quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Munduruku foi executado por delegado da PF, acusam indígenas

Ruy Sposati - Assessoria de Comunicação/Cimi


Viu as dragas e as balsas pegando fogo, enquanto sobrevoava o rio Teles Pires. Uma bomba passa ao lado do avião, à direita. No campo de visão de V., não havia indígenas.

O bimotor desce – a pista de pouso não fora destruída. Havia rastros de sangue no chão, marcas de bala nos telhados e nas paredes. Espalhados pelo caminho, restos de cartuchos, munições e carcaças de bombas. Todas as casas estavam com as portas arrombadas.

E então a comunidade começa a sair e ir ao encontro de V.. Estavam todos escondidos nas casas, assustados com a chegada do avião. Reúnem-se no barracão e explicam à liderança Munduruku do que tinham medo.

V. ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas, machucadas, queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe chorava desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida. Achava que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata. Havia uma mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial lhe deu. Os professores não-índios que trabalham na comunidade também foram agredidos.

V. ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas, machucadas, queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe chorava desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida. Achava que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata. Havia uma mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial lhe deu. Os professores não-índios que trabalham na comunidade também foram agredidos. Todas as embarcações foram explodidas ou fuziladas e afundadas. Os barcos de pesca foram danificados ou destruídos. As armas de caça, quebradas ou levadas. Dinheiro e ouro foram roubados. Computadores – entre eles, da saúde e das escolas – foram inutilizados. A escola foi alvejada por tiros e bombas nas paredes e telhado. Celulares e câmeras foram tomados, esmigalhados, jogados no rio ou tiveram seus cartões de memória apreendidos. Os motores de popa da saúde foram lançados ao rio. Fiações do telefone comunitário foram cortadas e o rádio da aldeia confiscado, impedindo qualquer contato de indígenas com outras aldeias. O carro da aldeia foi carbonizado.

V. chegara na aldeia em 8 de novembro, um dia depois de uma comunidade de indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká, em Jacareacanga, no Pará, divisa do estado do Pará com o Mato Grosso, ter sofrido um violento ataque da Polícia Federal.

Neste mesmo dia, uma comissão especial do Poder Legislativo esteve no local para apurar as denúncias que haviam chegado à cidade. No relatório da visita, o presidente da Câmara Municipal de Jacareacanga, Elias Freire (PSDB), afirmou haver "indícios de vários crimes praticados pela força policial inclusive com exposição de vulneráveis, o que contraria disposições legais do Estatuto da Criança  e do Adolescente". O vereador Raimundo Santiago (PT), o Raimundinho do PT, mostrou-se "pasmo com a violência praticada contra os indígenas" e disse que "as imagens que viu comprovam sobejamente que ocorreu crime contra o povo da aldeia Teles Pires".

Os indígenas entregaram à comissão uma relação (veja) dos bens destruídos pelos policiais. Minutos antes dos indígenas contarem a V. o que havia acontecido, um Munduruku havia sido encontrado boiando no rio Teles Pires. Era o corpo inchado de Adenilson Kirixi Munduruku. Ele havia sido assassinado no dia anterior, 7 de novembro, durante a ação policial.

7 de novembro

Na manhã daquele dia, 400 botas pularam de três helicópteros camuflados e de voadeiras alugadas de ribeirinhos, espalhando-se estrategicamente pelo território indígena, amassando as formigas da aldeia Teles Pires.

Era a Polícia Federal (PF) e a Força Nacional de Segurança, acompanhados da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), executando manobras da Operação Eldorado, uma mega ação de desmantelamento de esquemas de garimpagem ilegal nos estados de Mato Grosso, Pará, Rondônia, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Chegaram 244 anos depois do vigário José Monteiro de Noronha ter anotado pela primeira vez em seu caderninho, em 1768, a presença dos primeiros Munduruku – chamados por ele de “Maturucu” – às margens do rio Maués, no hoje estado do Amazonas.

