terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A questão humana em Belo Monte


Por Matheus Rodrigues

Há cinco séculos, o indígena é tratado, em toda a América, como cidadão de segunda categoria, como aquele que pode sofrer violências e ter direitos violados pelas mais diversas (e insustentáveis) razões. O mais recente motivo, defendido com unhas e dentes pelo governo federal, é o desenvolvimento que será propiciado pela Usina Hidroelétrica (UHE) de Belo Monte.


Desde que o primeiro europeu pisou nas terras do “novo continente” a população indígena padeceu, subjugada pelos conquistadores de ontem e de hoje. De acordo com o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em um século a partir da chegada dos “conquistadores” (tendo a designá-los como genocidas) foram dizimados 70 milhões de nativos, de um total de 80 milhões. A partir daí veio a escravidão, triste momento na história de nossa América.

Os momentos posteriores, entretanto, não foram melhores. Ainda que a escravidão indígena tenha sido oficialmente extinta (substituída pela escravidão dos negros trazidos da África), continuaram os tratamentos desumanos, as condições subumanas de sobrevivência e a endêmica criminalização de sua cultura. A população nativa do continente foi constantemente explorada e vilipendiada, com vistas à obtenção de ouro, prata, madeira, especiarias e outras riquezas que logo partiam para bancar a nobreza européia. Foi assim durante séculos, com os indígenas sendo sempre relegados aos piores trabalhos e aos piores locais de moradia, tendo acesso sempre aos alimentos de pior qualidade. Seres humanos de última classe, em resumo.

Com o fim do colonialismo europeu em terras americanas, os diversos governos patrimonialistas prosseguiram com a criminalização das nações indígenas, e no Brasil não foi diferente. Ao longo dos anos, os indígenas, vistos sempre como primitivos, bárbaros, como seres que estão à espera da evolução, que será trazida pelo homem branco salvador, viram suas terras serem roubadas (tanto pelo Estado quanto por particulares), e se viram diante de uma nova cultura, hegemonizante, que subjugava sua cultura nativa. Com a incursão da população brasileira território nacional adentro e com as grandes obras, públicas ou não, que tiveram lugar no interior do país, as nações indígenas foram sendo acuadas, expulsas para pequenos rincões onde a qualidade de vida é extremamente baixa, em razão das condições impostas pelo modelo de desenvolvimento explorador desde sempre instituído: nas zonas de povoamento indígena, vemos no mais das vezes miséria, subnutrição e medo. Medo, sim. Medo de que o Estado os expulse de seus lares ancestrais sem lhes dar uma mínima garantia; medo dos cada vez mais constantes ataques de jagunços contratados por latifundiários, como foi o caso dos recentes atentados sofridos pelos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que deixaram um rastro de mortes e desaparecimentos. Esse movimento de “guetização” indígena foi especialmente brutal durante a ditadura civil-militar de 1964, que perseguiu milhares de indígenas e foi responsável pelo desaparecimento de diversas aldeias e nações em nome de projetos faraônicos tais como a Transamazônica e as UHEs de Tucuruí e Itaipu. Com a entrada de fato do neoliberalismo no Brasil, aqueles que já eram historicamente oprimidos foram submetidos a níveis ainda maiores de truculência.

Quando o governo Dilma, pertencente a um partido que se diz de esquerda, insiste em levar à frente um projeto como Belo Monte, repudiado não apenas por ambientalistas, mas por outros segmentos (técnicos, inclusive) da sociedade, fica explícita a continuidade do modelo de desenvolvimento repressor, criminalizador e ambientalmente insustentável vigente há cinco séculos no Brasil, e que foi potencializado pela ditadura e pelo neoliberalismo.

Entretanto, é preocupante que o discurso contra Belo Monte se paute (inclusive em boa parte da esquerda) majoritariamente pelo discurso econômico e/ou energético. Ir por este caminho acaba, de certo modo, por perpetuar a lógica vigente de que os direitos fundamentais dos indígenas são assunto de segundo plano. O fundamental é discutir, além do desmatamento absurdo que terá lugar na região do Xingu, o genocídio das populações indígenas que há 500 anos está em curso; é discutir acerca dos milhões de indígenas que já foram negativamente afetados pelas ações dos diversos governos brasileiros, e acerca dos outros milhares que serão afetados por Belo Monte, que serão desalojados contra sua vontade (o que, vale lembrar, é condenado pela ONU), que serão privados de seu direito elementar à cultura. Que terão violada a sua dignidade enquanto seres humanos. É por isso que devemos entender que as populações indígenas são também vítimas do capitalismo sufocante, e que devemos nos propor a trabalhar na subversão dessa realidade de opressão e criminalização.

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