Por Sara Nany
Recursos
naturais preservados podem, em breve, ser sinônimo de dinheiro e, quem
sabe, da aplicação prática do conceito de desenvolvimento sustentado.
Países que não têm que diminuir suas emissões de dióxido de carbono (CO2),
segundo normas preliminares (ainda não ratificadas) estabelecidas pela
Conferência das Partes, realizada na cidade de Quioto, no Japão, em
1997, podem desenvolver projetos com o objetivo de emitir as chamadas
CERs (Reduções Certificadas de Emissões, tradução da sigla em inglês).
Os CERs são derivativos financeiros, ou créditos, interessantes às
empresas dos países que devem, obrigatoriamente, reduzir as emissões de
CO2, o mais nocivo de todos os gases de efeito estufa. No
entanto, mais do que entender esse processo, é preciso também
compreender o que pode estar implícito na onda do crédito de carbono, o
qual muitos teimam em chamar de commodity.
Para
entender a estrutura básica desse processo, basta voltar à década de
80, quando estudos científicos passaram a levantar suspeitas de que a
temperatura média do planeta estaria aumentando. A partir dessas
suspeitas, o Programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente (Pnuma) e a
Organização Metereológica Mundial criaram o IPCC (Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, sigla em inglês). Foram as
conclusões dos estudos do IPCC sobre mudanças climáticas que deram
apoio científico à Framework Convention on Climate Changes
(Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre a Mudança do Clima), a qual
foi assinada por cerca de 175 países, durante a Rio 92. Com o surgimento
dessa Convenção, também conhecida como FCCC, seus países signatários
passaram a reunir-se periodicamente para discutir e tentar solucionar o
aumento da temperatura da Terra.
Concluindo
que a principal causa das mudanças climáticas pelas quais passa o
planeta é o aumento da concentração de gases que provocam o efeito
estufa, a Conferência das Partes chegou à proposta do Protocolo de
Quioto. É nesse Protocolo que os países em desenvolvimento, e que
mantêm, ao menos relativamente, preservados os seus recursos naturais,
podem passar a se inspirar para desenvolver projetos visando
sustentabilidade social e ambiental. Isso porque, a essência do
Protocolo determina que quem polui deve assumir financeiramente as
conseqüências disso. Assim, quem mais poluiu desde a Revolução
Industrial (os países que hoje são chamados desenvolvidos) deverá pagar
pelos prejuízos causados ao ambiente, ou compensar essa falta
investindo, por exemplo, na recuperação e manutenção de áreas verdes,
cuja maior parte ainda está nos países pobres.
Seqüestro do Carbono
Considerando a incalculável quantidade de dióxido de carbono já emitida por esses países no decorrer das décadas, é simples imaginar que a conta do prejuízo é bastante alta. Assim, para amenizar o seu pagamento, o Protocolo de Quioto disseminou a idéia do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e das CERs. O objetivo do MDL é a busca de alternativas de tecnologias limpas (não-poluidoras) para, por exemplo, a geração de energia, reduzindo as emissões de CO2 na atmosfera. Há também os projetos voltados para a área florestal, que devem ajudar a diminuir o CO2 presente na atmosfera pela absorção feita pela vegetação através da fotossíntese. É o que se chama de "seqüestro do carbono".
Para
entender o que significam o MDL e as CERs é preciso ter clara a divisão
existente entre os países, e que ficou estabelecida no Protocolo de
Quioto. Eles estão divididos em dois grupos: os que precisam reduzir
suas emissões de poluentes e aqueles que não estão obrigados a tais
reduções. O Brasil, assim como outros países em desenvolvimento que não
precisam diminuir suas emissões de dióxido de carbono, pode vender essa
redução através dos créditos de carbono conseguidos com as CERs.