Depois do pouso, E. M. e um grupo de lideranças saíram à procura de representantes da Funai e do chefe da operação para conversar. Só encontraram o delegado da Polícia Federal, Antônio Carlos Moriel Sanches, que, segundo as lideranças, responsável pela intervenção. "O delegado falou que não tinha conversa com autoridade, com indígena, tinha que fazer o que foram fazer", conta E. M.. "Uma liderança [indígena] telefonou para Brasília, e de lá falaram que era pra avisar o delegado que não fizesse nada até que alguém de Brasília chegasse lá".

"Nessa hora, só estava a Polícia Federal. O pessoal da Funai e do Ibama estavam juntos com os policiais, sobrevoando em dois helicópteros e deixando os policiais em locais estratégicos para invadir a aldeia", assinala E. M..

"O delegado começou a empurrar as lideranças. Eu também fui empurrado. O delegado disse que não tinha conversa com ninguém, nem com cacique nem com liderança". Nesse momento, segundo E. M., estavam presentes as lideranças, caciques, seguranças de caciques, mulheres e crianças.

"Foi quando o delegado tirou o revólver para atirar na liderança que ele empurrou. Foi nessa hora que o segurança do cacique empurrou o braço do delegado, que escorregou e caiu na água, porque ali era um declive e chão é liso", explica.

Foi então que a Polícia Federal abriu fogo contra os indígenas. "Os dois primeiros tiros contra a vítima foram dados pelo delegado, que ainda estava dentro d'água, com a água pela cintura. Vários policiais começaram a atirar contra os indígenas".

Segundo os relatos, três tiros acertaram as pernas da vítima Adenilson Kirixi, que perdeu o equilíbrio e caiu na água, sem conseguir se levantar novamente. "Nessa hora, o delegado deu um tiro na cabeça do Adenilson, que caiu morta e afundou no rio". Segundo os indígenas, o delegado foi resgatado pelos policiais e levado para cima da draga. "Aí os policiais jogaram uma bomba no Adenilson, quando o corpo já estava afundando no rio".

Quando os indígenas tentaram resgatar o corpo do parente, foram alvejados pelos policiais que estavam em terra. "Eles diziam que não era para pegarmos o corpo. Do helicóptero, a polícia atirava e jogava bombas de efeito moral na aldeia, no meio de todo mundo, com as mulheres, as crianças", relata.

Procurada pela reportagem, a Polícia Federal não quis se manifestar sobre as acusações. Segundo a assessoria de comunicação, talvez a PF e a Funai se manifestem conjuntamente sobre o caso nos próximos dias.

Meu irmão

G. K. era irmão de Adenilson. "Quando ouvi o tiroteio, fui correndo para a beira do rio. Estavam dizendo que meu tio tinha morrido. Eu queria saber se era verdade. Os policiais jogaram bomba e spray de pimenta. Meu olho ardeu e eu fiquei sem rumo".

O indígena relata que um terceiro helicóptero teria chegado nesse momento, com mais policiais. Foi quando ele saiu correndo em direção à mata, perseguido pela PF. "Me escondi embaixo das árvores, ouvindo o barulho das bombas, dos helicópteros e dos tiros. Tinha mais gente escondida lá também", relembra. Três horas depois, G. K. volta à aldeia e insiste em apurar informações sobre a morte do irmão.

"Os policiais me diziam que não tinha ninguém morto, que os feridos estavam no hospital. Meu irmão não estava lá". O Munduruku encontrou, então, o servidor da Funai, Paulão – os indígenas não sabem de onde veio -, que acompanhava a Operação. Ele também lhe negara ter havido alguma morte. Segundo todos os relatos, Paulão teria sido o servidor da Funai responsável pelo acompanhamento da Operação.

O laudo cadavérico realizado pela Polícia Civil do Mato Grosso (veja) confirmou que Adenilson Kirixi levou três tiros nas pernas e um tiro frontal na cabeça. Não há informação se houve apreensão e perícia na arma que efetuou – ou nas armas que efetuaram – os tiros.

Parte dos indígenas fugiu para a mata, parte para as residências, imaginando que ali estariam seguros. Durante a fuga, dois indígenas foram gravemente feridos pelos policiais. E. M. e O. K. estão hospitalizados em Cuiabá. Outros indígenas também foram levados para o hospital. O pelotão, então, invadiu a aldeia, arrombando portas e janelas, jogando bombas dentro dos domicílios "Levaram tudo o que tinha dentro das casas, nossos facões, facas, espingarda de caça", atesta.

