Uma rede de pedofilia vem se consolidando no município de São Gabriel da Cachoeira (a 858 quilômetros de Manaus), no extremo norte do Amazonas, sem que os envolvidos sejam investigados e muito menos punidos. As vítimas são meninas indígenas entre 10 e 16 anos de idade. Pessoas vinculadas a instituições sociais são ameaçadas caso façam as denúncias e as vítimas são coagidas a ficarem caladas.
Nessa
semana algumas pessoas ligadas a estas instituições aceitaram falar
sobre os casos. Segundo elas, a exploração sexual, antes velada, tem se
tornado cada vez mais escancarada. Respaldados pela falta de
investigação, os exploradores sexuais e aliciadores não temem ser
punidos e continuam praticando o crime contra as meninas.
Em
agosto passado, seis meninas indígenas aceitaram prestar depoimento à
representação da Polícia Federal em São Gabriel da Cachoeira, município
onde 90% de sua população é indígena. O depoimento foi confirmado pelo
representante da PF no município, Cláudio César.
O
conteúdo das declarações, contudo, não foi revelado à reportagem.
Cláudio disse apenas que os depoimentos farão parte de um relatório que
ele enviará para a promotoria de São Gabriel da Cachoeira e para a
superintendência da PF, na próxima semana.
A
delegada especializada em crimes contra menor, idoso e violência
doméstica de São Gabriel da Cachoeira, Ivone Rocha, confirmou a
existência dessa rede, mas alegou que o órgão não tem estrutura para
investigar os casos. A Polícia Civil tem apenas um investigador no
município. Ela também informou que as meninas vítimas da violência
sexual não costumam denunciar os suspeitos.
Comércio O
comércio do sexo com crianças e adolescentes tem à frente um pequeno
grupo de comerciantes “com dinheiro” que se instalou há algum tempo no
município e funcionários públicos. O alvo preferido da exploração sexual
são meninas virgens. Em muitas ocasiões, as meninas também acabam sendo
vítimas do tráfico de drogas.
“Essa
rede de pedofilia, como a gente chama, existe há muito tempo, mas
aumenta a cada ano, a cada mês. Está se alastrando. Está a olho nu.
Antes, estes homens pegavam meninas de 14, 16 anos. Agora, pegam meninas
de 12, 11 e até 10 anos. São meninas de famílias muito pobres que vêm
de suas comunidades. Sem condições financeiras, elas acabam sendo
vítimas desses comerciantes”, disse uma conselheira tutelar que prefere
ficar no anonimato.
Embora
a abordagem dessas garotas ocorra em casas noturnas, bares e até portas
de escola, o local que acabou se tornando uma espécie de ponto de
encontro é a rua Rui Barbosa, no bairro Miguel Quirino, apontado como o
mais pobre do município.
“Tem
menina mais velha que leva as irmãs mais novas. A menorzinha ganha
apenas um biscoito, uma fruta. A maior ganha uns R$ 50. Soubemos de
casos horríveis, como a menina que é levada para cinco, seis pessoas”,
disse ela.
Descaso
A prática da exploração sexual de menores não é recente e já foi denunciada em outras ocasiões, segundo a conselheira. “As pessoas sabem que existem. Já denunciamos ao Ministério Público, ao Fórum de Justiça, mas não passa disso. Deixamos até de ir à Polícia Civil porque nada acontece ali. Além do mais, as meninas e as famílias ficam com medo de denunciar. A cidade é muito pequena”, disse a conselheira, ela própria bastante receosa em dar esta entrevista por temer a fúria da rede que pratica a exploração sexual.
A
presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA),
irmã Justina Zanato, que acompanha algumas meninas envolvidas nesta
rede, disse que já ouviu uma criança de 10 anos dizer que os homens
oferecem produtos como iogurte, chocolate e frutas como pêra e uva.
Medo
Irmã Justina diz que tentativas de denúncias esbarram no receio das autoridades públicas em investigar os casos. “A maioria dessas crianças e jovens entra nessa rede por falta de algum incentivo maior dentro da família ou por fome mesmo. Mas quando a gente denuncia, parece que todos têm medo. É como se alguém estivesse freando as investigações e a punição”, contou.
Medo
de denunciar, omissão das autoridades públicas e ameaças explícitas são
as principais causas da perpetuação e do crescimento da prática de
exploração sexual, segundo uma psicóloga que atua em São Gabriel da
Cachoeira e que acompanha estes casos há alguns anos.
“Todo
mundo sabe quem são as pessoas. E são pessoas poderosas. Quando se faz
uma tentativa de denunciar, acontecem as ameaças”, diz ela.
A
psicóloga fez uma pesquisa que traçou o perfil das meninas vítimas da
exploração. São, na maioria, garotas indígenas, pobres e vulneráveis
socialmente que vêm das aldeias em busca de melhores condições de vida.
Os praticantes são em geral homens maduros, comerciantes “estabelecidos
na cidade” que raramente vão em festas e que, aparentemente, possuem
uma conduta ilibada.
