sempre encontramos trigo e joio. O mundo dos puros seria a monocultura do terror. A instituição “Igreja Católica”, seja Cimi, CNBB, diocese ou paróquia, nos permitiu assumir a causa dos povos indígenas, porém, seus abraços com essa causa, têm intensidades diferenciadas. A prática profética de Jesus dificilmente se torna prática institucional. Muitos conchavos e privilégios unem as instituições eclesiais ao sistema econômico, político e cultural de cada época. Parcerias entre Igreja e Estado são parcerias de conveniências para ambas as partes e não propriamente alianças de amor. O que determina a nossa possibilidade de participar dessas parcerias, como interlocutores, não é um evangelho abstrato ou uma profecia ingênua, mas a barganha em favor dos povos indígenas. Para vomitar uma pérola, muitas vezes, fomos obrigados a engolir sapos. Há certo perigo nessa atitude, o perigo do oportunismo, porque, às vezes, parece que fomos obrigados a engolir sapos e vomitamos não pérolas, mas os mesmos sapos. Max Weber nos facilita tomar as coisas como são apontando para o fato sociológico que em nenhuma instituição a prática profética representa a prática cotidiana e normal. Existem profetas nas Igrejas, mas não existe uma Igreja profética.
Olhamos para o profeta de Nazaré, que precede nossa missão e é a medida dela. Na fé da Igreja primitiva e na Escritura, o Messias Jesus não é só o horizonte da profecia do Antigo Testamento, mas também cumprimento desta profecia. O episódio da transfiguração de Jesus, no alto de uma montanha, aponta neste contexto para algo importante. Agora os discípulos não cumprem mais a sua missão sob a Lei de Moisés ou a profecia de Elias, mas na escuta do novo mandamento e do profeta definitivo, o “Filho amado”: “Escutai-o” (Mc 9,7), diz a voz divina. Ele é o cumprimento da profecia de Isaías (Is 52,10), “a salvação que vem do nosso Deus”, o profeta que anuncia o Reino, sob o signo da criança e da cruz, “um sinal de contradição” (Lc 2,34; cf. Lc 16,16), queda dos poderosos e exaltação dos humildes (Lc 1,52). Ele é a salvação samaritana, sem pratica sacrificial no Templo. Ungido no Espírito Santo (Lc 3,22), o Messias Jesus, enviado para anunciar Boa Nova aos pobres, aos presos a libertação, aos cegos a luz e aos povos indígenas a posse de sua terra.
A mensagem de Jesus não era apocalíptica. “Não falava de um reino de Deus depois da destruição deste mundo. O seu anúncio principal era o reino de Deus nesta terra para a humanidade atual”. Assim nos falava o profeta José Comblin, perseguido pelos militares, suspeito por setores eclesiais. Viveu em pobreza e nos deixou uma obra teológica que nos mostra em cada página e relevância dos pequenos, dos pobres e dos outros para o reino de Deus.
Podemos resumir a mensagem do profeta Jesus em poucas palavras. Em primeira instância, ela é força nossa e não ensinamento para os outros. Todos temos berço. Somos filhos e imagem de Deus, portanto, parentes, como os índios dizem. Por sermos irmãos e irmãs, lutamos por fraternidade e igualdade neste mundo que significa, concretamente: redistribuição dos bens e reconhecimento da alteridade. Por causa disso lutamos contra o latifúndio e o racismo como forma de negação de igualdade e alteridade essenciais.
Temos berço e temos rumo certo. Para que a injustiça e a roubalheira, neste mundo, não ficam por isso mesmo, acreditamos na ressurreição dos mortos e no juízo final: “Não pode haver justiça sem ressurreição dos mortos” (Spe Salvi, 42). A morte, para nós, não é passagem pelo rio do esquecimento, como na Grécia antiga, mas pelo rio do não esquecimento, pela memória histórica e divina. O nó indissolúvel, em que se cruzam os fios de estruturas injustas, de negação do reconhecimento da alteridade e de culpa pessoal, a nossa missão tem a tarefa de lembrar que no começo não era assim e que no final não ficará por isso mesmo. O tempo da missão profética é memória e sinal de outra vida possível, porque Deus é nossa justiça (Jr 23,6; 33,16), este Deus que nos deu parâmetros para uma vida que inclui a todos.
Numa sociedade de adaptação ao ritmo concorrencial, de privilégios, de mil réplicas de trabalho e consumo alienados, a profecia tem um papel eminentemente político e prático. Este imperativo profético se desdobra não só em crítica e denúncia, mas também e, sobretudo, na assunção positiva da gratuidade, da ascese, do despojamento; se desdobra na dimensão contra cultural da negação de consumo como freio de emergência de um projeto que impossibilita o projeto do bem viver para todos.
A luta contra cultural pelo bem viver de todos como tarefa missionária do Cimi é uma luta não só pela demarcação de terras indígenas. Lutamos por novas relações de produção e outros padrões de consumo que correspondem ao projeto da criação. Lutamos por uma relação fraterna com a natureza, nossa irmã, e pelo reconhecimento da alteridade.
Contudo, neste mundo que está sob a ditadura da equação custo-benefício, afirmamos que o reino de Deus é um dom. A rigor, não somos seus construtores; apenas seus facilitadores. Nós nos juntamos numa grande confraria aos que nestes quarenta anos do Cimi tombaram; aos do tempo antes do Cimi e depois, aos que se foram e aos que virão. Tombaram como servos e lutaram como testemunhas proféticas. Continuamos essa luta para que os povos indígenas possam de cabeça erguida, superar essa servidão e penúria que lhes, historicamente, foram e continuam sendo impostas, e para que o bem viver de todos não desapareça do horizonte da sociedade, das Igrejas e da pauta política do Cimi.
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