segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Documento Final da XIX Assembleia Geral do Cimi


“Com os povos indígenas construir o Bem Viver do planeta Terra”


Entre os dias 04 e 08 de outubro de 2011, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), já na antevéspera dos 40 anos de sua existência, realizou sua XIX Assembleia Geral em Luziânia/GO. Participaram do evento uma representação significativa dos povos indígenas, missionários/as, bispos e convidados/as. A Assembleia elegeu sua nova diretoria para o próximo quadriênio. Foram eleitos D. Erwin Krautler, como presidente, em seu segundo mandato, Ir. Emília Altini, como vice-presidente e Cleber Cesar Buzatto, como secretário geral da entidade. Desde o começo, a advertência dos povos indígenas de que “a mãe terra clama pelo Bem Viver” permeava as celebrações e análises, como lema e pano de fundo desta Assembleia.

Escutamos esse clamor da mãe terra que nos impele a um compromisso sempre mais urgente e radical. Debruçamo-nos sobre o contexto político que envolve a existência dos povos indígenas em todo o Brasil, contexto esse que impossibilita a construção dos projetos de Bem Viver desses povos.

Para eles, como ficou explícito nos depoimentos das lideranças indígenas durante a Assembleia, o Bem Viver depende fundamentalmente da posse de seus territórios tradicionais, onde possam desenvolver sua cultura material e seus rituais religiosos, espaço de convivência comunitária e partilha solidária em harmonia com a natureza e com o sagrado.

No entanto, a realidade que os cerca, nos confrontou com assassinatos, suicídios de adolescentes, ódio racial explícito, destruição de sítios e rios sagrados, despejos decretados de terras ancestrais ou confinamento em minúsculos espaços. Os projetos governamentais desenvolvimentistas com base nos grandes empreendimentos são um atentado contra a natureza e os povos indígenas. Vivemos um período de duros embates políticos e jurídicos com o Governo Federal, especialmente nos temas vinculados aos direitos constitucionais. Firmamos novamente nossa posição contra o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Estimulado e financiado pelo governo brasileiro, este programa ataca de modo violento o meio ambiente e as terras indígenas em todo o país.
Constatamos, inspirados no relatório da Presidência do Cimi apresentado na Assembléia, graves falhas do Governo Federal em relação:

- à demarcação, fiscalização e proteção das terras. Sublinhamos as situações emblemáticas vividas pelo povo Xavante da Marãiwatsédé no Mato Grosso em luta pela desintrusão do seu território invadido por fazendeiros; pelos Guarani Kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul expropriados de suas terras pelo agronegócio, vivendo em situações extremas de sobrevivência, muitos em acampamentos ao longo das estradas; pelos Pataxó Hã-Hã-Hãe da Bahia que há trinta anos aguardam a decisão do STF para reassumirem a posse de suas terras tradicionais; pelos Awá–Guajá (isolados e/ou de recente contato) e demais povos indígenas do Maranhão que sofrem com a violência dos madeireiros que devastam as suas matas e que estão com suas terras invadidas; pelos povos Tupinambá (BA), Xakriabá (MG), Krenyê (MA) e numerosos outros povos que foram expulsos de suas terras tradicionais. Das 1.023 terras indígenas existentes, apenas 360 estão regularizadas, e 322 terras continuam sem nenhuma providência administrativa para serem reconhecidas pelo Estado Brasileiro;

- aos grandes empreendimentos econômicos em terras indígenas que impactam além da vida humana, a natureza, suas águas, matas, plantas e animais. Os exemplos deste modo perverso de lidar com o meio ambiente são a transposição do Rio São Francisco, os complexos hidroelétricos do Rio Madeira e do Rio Tocantins e as demais hidrelétricas em construção ou previstas no Rio Xingu, Tapajós, Juruena, Teles Pires e Araguaia, bem como a construção e duplicação de rodovias. São aproximadamente 434 empreendimentos que atingem os territórios indígenas e geram impactos em 182 terras indígenas de pelo menos 108 povos;

- à política indigenista governamental executada: pela Funai que, sobretudo a partir de sua atual reestruturação, assume o papel de prestadora de serviços ao PAC, ou seja, uma agência para avalizar obras que afetam terras indígenas; pela Sesai, que envolta num processo de transição interminável com a Funasa, desacredita o Subsistema de Atenção à Saúde, para manter a política de assistência terceirizada. Essa precariedade da atenção à saúde indígena reflete-se em situações dramáticas como aquela reiteradamente denunciada pelos povos indígenas do Vale do Javari onde, segundo inquérito sorológico da Fundação de Medicina Tropical - AM, 87% da população sofre de hepatite provocando mortalidade sistemática; pelas Secretarias de Educação nos Estados e Municípios, no âmbito dos territórios etnoeducacionais do MEC, que continuam reproduzindo processos educacionais integracionistas;

- à proteção das terras dos Povos Indígenas Isolados que são vulnerabilizadas por projetos do PAC e continuam invadidas por madeireiros, grileiros, fazendeiros, narcotraficantes, sobretudo nas regiões de Rondônia, Norte do Mato Grosso, Sul do Amazonas, Acre e Maranhão.

