Gilvander Luís
Moreira[1]
Antonio Julio de
Menezes Neto, prof. Dr. da FAE[2]/UFMG me enviou os
manuscritos do livro dele A Ética da Teologia da Libertação e o Espírito
do Socialismo no MST (Ed.
UFMG, Belo Horizonte, 2012). Junto veio um
bilhete que dizia: “Gilvander, sabendo que tem muito de você no livro, convido-lhe para apresentar esse novo livro
nosso.” Li os manuscritos com carinho e atenção. E fiz a apresentação que
segue, abaixo.
Primeiro, o livro
acordou em mim minha história pessoal, pois é um alento a quem sofreu (ou
sofre) e muitas vezes não sabe porque sofre. Sou o que sou e faço o que faço,
em grande parte, porque nasci em uma família sem-terra. Na minha infância senti
o que é pertencer à classe dos camponeses empobrecidos. Comecei a sentir
injustiça quando, junto com minha família, ao tocar roça à meia, via o
patrão-fazendeiro levar 50% da nossa safra e quase a outra metade também para
pagar a dívida que tínhamos acumulado do plantio à colheita. Dentro de mim
gritava: “isso não é justo. Deus não quer isso.” O fazendeiro ficar com quase
toda nossa produção só porque dizia ser o dono da terra?! O suor derramado era
muito para ficar só com um pouquinho da produção.
A indignação diante
da injustiça social me levou a entrar para o seminário, querendo ser padre. O
curso de filosofia na UFPR[3], com forte cunho
marxista, fortaleceu minha vocação. O filósofo Karl Marx me ajudou a
compreender porque os pobres sofrem tanto e a descobrir pistas de lutas para
superação da pobreza. Aí passei a ser discípulo do camponês Jesus de Nazaré e
do intelectual orgânico Karl Marx. O ensinamento e práxis do Galileu aquece meu
coração com uma utopia: lutar para construir o reino de Deus a partir dos pobres,
aqui e agora. A filosofia de Marx é óculos e colírio que me fazem ver de forma
crítica a opressão que recai sobre os pobres na sociedade capitalista. Por
coração (paixão), sou cristão; por cabeça (razão), sou marxista. Ideal cristão
e marxista: a convivência social deve ser justa e solidária. Ninguém pode ser
excluído e nem marginalizado.
Marx disse: “A religião é
ópio do povo”. Interpretoses sobre esta afirmação tem distanciado e gerado uma
montanha de preconceitos mútuos entre cristãos e socialistas. O livro de
Antonio Julio ajuda muito na superação de tais preconceitos. Convem recordar
que a afirmação de Marx não tem valor ontológico como se Marx quisesse dizer
“toda e qualquer religião, independentemente do seu perfil, é intrinsecamente
alienadora.” Marx jamais quis afirmar isso. Ele teve a coragem de denunciar as
religiões históricas que andam de braços dados com os poderes opressores.
Antonio Julio, corretamente, pondera: “Marx
realiza uma crítica concreta, baseada em estudos acerca de relações sociais e
econômicas históricas e, não, uma crítica abstrata da religião.”
Um cozinheiro dos
frades carmelitas em Houston, Texas, nos Estados Unidos, me disse, em agosto de
1997: “Sou latino-americano, mas
participei da guerra do Vitnã defendendo os Estados Unidos e Deus.” Ele retirou do bolso uma nota de dólar, me
mostrou e disse: “está escrito
aqui “we trust in God” (“nós acreditamos em Deus”). Lá no Viatnã era a guerra
entre o mundo ateu e o mundo crente, a guerra entre Deus e o demônio. Estávamos
lá defendendo não apenas os Estados Unidos, mas Deus. Queríamos evitar que os
ateus comunistas e o mal tomassem conta do mundo.” Ao ouvir isso,
boqueaberto, entendi que ao se declarar teoricamente ateu o “socialismo real”
traiu Karl Marx, pois entregou um argumento de ouro aos capitalistas que, ateus
na prática, se sentem defensores de Deus na terra, mas na realidade são arautos
de um ídolo: o deus capital/mercado. O livro de Antonio Júlio A Ética da Teologia da Libertação e o Espírito
do Socialismo no MST que
sugiro a leitura ajuda a evitar que massacres em nome de Deus, como a
Guerra do Viatnã, se repitam.
O
livro pressupõe Ética como uma categoria análoga, que não tem conceito único.