"Chutaram meu pai"

"Eu vi os tiros e saí correndo pra pedir socorro no rádio e na internet. "Quem estava no rádio comigo ouvia os tiros", conta I. W.. "O meu pai chegou onde eu estava, ferido. Tinha levado um tiro de bala de borracha. A gente saiu começou a gritar pra eles pararem de atirar, mas eles não pararam", relata I. W.. "Corriam atrás da gente e atiravam. Atiraram na mulher do meu irmão, que está grávida de 8 meses. Atiravam com bala de borracha e com bala de verdade também".

"Então entramos de novo em casa, com mais umas dez pessoas. A polícia arrombou a porta e entrou jogando bombas de gás lacrimogêneo na gente. Tinha uma mulher com um bebê de dois meses lá dentro". Segundo I.W., os policiais mandaram todos saírem da casa e colocarem as mãos na cabeça. "Chutaram o meu pai e agrediram todos os homens que estavam ali. Eu dizia pra eles que a gente não era bandido pra ser tratado daquele jeito".

Segundo I. W., aos homens – também idosos e crianças – foi ordenado que deitassem no chão com as mãos na cabeça, enquanto as mulheres e crianças foram mantidas como reféns, separadamente, no campo, com armas apontadas para elas. "As mulheres e crianças ficaram o dia inteiro debaixo do sol, com os policiais armados em volta. A gente pediu comida, mas não deram. Não deixavam a gente falar a nossa língua, só português". "Eu gritava, e o policial me perguntou se eu estava com raiva. Eu respondi que sim, porque estavam invadindo a aldeia e as casas. Os policiais disseram que tinham um mandado judicial e que só estavam cumprindo sua obrigação. Eu perguntei pra eles se o juiz também tinha autorizado que eles invadissem as casas e agredissem as pessoas".

"Arrombaram o posto de saúde, jogaram uma bomba de gás e apontaram uma arma para a cabeça da técnica de enfermagem, L. R.. Jogaram os remédios no chão e quebraram os medicamentos. Também atiraram na escola, jogaram bombas e quebraram as telhas", relata. I. W. chorou muito ao contar esta história.

"O tiroteio durou 30 minutos. Parecia filme de guerra. Quando pararam de atirar, um grupo de policiais saiu em busca do corpo que havia afundado no rio, enquanto outros recolhiam cascas de munição e bombas que encontravam pela frente", relembra E. M.. "A gente ficou cercado pelos policiais. Levaram o nosso rádio. Destruíram o motor que gerava energia para a aldeia".

Os índios feridos foram levados de helicóptero para atendimento no Hospital Regional de Alta Floresta, em estado grave. Segundo as lideranças indígenas, ainda estão internados. Os agentes da PF receberam atendimento no local.

E. M. relata as prisões posteriores ao ataque. "Eles levaram 17 pessoas para a fazenda Brascan, onde havia uma base da polícia", conta. O irmão de E. M. também havia sido preso. Uma indígena que acompanhava o irmão que havia sido preso, também foi levada. Eles foram enviados a Sinop, no Mato Grosso – a aldeia fica em Jacareacanga – e depuseram à polícia. Os depoimentos teriam sido acompanhados por um Procurador da Funai de Cuiabá cujo nome não souberam dizer. Posteriormente, foram levados de volta à aldeia pela polícia.

Foi no final da operação, ainda no dia 7, que as dragas e balsas foram destruídas. Segundo os indígenas, cada uma das 11 embarcações destruídas no leito do rio tinham de 30 a 40 mil litros de combustível, além de baterias. Eles relatam que os peixes estão morrendo e que não podem usar o rio, agora contaminado pelos fluídos.

Segundo os indígenas, a polícia permaneceu nas proximidades por mais três dias.

Os professores e profissionais de saúde não-índios não querem voltar para a aldeia. Os alunos não querem ir às aulas. A comunidade possui cerca de 500 pessoas, contando com mais duas aglomerações, a dos Kayabi e a dos Apiaká, que também dependem da estrutura de Teles Pires.

