quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Quem será beneficiado pelos créditos de carbono?

Por Sara Nany

Recursos naturais preservados podem, em breve, ser sinônimo de dinheiro e, quem sabe, da aplicação prática do conceito de desenvolvimento sustentado. Países que não têm que diminuir suas emissões de dióxido de carbono (CO2), segundo normas preliminares (ainda não ratificadas) estabelecidas pela Conferência das Partes, realizada na cidade de Quioto, no Japão, em 1997, podem desenvolver projetos com o objetivo de emitir as chamadas CERs (Reduções Certificadas de Emissões, tradução da sigla em inglês). Os CERs são derivativos financeiros, ou créditos, interessantes às empresas dos países que devem, obrigatoriamente, reduzir as emissões de CO2, o mais nocivo de todos os gases de efeito estufa. No entanto, mais do que entender esse processo, é preciso também compreender o que pode estar implícito na onda do crédito de carbono, o qual muitos teimam em chamar de commodity.

Para entender a estrutura básica desse processo, basta voltar à década de 80, quando estudos científicos passaram a levantar suspeitas de que a temperatura média do planeta estaria aumentando. A partir dessas suspeitas, o Programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente (Pnuma) e a Organização Metereológica Mundial criaram o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, sigla em inglês). Foram as conclusões dos estudos do IPCC sobre mudanças climáticas que deram apoio científico à Framework Convention on Climate Changes (Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre a Mudança do Clima), a qual foi assinada por cerca de 175 países, durante a Rio 92. Com o surgimento dessa Convenção, também conhecida como FCCC, seus países signatários passaram a reunir-se periodicamente para discutir e tentar solucionar o aumento da temperatura da Terra. 

Concluindo que a principal causa das mudanças climáticas pelas quais passa o planeta é o aumento da concentração de gases que provocam o efeito estufa, a Conferência das Partes chegou à proposta do Protocolo de Quioto. É nesse Protocolo que os países em desenvolvimento, e que mantêm, ao menos relativamente, preservados os seus recursos naturais, podem passar a se inspirar para desenvolver projetos visando sustentabilidade social e ambiental. Isso porque, a essência do Protocolo determina que quem polui deve assumir financeiramente as conseqüências disso. Assim, quem mais poluiu desde a Revolução Industrial (os países que hoje são chamados desenvolvidos) deverá pagar pelos prejuízos causados ao ambiente, ou compensar essa falta investindo, por exemplo, na recuperação e manutenção de áreas verdes, cuja maior parte ainda está nos países pobres. 

Seqüestro do Carbono

Considerando a incalculável quantidade de dióxido de carbono já emitida por esses países no decorrer das décadas, é simples imaginar que a conta do prejuízo é bastante alta. Assim, para amenizar o seu pagamento, o Protocolo de Quioto disseminou a idéia do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e das CERs. O objetivo do MDL é a busca de alternativas de tecnologias limpas (não-poluidoras) para, por exemplo, a geração de energia, reduzindo as emissões de CO2 na atmosfera. Há também os projetos voltados para a área florestal, que devem ajudar a diminuir o CO2 presente na atmosfera pela absorção feita pela vegetação através da fotossíntese. É o que se chama de "seqüestro do carbono".

Para entender o que significam o MDL e as CERs é preciso ter clara a divisão existente entre os países, e que ficou estabelecida no Protocolo de Quioto. Eles estão divididos em dois grupos: os que precisam reduzir suas emissões de poluentes e aqueles que não estão obrigados a tais reduções. O Brasil, assim como outros países em desenvolvimento que não precisam diminuir suas emissões de dióxido de carbono, pode vender essa redução através dos créditos de carbono conseguidos com as CERs. 