Entende ética como um jeito de conviver que encarna a regra de ouro: “Não faça
aos outros aquilo que não quer que lhe seja feito” (Mateus 7,12). Quatro
pontos, vivenciados pelas CEBs e pelo MST, são imprescindíveis para um agir
ético segundo a Teologia da Libertação e o espírito do socialismo: Pensar e
agir: a partir do empobrecido, de forma coletiva e participativa, a partir de
toda a biodiversidade, superarando assim o antropocentrismo, e a partir de um
modelo econômico justo e sustentável ecologicamente.
Karl Marx dizia que “o lugar social determina
o lugar epistemológico”, ou seja, nossos olhos, em última instância, não estão
no nosso rosto, mas nos nossos pés. Pensar e agir a partir do empobrecido –
pobre, mulher, negro, indígena, criança, idoso, deficiente físico e/ou mental, homossexual,
governado, divorciada, mãe Terra, irmã água, biodiversidade, outra
religião/igreja etc - do enfraquecido, do pequeno - é encarnar a regra de ouro.
O livro recorda
Paulo Freire, Francisco Julião, Mariátegui, padre Camilo Torres e tantos outros
que entenderam a íntima relação que há entre Cristianismo e Socialismo, como
Rosa Luxemburgo, que, ao analisar a religião dos primeiros cristãos, conclui:
“na prática os primeiros apóstolos cristãos eram fervorosos “comunistas”.”
As entrevistas
realizadas para o livro de Antonio Julio revelam a complexidade das relações
entre cristianismo e socialismo. Demonstram também que ainda persistem
preconceitos de ambos os lados: tanto entre militantes socialistas do MST
quanto entre cristãos com sensibilidade social. Se tivesse sido entrevistado
camponesas/ses da base do MST é provável que seria verificada uma insidência
maior da fé cristã, segundo a Teologia da Libertação, como motivadora de
engajamento nas lutas propostas pelo MST. Intuo que entre os militantes do MST
predomina o espírito socialista, mas entre as camponesas/es da base do MST
ainda predomina a fé cristã e uma ética inspirada na Bíblia, interpretada de um
jeito popular, militante e transformador.
Arrisco dizer que se
as necessidades materiais são o que dá mais liga para a coesão entre os Sem
Terra em uma ocupação até a conquista da terra, o cultivo dos valores de uma fé
libertadora, segundo a Teologia da Libertação, têm mais fôlego para sustentar a
perseverança em um projeto socialista. Motivações filosóficas e sociológicas na
linha do marxismo são imprescindíveis, mas insuficientes. Ainda em 1968, um
comunista disse “no Brasil e na América Latina, com um povo eminentemente
religioso é impossível fazer revolução socialista sem a Bíblia.” Acrescento,
hoje: sem uma fé libertadora no Deus da vida, que combina a fina flor da
filosofia de Marx com a fina flor de uma Teologia da Libertação atualizada.
De fato, a fé, em si mesma, é algo ambíguo, pode
libertar ou oprimir. No fundo não basta ter fé. Depende que tipo de fé se
cultiva. A questão central não é ter ou não ter fé, mas que tipo de fé ter?
Importa incorporar uma fé libertadora como instrumento
que pode levar à conscientização do valor da vida, a não submissão às
condições de opressão. Trata-se de ter a fé de Jesus de Nazaré e não apenas ter
fé em Jesus.
Em seis capítulos bem
encadeados, partindo da fé cristã, no livro está uma retrospectiva da Teologia
da Libertação e dos principais traços do socialismo. Passa pelo nascimento e
atuação da Comissao Pastoral da Terra, até desaguar na criação e evolução do MST,
com uma bibliografia invejável, Antonio Julio reflete com destreza, em uma
linguagem acessível, as relações existentes entre ética da Teologia da
Libertaçao e espírito do socialismo no MST.
Enfim, trata-se de
um livro que demonstra como uma fé libertadora, segundo a Teologia da
Libertação, pode impulsionar lutas sociais transformadoras que necessariamente
deve levar à superação do capitalismo e à construção de um socialismo segundo
Marx e as especificidades históricas nossas. A quem tiver acesso ao livro, boa
leitura.
Belo Horizonte,
MG, Brasil, 23 de julho de 2012.
[1] Frei e padre Carmelita, mestre em Exegese Bíblica,
professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBs, CEBI, SAB e Via
Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
- www.gilvander.org.br – facebook:
Gilvander Moreira
[2] Faculdade de Educação da UFMG.
[3] Universidade Federal do Paraná.
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