Ação
Uma ex-funcionária da Secretaria Estadual de Povos Indígenas (Seind), indígena da etnia baré nascida no município de São Gabriel da Cachoeira e que também teme ter seu nome divulgado, confirmou a existência desta rede e do crescimento dela. Afirmou ainda que uma tentativa de discutir o assunto foi feita há algum tempo, mas nenhuma ação efetiva foi adiante.
“A
gente sabe que existe, mas precisa de provas consistentes. Deveria
haver uma ação conjunta entre a Polícia Civil, a Polícia Federal, o
Conselho Tutelar e o Ministério Público Federal. A Funai vai de mal a
pior, a lei deixa de fazer a parte dela. E ninguém é punido”, disse a
indígena.
Falta estrutura
A delegada especializada em crimes contra criança e adolescente, idoso e violência doméstica de São Gabriel da Cachoeira, Ivone Rocha, disse que “sim, existe” uma rede de pedofilia naquele município, mas que é preciso a população se “conscientizar” e começar a denunciar a prática.
Questionada
se a Polícia Civil poderia, a partir de denúncias já realizadas, e
iniciar uma investigação mais aprofundada, ela afirmou que a instituição
sofre com falta de estrutura para tal ação.
“Estou
lá há um ano. As meninas não estão dispostas a denunciar. Muitas vezes
inocentam o cidadão. Negam tudo. Mas algumas denúncias já estão sendo
sim apuradas, são casos mais recentes”, disse.
Conforme
Ivone, além dela há apenas um policial civil para fazer o trabalho de
investigação na cidade. “A gente não tem como sair procurando e
intimando as pessoas. Antes eu fazia ronda. Havia quatro policiais civis
e dois escrivães. Hoje, tenho apenas um investigador e um escrivão. Por
isso que é preciso que as pessoas denunciem”, disse.
Miséria
O presidente Federação das Organizações Indígenas da Alto Rio Negro (Foirn), Abrahão França, indígena da etnia baré, afirmou que, de fato, existe uma equipe que comanda essa situação.
“É
o pessoal do comércio. O pior é que todos sabem o nome, sabem quem são a
própria polícia sabe disso. Mas fica no descaso. Já ouvi dizer que
existe até tabela. Se for virgem, vale tanto. A gente sabe que acontece
esta situação, mas nunca avançou para denunciar. Isso até o momento. Mas
o procurador do MPF está aqui esta semana em São Gabriel da Cachoeira e
vamos discutir”, disse.
França
afirmou que nos últimos anos este problema se agravou. Um dos motivos é
que um 'parente' indígena ganhou a eleição e trouxe muitas expectativas
para os que moram no interior distante.
“Muita
gente veio para a cidade achando que teria emprego, mas não tem. Quando
chega na cidade não tem o que fazer, não tem mais roça e não tem onde
morar. Precisa comer, precisa vestir e não tem onde buscar o sustento.
Aí aparecem esses homens que comandam e fazem isso”, afirmou.
Indígena
Localizado à margem do rio Negro, São Gabriel da Cachoeira é considerado o município mais indígena do Brasil. Sua região é habitada por mais de 22 etnias diferentes.
No
município, além do português, outras três línguas são consideradas
oficiais: tukano, nheegantu e baniwa. Sua localização geográfica é
considerada estratégica, pois faz fronteira com Colômbia, Venezuela e
Peru. A área também é rica em minérios, como ouro e nióbio.
Estupro
Um caso de violência sexual contra menores que chocou o conselho tutelar de São Gabriel da Cachoeira é o de uma menina indígena de 13 anos que foi estuprada no dia 8 de junho deste ano por um homem identificado com Léo. A menina, de etnia tukano e baré, que está grávida, tem um grau menor de retardo mental.
No
início de agosto, ela esteve em Manaus para fazer ultrassom (não existe
este serviço em São Gabriel) e sua mãe aproveitou para fazer um boletim
de ocorrência na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao
Adolescente (DEPCA).
Pelo
relato, a menina estava indo para a escola quando foi abordada por um
motorista de táxi lotação, que a estuprou em um ramal. Ela já voltou ao
município e o caso foi encaminhado para a Delegacia do Interior, segundo
informações da DEPCA.
Sobre
este caso, a delegada Ivone Rocha afirmou que, até o último dia 21 de
agosto, quando estava no município, ainda não tinha recebido o boletim
para dar encaminhamento às investigações e pedir a prisão preventiva do
suspeito. Ivone está em Manaus, de licença médica, e retorna para São
Gabriel da Cachoeira na próxima semana.
Legislação
A
legislação que pune abuso e exploração sexual de crianças e
adolescentes encontra-se na Constituição Federal, no Código Penal e no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Na
Constituição, encontra-se no artigo 227, parágrafo 4º. “A lei punirá
severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
adolescente”.
No ECA, os tipos de penas estão mais detalhadas. Elas são aplicadas conforme a gravidade do crime.
No Código Penal, abuso, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes são
enquadrados penalmente como corrupção de menores (art. 218) e atentado
violento ao pudor (art.214 ), caracterizado por violência física ou
grave ameaça.
Publicado na pagina do Cimi.
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