As
transações internacionais ao redor dos créditos de carbono já estão
acontecendo. No início de julho, a Holanda enviou um representante do
seu Ministério do Ambiente e Desenvolvimento Urbano para negociar
créditos de carbono com governo e empresários brasileiros. A Holanda é
um dos 39 países que estão obrigados pelo Protocolo de Quioto a reduzir,
de 2008 a 2012, emissões de dióxido de carbono e outras substâncias
nocivas a um índice 5,2% menor do que o índice global registrado em
1990. A iniciativa holandesa pode render 250 milhões de euros, que serão
destinados à redução de 200 milhões de toneladas de carbono. É certo
que os países que têm tomado a dianteira nessas transações financeiras
internacionais estão em vantagem sobre os demais. Os preços da tonelada
de carbono ainda não foram fixados pelo mercado.
Perigo
Até agora tudo parece estar em pleno acordo com as regras do capitalismo, porém há, ainda, muitas perguntas sem respostas. Quem são os donos, os avalistas e os auditores dos créditos de carbono? Quem será beneficiado pelos créditos? Esse modelo irá beneficiar o meio ambiente e as camadas mais pobres da população ou os empresários e donos do poder político e econômico dos países mais ricos?
Para
a economista Amyra El Khalili, presidente da ONG CTA (Consultant,
Trader and Adviser), o que existe hoje é, na verdade, uma grande
confusão entre os conceitos de commodity ambiental e crédito de
carbono. Segundo ela, um conceito nada tem a ver com o outro, e o cerne
da confusão pode estar na junção das palavras "commodity" e "ambiental". A tradução ao pé da letra do termo commodity
é: mercadoria, aquilo que é vendido para a obtenção de lucro, ou,
ainda, aquilo que é comprado e vendido numa bolsa de mercadoria. "Uma commodity
visa o lucro imediato, portanto é algo contrário ao meio ambiente, mais
precisamente a sua conservação", explica a economista. "O carbono não é
uma commodity porque as suas emissões têm de ser reduzidas. Se fosse uma commodity,
o carbono teria de visar o lucro e, para tanto, sua emissão deveria ser
incentivada. Quanto mais toneladas de carbono fossem emitidas, maior
seria o seu preço de mercado". Por essas razões, o tal seqüestro de
carbono tem de ser entendido como um processo e não como uma commodity.
Khalili explica que unir as palavras commodity
e ambiental não é tarefa fácil. "Os beneficiários, que são os países em
desenvolvimento, têm de estar no topo da discussão. Só vamos conseguir
fazer uma commodity ambiental quando se resolver o problema da
exclusão social existente principalmente nos países pobres", avalia a
economista. Para ela, o proprietário da commodity ambiental tem
de ser a comunidade, o povo, a nação, e deve visar o "lucro social", a
criação de um ambiente sustentado e equilibrado entre necessidades
humanas e conservação de recursos naturais.
Os
produtos que resultam de projetos para a conservação de recursos
naturais (como a madeira), e cujo público beneficiado é a própria
comunidade responsável pelo seu manejo, pode ser considerado uma commodity
ambiental. Ela também pode ser financeira quando beneficia um grupo de
empresários ou uma empresa. Porém, Khalili enfatiza que a ambiental deve
estar sempre na base de sustentação da estrutura da commodity
financeira. "O mundo todo já tomou o rumo da degradação seguindo este
sistema. Há exclusão social e fome por toda a parte. Há fraudes e
corrupção nas maiores empresas do mundo. Se o mercado financeiro
internacional está falido, porque devemos continuar acreditando neste
modelo?"
Até agora, o
que se tem feito com relação à comercialização de créditos de carbono é
o inverso disso. Os créditos são títulos que podem favorecer
empresários especuladores do mercado financeiro de países pobres ou
ricos. Os excluídos correm o risco de ficar de fora desse processo.
"Nossos recursos naturais não podem ser comercializados como créditos de
carbono. É preciso esclarecer quem vai ser responsável pelo controle
desse mercado. A sociedade e a mídia precisam participar desse debate, e
exigir que as commodities ambientais não tomem o rumo da simples
repetição e perpetuação de um modelo econômico e financeiro falido, no
qual o bem maior é o dinheiro e não a qualidade de vida", conclui a
economista.
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