“A portaria abre as ‘porteiras’ das terras indígenas para que
elas sejam exploradas de diversas formas seja pelo Estado brasileiro
seja por empresas particulares”, aponta o secretário executivo do
Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Confira a entrevista.
A portaria 303 da Advocacia Geral da União – AGU, que propõe novas regras para a demarcação das terras indígenas,
“não tem fundamentação legal”, e caso seja consolidada criará uma
“situação de vácuo jurídico e de grande insegurança jurídica e
política”, avalia Cleber Buzatto, secretário executivo
do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. Segundo ele, entre os
equívocos propostos pela portaria está o de revisar terras indígenas que
já foram demarcadas. “A portaria tem efeito retroativo no sentido de
que essas condicionantes se aplicariam inclusive a procedimentos já
concluídos. Nós, evidentemente, temos uma interpretação totalmente
diversa e esperamos que o próprio STF confirme a interpretação que a
assessoria jurídica do Cimi e outras organizações têm”.
De acordo com Buzatto,
a demarcação e o reconhecimento das terras indígenas deve seguir
estritamente o que determina os artigos 231 e 232 da Constituição
Federal. “Ali estão todos os critérios que confirmam quais são as terras indígenas
tradicionais no país e essas terras precisam ser, pelo Estado
brasileiro, reconhecidas e demarcadas”, esclarece em entrevista
concedida à IHU On-Line por telefone. Segundo ele,
ainda 330 processos estão em curso para demarcar novas terras indígenas.
Entretanto, conforme dados do Cimi junto às comunidades indígenas,
outros “340 processos devem ser abertos para reconhecer o direito dos
povos e efetivar a demarcação dessas terras”.
Cleber César Buzatto
(foto abaixo) é graduado em Filosofia. Atualmente trabalha como
secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a portaria 303 determina em relação às terras indígenas? Como o Cimi a interpreta?
Cleber Buzatto
– Nós recebemos a notícia com muita indignação, porque se trata de uma
peça política que tem um conteúdo extremamente danoso aos povos
indígenas e aos seus direitos. É uma portaria que, no nosso
entendimento, não tem fundamentação legal, está situada em um contexto
justamente de julgamento por parte do Supremo Tribunal Federal – STF, de
embargos de declaração relativos à petição 3388 e, portanto, ela é uma
iniciativa do Executivo que, no nosso entendimento, se antecipa ao
julgamento do STF na tentativa de influenciar seus ministros a decidirem
de acordo com o que o próprio poder Executivo está entendendo que sejam
os efeitos das condicionantes. O Executivo faz isso sob a pressão e o lobby dos fazendeiros e dos grandes proprietários de terras do país.
IHU
On-Line – Diante da portaria 303, como ficam as terras indígenas já
homologadas e demarcadas? Elas poderão ser questionadas na Justiça?
Vislumbra alguma insegurança jurídica?
Cleber Buzatto – A
consolidação dessa portaria criaria uma situação de vácuo jurídico e de
grande insegurança jurídica e política, porque no conteúdo da portaria,
o poder Executivo diz que, inclusive processos e procedimentos já
concluídos de demarcação, deveriam ser revistos de acordo com o que eles
entendem que as condicionantes dizem ou diriam. Então a portaria 303
generaliza o entendimento sobre as condicionantes, ou seja, o poder
Executivo está se antecipando e dizendo que as 19 condicionantes
valeriam para todas as terras indígenas do país. Ao mesmo tempo, a
portaria tem efeito retroativo no sentido de que essas condicionantes se
aplicariam inclusive a procedimentos já concluídos. Nós, evidentemente,
temos uma interpretação totalmente diversa e esperamos que o próprio
STF confirme a interpretação que a assessoria jurídica do Cimi e outras
organizações têm. Inclusive juristas renomados já se manifestaram
dizendo que as condicionantes são relativas única e exclusivamente ao
caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, e tem
vigência a partir do julgamento transitado em julgado pelo STF. Então,
não consideramos, em hipótese alguma, a possibilidade que elas sejam
generalizantes e tenham efeito vinculante, e o próprio Supremo tem
decidido nesse último semestre questões apontando neste sentido de que
as condicionantes não tenham efeito vinculante e que não se apliquem de
forma retroativa. Portanto, esperamos que o STF, ao julgar os embargos e
a declaração, venha a confirmar esse entendimento.
IHU On-Line – Então as 19 condicionantes só foram válidas para demarcar as terras de Raposa Serra do Sol?
Cleber Buzatto –
Esse é o nosso entendimento, o qual esperamos ver consolidado pelo
Supremo Tribunal Federal ao julgar o caso. Isso deve acontecer nos
próximos meses. O julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do Sol
ainda não foi concluído pelo STF, por isso essa portaria é totalmente
inconsequente, não tem sentido algum no campo jurídico e esperamos que
ela seja revogada, que o governo federal reconheça esse atropelo. Ao
mesmo tempo, esperamos que o STF, ao julgar os embargos e a declaração
da petição 3388, confirme o entendimento de que essas condicionantes se
aplicam, especificamente, ao caso da terra indígena Raposa Serra do Sol.
IHU On-Line – Quais são os critérios para a demarcação de terras indígenas?