Blitzkrieg bop

No dia 6, W. U. conta que indígenas Kayabi compartilharam pelo rádio a informação de que helicópteros estavam sobrevoando suas terras. "Achávamos que eles estavam vindo pra se reunir com a gente", relata. Contudo, segundo W. U., o que estava acontecendo ali era a construção das bases da Operação Eldorado. A primeira fora construída na Fazenda Brascan, localizada no Vale Ximari, em Apiacás (MT), a dez quilômetros da comunidade Kayabi. A segunda base da Operação foi montada a um quilômetro da aldeia, no igarapé Buretama. Foi neste local, "onde há apenas um morador", que um grupo de guerreiros Munduruku foi ter com os policiais para entender o que estava acontecendo.

Quando os indígenas encontraram os policiais, eles estavam evacuando uma das balsas que seria destruída. "Perguntamos o que eles iriam fazer. Eles disseram que não queriam conversa, que vieram fechar o garimpo e explodir as dragas, que tinham uma ordem judicial pra isso". Os indígenas pediram para ver o mandado que autorizava a Operação e insistiram sobre a necessidade de uma reunião entre a polícia e as lideranças. "Explicamos que o garimpo era o nosso sustento, que não poderiam fechar assim. Trouxemos o documento do acordo com a Funai sobre o garimpo", explica. "Aí começou o desentendimento. Um policial quebrou uma flecha e deu um empurrão num cacique de uma aldeia próxima. Eles falaram pra gente tirar o que a gente quisesse da draga, porque a draga ia ser explodida, e assim foi feito". Segundo W. U., os indígenas retornaram à aldeia para contar ao cacique e outras lideranças que a polícia estava na área e havia destruído uma das embarcações. Os policiais suspenderiam a destruição e só voltariam no dia seguinte.

W. U. foi atingido por bombas e está com marcas de queimadura no corpo.

Segundo todos os relatos, a Força Nacional de Segurança não se envolveu nos momentos de violência da Operação. A Polícia Federal em Mato Grosso decidiu suspender temporariamente a Operação. O MPF do Mato Grosso e do Pará abriram investigação sobre o caso.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Y-Juca-Pirama, rompendo a solidão

  Lucia Helena Rangel – antropóloga PUC SP, assessora Cimi


“... chame-lhe progresso quem do extermínio secular se ufana; eu, modesto cantor do povo extinto, chorarei nos vastíssimos sepulcros que vão do mar aos Andes e do Prata ao largo e doce mar das Amazonas”. (Antônio Gonçalves Dias – Os Tymbiras, canto III. Citado no Documento Y-Juca-Pirama, o índio: aquele que deve morrer).

O que dizer nos 40 anos do Cimi que não seja apenas congratulações e reconhecimento de um trabalho de solidariedade integral aos povos indígenas, cujos resultados são visíveis, louváveis e da maior importância na sociedade brasileira racista e antiindígena? Por que isso tudo seria apenas, ao manter-se a formalidade da homenagem.

Vou destacar em primeiro lugar algumas dimensões da solidariedade integral aos povos indígenas. A dimensão política, aquela que fez do Cimi protagonista de uma árdua batalha para convencer a sociedade brasileira de que os povos indígenas possuem direitos, pois são os habitantes originários dessa terra e são sujeitos ativos na vida sócio-política brasileira. O protagonismo do Cimi levou a construção de um campo jurídico que atualizou os elementos componentes do direito indígena, de maneira inovadora, até a instituição de uma assessoria jurídica que os povos indígenas não possuíam até então. Muitos juristas envolveram-se com a causa indígena e foram decisivos nos debates e nas formulações teóricas e ideológicas. Como furar o cerco da tutela sem perder direitos e, mais do que isso, conquistar direitos ainda não explicitados? Não foi o Cimi que promoveu exclusivamente esse debate, mas foi o Cimi que ousou formalizar uma assessoria jurídica, até hoje inédita nas organizações indígenas e indigenistas; e que produz uma reflexão jurídica da maior importância. Há outras ações inéditas, igualmente importantes, tais como uma imprensa voltada exclusivamente para os assuntos indígenas e o envolvimento pioneiro com as questões da educação e da saúde indígenas.