As transações internacionais ao redor dos créditos de carbono já estão acontecendo. No início de julho, a Holanda enviou um representante do seu Ministério do Ambiente e Desenvolvimento Urbano para negociar créditos de carbono com governo e empresários brasileiros. A Holanda é um dos 39 países que estão obrigados pelo Protocolo de Quioto a reduzir, de 2008 a 2012, emissões de dióxido de carbono e outras substâncias nocivas a um índice 5,2% menor do que o índice global registrado em 1990. A iniciativa holandesa pode render 250 milhões de euros, que serão destinados à redução de 200 milhões de toneladas de carbono. É certo que os países que têm tomado a dianteira nessas transações financeiras internacionais estão em vantagem sobre os demais. Os preços da tonelada de carbono ainda não foram fixados pelo mercado.

Perigo
 
Até agora tudo parece estar em pleno acordo com as regras do capitalismo, porém há, ainda, muitas perguntas sem respostas. Quem são os donos, os avalistas e os auditores dos créditos de carbono? Quem será beneficiado pelos créditos? Esse modelo irá beneficiar o meio ambiente e as camadas mais pobres da população ou os empresários e donos do poder político e econômico dos países mais ricos? 

Para a economista Amyra El Khalili, presidente da ONG CTA (Consultant, Trader and Adviser), o que existe hoje é, na verdade, uma grande confusão entre os conceitos de commodity ambiental e crédito de carbono. Segundo ela, um conceito nada tem a ver com o outro, e o cerne da confusão pode estar na junção das palavras "commodity" e "ambiental". A tradução ao pé da letra do termo commodity é: mercadoria, aquilo que é vendido para a obtenção de lucro, ou, ainda, aquilo que é comprado e vendido numa bolsa de mercadoria. "Uma commodity visa o lucro imediato, portanto é algo contrário ao meio ambiente, mais precisamente a sua conservação", explica a economista. "O carbono não é uma commodity porque as suas emissões têm de ser reduzidas. Se fosse uma commodity, o carbono teria de visar o lucro e, para tanto, sua emissão deveria ser incentivada. Quanto mais toneladas de carbono fossem emitidas, maior seria o seu preço de mercado". Por essas razões, o tal seqüestro de carbono tem de ser entendido como um processo e não como uma commodity.

Khalili explica que unir as palavras commodity e ambiental não é tarefa fácil. "Os beneficiários, que são os países em desenvolvimento, têm de estar no topo da discussão. Só vamos conseguir fazer uma commodity ambiental quando se resolver o problema da exclusão social existente principalmente nos países pobres", avalia a economista. Para ela, o proprietário da commodity ambiental tem de ser a comunidade, o povo, a nação, e deve visar o "lucro social", a criação de um ambiente sustentado e equilibrado entre necessidades humanas e conservação de recursos naturais. 

Os produtos que resultam de projetos para a conservação de recursos naturais (como a madeira), e cujo público beneficiado é a própria comunidade responsável pelo seu manejo, pode ser considerado uma commodity ambiental. Ela também pode ser financeira quando beneficia um grupo de empresários ou uma empresa. Porém, Khalili enfatiza que a ambiental deve estar sempre na base de sustentação da estrutura da commodity financeira. "O mundo todo já tomou o rumo da degradação seguindo este sistema. Há exclusão social e fome por toda a parte. Há fraudes e corrupção nas maiores empresas do mundo. Se o mercado financeiro internacional está falido, porque devemos continuar acreditando neste modelo?"

Até agora, o que se tem feito com relação à comercialização de créditos de carbono é o inverso disso. Os créditos são títulos que podem favorecer empresários especuladores do mercado financeiro de países pobres ou ricos. Os excluídos correm o risco de ficar de fora desse processo. "Nossos recursos naturais não podem ser comercializados como créditos de carbono. É preciso esclarecer quem vai ser responsável pelo controle desse mercado. A sociedade e a mídia precisam participar desse debate, e exigir que as commodities ambientais não tomem o rumo da simples repetição e perpetuação de um modelo econômico e financeiro falido, no qual o bem maior é o dinheiro e não a qualidade de vida", conclui a economista.

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