Cleber Buzatto –
A demarcação e o reconhecimento das terras indígenas segue estritamente
o que determina a Constituição Federal nos artigos 231 e 232,
especialmente o artigo primeiro deles. Ali estão todos os critérios que
confirmam quais são as terras indígenas tradicionais no país e essas
terras precisam ser, pelo Estado brasileiro, reconhecidas e demarcadas.
Para oficializar o reconhecimento da tradicionalidade de uma terra
indígena, existe um procedimento administrativo que é posto em prática.
Esse procedimento administrativo é regulamentado pelo decreto 1775 de
1996, que estabelece uma série de passos que têm a finalidade de
reconhecer e de fazer o processo de demarcação de uma terra indígena no
país.
IHU On-Line – Quantas terras indígenas ainda precisam ser demarcadas?
Cleber Buzatto – A Funai está com o processo aberto para cerca de 330 terras indígenas, mas os dados do Cimi, que se baseiam justamente nas reinvindicações dos povos indígenas
do país, demonstram que, além desses 330 processos que estão em curso,
outros 340 processos devem ser abertos para reconhecer o direito dos
povos e efetivar a demarcação dessas terras.
IHU On-Line –
Outro ponto polêmico da portaria 303 diz respeito à impossibilidade de
ampliar as terras indígenas já demarcadas. Como fica, nesse sentido, as
terras ocupadas pelos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul?
Cleber Buzatto –
Nós entendemos que esse também é um erro do poder Executivo. Sabemos
que diversos povos no Brasil vivem efetivamente sem terra, e o caso dos Guarani-Kaiowá,
no Mato Grosso do Sul, é emblemático nesse sentido. Eles vivem uma
situação de extrema vulnerabilidade social, política, econômica. Essa
tese de não ampliar as terras já demarcadas é defendida pelo setor do
agronegócio, seus sindicatos e grandes proprietários rurais.
Nós
entendemos que o poder Executivo não deve acatar essas teses, porque
elas somente favorecem o agronegócio e dificultam ainda mais a
implementação dos direitos dos povos indígenas de terem suas terras
tradicionais reconhecidas e demarcadas no país.
IHU On-Line – Em que medida a portaria restringe a autonomia dos índios em seu território?
Cleber Buzatto – Nesse sentido a portaria 303
é muito danosa, porque, além de dificultar o processo de reconhecimento
e demarcação das terras indígenas, ela também limita o acesso e o
direito dos povos de usufruirem das terras já demarcadas. A portaria
abre, digamos assim, as “porteiras” das terras indígenas para serem
exploradas de diversas formas seja pelo Estado brasileiro seja por
empresas particulares, no sentido de viabilizar infraestrutura para
deslocamento de commodities agrícolas até os portos do país, e para
viabilizar a exploração mineral ou exploração de recursos hídricos para
produção de energia. Portanto, essa portaria pretende viabilizar
justamente o modelo agroexportador vigente no país.
IHU On-Line – Caso consolidada, a portaria 303 poderá agravar os conflitos fundiários envolvendo a posse das terras indígenas?
Cleber Buzatto
– Nós entendemos que ela não deverá ser consolidada. Ela é tão absurda
juridicamente que deverá ser cassada. Se o governo brasileiro
politicamente não retroagir, não tomar uma decisão política de revogar
essa portaria, será possível, sim, nos tribunais o seu cancelamento.
Entendemos que se trata de uma peça jurídica sem fundamento legal, mas
na hipótese da consolidação, ela traria ainda mais prejuízos nesse
sentido de agravar os conflitos.
IHU On-Line – Que
relações estabelece entre a PEC 215 e a portaria 303? Nesse sentido,
como vê a atuação do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas?
Cleber Buzatto – O poder Executivo, por ocasião da tramitação da PEC 215, na Comissão de
Constituição
e Justiça, manteve-se totalmente omisso. A admissibilidade da PEC foi
aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça no primeiro semestre
deste ano. A PEC retira o direito de última palavra do poder Executivo
no sentido de reconhecer a demarcação de terras indígenas, e passa para o
poder Legislativo. Essa portaria, no nosso entendimento, é ainda mais
grave, porque o próprio Executivo coloca empecílios para dificultar
ainda mais os procedimentos de demarcação das terras indígenas. A PEC 215 não abrange as terras já reconhecidas e com procedimentos de demarcação finalizados. A portaria 303,
por sua vez, abarca, atinge, inclusive, essas terras que já foram
regularizadas no país. Então, a portaria está fazendo aquilo que os
ruralistas não fizeram via PEC 215. Há um ataque duro, sistemático por parte do agronegócio no poder Legislativo, e o instrumento utilizado para isso é a PEC 215. Ao mesmo tempo há um ataque duro e lastimável por parte do Executivo, que está usando a portaria 303 como um instrumento de ataque aos direitos dos povos indígenas, atingindo as terras já demarcadas no país.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Cleber Buzatto – Os povos indígenas precisam ter ciência da gravidade da portaria 303 e
deste momento conjuntural político que estamos vivendo. Está ocorrendo
uma verdadeira guerra contra os povos indígenas, a qual é puxada pelos
setores que querem explorar as terras indígenas e os próprios povos
indígenas do país. Infelizmente, o governo brasileiro e as instituições
estão contribuindo nesse processo.
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