Causam-nos espanto posicionamentos do Poder Judiciário, que em algumas decisões coloca em risco os preceitos constitucionais, uma vez que estes são analisados e interpretados a partir dos interesses políticos e econômicos e não à luz dos direitos dos povos indígenas. Muitos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas estão paralisados devido a decisões judiciais de diferentes instâncias da Justiça Federal.

Repudiamos os sistemáticos atentados, no âmbito do Poder Legislativo, contra a Constituição Federal com a intenção de limitar, através de projetos de lei, o alcance do Artigo 231. Existem mais de 200 Projetos de Lei (PLs), Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) e Projetos de Decretos Legislativos (PDLs) contra os povos indígenas, tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Por outro lado, os projetos de interesse dos povos indígenas, tais como o que trata do novo Estatuto dos Povos Indígenas e o que institui o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) estão engavetados.

Mais uma vez esse panorama de desrespeito e violação dos direitos indígenas nos leva a um posicionamento crítico e comprometido com a sorte desses povos, assim como com todos os povos originários de nossa Latino América.

A partir desse compromisso, solidarizamo-nos com os povos indígenas das terras baixas da Bolívia e apoiamos sua luta contra a imposição da estrada projetada pela IIRSA (Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana), para atravessaro Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure – TIPNIS, a ser construída pela empresa brasileira OAS com financiamento do BNDES. Manifestamos a nossa indignação pela violência da polícia contra os manifestantes da Marcha Indígena para La Paz. Juntamente com os indígenas solicitamos ao governo de Evo Morales o respeito ao Direito de Consulta, livre, previa e informada.
Assumimos as propostas dos representantes dos povos indígenas presentes na Assembléia:

ü       Abraçar a Campanha pelo Bem Viver dos povos indígenas do Vale do Javari, como caso emblemático da luta pelo direito à saúde digna e de qualidade, e de luta contra a extinção dos nossos povos programada de modo indisfarçável pelo capitalismo, interessado nas nossas terras, territórios e riquezas;
ü       Lutar para garantir o direito à terra, sem a qual não há Bem Viver e do qual dependem todos os outros aspectos da nossa vida: nossa cultura, tradições, costumes, culinária e rituais;
ü       Aprimorar nossas formas de mobilização, como o Acampamento Terra Livre (ATL), para repercutir nossas lutas, mudar o quadro de mal viver e denunciar a criminalizacão das nossas lideranças;
ü       Desenvolver ações de impacto para fazer valer as nossas reivindicações em prol de políticas públicas de qualidade conforme o nosso Bem Viver;
ü       Fortalecer o Bem Viver nosso enquanto visão contrária ao capitalismo, considerando eixos comuns de luta, a Mãe Terra e a Vida Plena, em sintonia e somando com as experiências de outros povos, segmentos e movimentos sociais do país, da América Latina e do Mundo.

No final dessa Assembleia, assumimos nosso compromisso com a causa indígena com as palavras de D. Pedro Casaldáliga: “Nós família do Cimi estamos convencidos de que não serão os governos de baixa democracia que resolverão os desafios maiores da maioria do nosso povo. Sabemos por experiência, que a causa indígena é uma causa que atrapalha. Os povos indígenas são inimigos do sistema. Sentimos que mesmo aproveitando as brechas que os governos atuais nos dão, a nossa luta é maior. A política indigenista não é a favor dos povos indígenas. A política agrária não é a favor do povo camponês. Sejamos conscientes. Sejamos críticos e autocríticos. E mantenhamos a esperança. Pode falhar tudo. Menos a esperança”.

Saímos dessa Assembléia tendo bebido da espiritualidade presente na memória ancestral dos povos indígenas e do Evangelho e, por isso, fortalecidos na decisão de descolonizar a vida e a história. Juntamente com todos os povos indígenas, queremos caminhar na busca do Bem Viver colaborando, assim, com a construção do Reino de Deus, aqui e agora, na perspectiva do Reino Definitivo.

Luziânia, GO, 08 de outubro de 2011.

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