Durante décadas, a esquerda conseguiu sustentar uma certa hegemonia
no campo cultural nacional. Mesmo na época da ditadura, tal hegemonia
não se quebrou. Vivíamos em uma ditadura na qual era possível comprar
Marx nas bancas e músicas de protesto ocupavam o topo das paradas de
sucesso. Essa aparente legalidade que visava desarticular mobilizações
mais profundas da sociedade nacional.
A ditadura brasileira compreendeu rapidamente que não era necessário
um controle total da cultura. Os nazistas usaram um modelo parecido
quando ocuparam Paris. Um controle parcial bastava, com direito a
censura e perseguição em momentos arbitrariamente escolhidos. Dessa
forma, liberdade e restrição confundiam-se em uma situação cada vez mais
bizarra de anomia e desorientação da crítica.
Deve, porém, ter pesado no cálculo da ditadura a compreensão de que o
custo para quebrar a hegemonia da esquerda no campo da cultura seria
alto demais. Neste caso, melhor operar por intervenções cirúrgicas.
Durante os anos 50 e 60, o País vivera uma impressionante consolidação
cultural e intelectual que continuaria dando frutos nas próximas
décadas. Colaborou para a propagação dessa hegemonia na classe média
brasileira a guinada progressista da Igreja Católica, feita a partir do
pontificado de João XXIII e do Concílio Vaticano 2º.
Com o fim da ditadura, a força cultural da esquerda
permaneceu. Nossos jornais, por exemplo, seguiam o esquizofrênico
princípio: conservador na política, liberal na economia e revolucionário
na cultura. Mesmo que figuras como Paulo Francis e José Guilherme
Merquior estivessem constantemente a representar o pensamento
conservador, suas vozes eram em larga medida minoritárias. Vale lembrar
que eles não representavam o conservadorismo mais puro e duro, com
direito a pregação moralista de costumes e relação com os setores mais
reacionários da Igreja.
Poderíamos acreditar que a perda de tal hegemonia seria resultado
direto da queda do Muro de Berlim. Sem desmerecer o fenômeno, não é
certo, no entanto, que ele tenha papel tão determinante. Pois vale
lembrar como a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a
emulação do centralismo do Partido Comunista, com sua orientação
soviética. Na verdade, as causas devem ser procuradas em outro lugar.
Primeiro, há de se lembrar como, desde o fim dos anos 80, as
universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores
dispostos a desempenhar o papel de intelectuais públicos. Os
intelectuais que tínhamos vieram da geração que entrou na universidade
nos anos 70. Geração que viveu de maneira brutal a necessidade de
mobilização política. As gerações que vieram compreenderam-se com uma
certa timidez. Elas, em larga medida, foram marcadas pelo desejo de agir
no âmbito mais restrito da universidade.
Segundo, há de se colocar a perda da hegemonia
cultural como um dos sintomas da era Lula. Do ponto de vista político, o
esforço da classe intelectual brasileira parece ter se esgotado com a
eleição do ex-metalúrgico. Boa parte dos descaminhos do governo foi
colocada na conta da legitimidade dos intelectuais que um dia o apoiaram
ou que continuaram apoiando. O simples abandono do apoio não foi uma
operação bem-sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento
suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Por outro lado, a
repetição reiterada do lado bem sucedido do governo soava, para muitos,
como estratégia para diminuir a força crítica diante dos erros, que não
eram mais comentados no espaço público, devido ao medo de
instrumentalização pela mídia conservadora.
Aos poucos, parte da mídia criou seus intelectuais conservadores,
repetindo, algumas dezenas de degraus abaixo, um fenômeno que os
franceses viram nos anos 70 com os nouveaux philosophes. Como
se não bastasse, o próprio governo foi paulatinamente se afastando da
órbita dos intelectuais de esquerda. A troca de comando do Ipea, por
exemplo, com o convite ao economista liberal Marcelo Néri, está longe de
ser um acontecimento isolado. Há de se notar como este governo é, desde
os tempos de Fernando Henrique Cardoso, aquele que tem menos
intelectuais em seus quadros. Sequer o ministro da Educação é alguém
vindo da vida universitária (como foram Paulo Renato Souza, Cristovam
Buarque e Fernando Haddad).
Nesse contexto, sela-se uma situação nova no Brasil. Pela primeira
vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural. Há de se
compreender como chegamos a esse ponto, já que este artigo é apenas um
tateamento provisório.
As aspas e o nome esquerda no título são minhas.
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