O aspecto, jurídico, é parte essencial da trama política que envolveu o conjunto dos missionários na luta de solidariedade aos povos indígenas. A coragem de embrenhar-se nas matas através de caminhos cheios de armadilhas e emboscadas, enfrentando a morte, as feridas e o medo, tornou os missionários o grupo de referência em todas as regiões do Brasil. Isso sem falar no carinho e nos laços de amizade estabelecidos entre os missionários e os indígenas, mesmo que em certas ocasiões e circunstâncias esses laços tenham se transformado em relações conflituosas. É importante destacar essas relações conflituosas porque nelas reside uma essência valorativa que opõe e nega as benesses monetárias das “mitigações” para não entregar o bem maior que é a terra. No âmbito dos movimentos sociais, da ação parlamentar, das universidades, das ONGs, das paróquias, das dioceses está sempre o Cimi a estabelecer parcerias, a articular aliados e a colocar pedras nos sapatos daqueles que querem “uma paz sem índios” ou “índios sem problemas”.

Porém, as dimensões social e política mais importantes residem na contribuição decisiva para a construção do movimento indígena. Quando os primeiros missionários esforçaram-se para realizar a primeira Assembléia de Chefes Indígenas plantaram a semente do processo de rompimento da solidão social e política na qual viviam os povos indígenas no Brasil.

A política indigenista republicana, formulada em 1910, além de colocar em prática os instrumentos integracionistas, consistiu em manter a população indígena sob controle absoluto. O principal instrumento integrativo foi conduzir os indígenas para atividades produtivas consideradas trabalho de fato: a agricultura indígena deveria ser modificada, tanto em termos dos produtos cultivados, quanto em termos das técnicas agrícolas. Assim, tratores e plantadeiras manuais são introduzidos nas áreas para que os indígenas aprendessem a trabalhar; como a produção também deveria ser comercializada o SPI instrui seus servidores a arregimentar os indígenas para o trabalho nos grandes roçados, sob controle dos Chefes de Posto mediante promessa de divisão dos rendimentos após a comercialização da produção; assim os indígenas aprenderiam novas técnicas e novas modalidades sociais, como esse arremedo de trabalho assalariado que sempre foi mais um modo de trabalho escravo. O controle das áreas indígenas, chamadas reservas, abrangia também a mobilidade espacial: para sair da aldeia os indígenas necessitavam de uma autorização por escrito emitida pelo Chefe de Posto, que, desse modo, dominava o conjunto de informações necessárias para controlar todas as atividades individuais e coletivas dentro e fora das aldeias. Não raro o Chefe de Posto negava a autorização para a saída de indivíduos ou famílias. Esse dispositivo disciplinar, sustentado pela necessidade de exercer a tutela, tornou-se a estratégia de controle mais eficaz para cassar a voz política dos povos indígenas. Cada comunidade, considerada um todo indissolúvel e fechado, constituía uma unidade cultural idiossincrásica, isto é, portadora de um particularismo sem comparação com outras comunidades.

Desse modo, cada comunidade recebia uma parcela de terra proporcional ao número de famílias que receberiam o tratamento civilizador apregoado pelo Estado: a preservação de línguas e hábitos culturais, o não desmembramento das famílias; apenas se ensinaria aos indígenas a trabalhar para que pudessem se preparar para a integração na sociedade nacional.

O controle era exercido, portanto, sobre uma ou poucas comunidades que viviam dentro do limite da reserva, cujo perímetro era definido pelo SPI, tendo em vista a integração, isto é, a saída da área, a saída da condição indígena, e não o futuro da comunidade, reproduzindo e aumentando sua população. Assim, aqueles que migravam, para outros sítios ou para as cidades “dispensavam a proteção” do Estado e passavam a viver a outra forma da solidão social: o ocultamento de sua condição indígena. Dentro do limite das reservas funcionários do Estado foram investidos de uma autoridade que possibilitou toda sorte de desmandos: o Chefe de Posto contratava funcionários braçais assalariados, regulava o uso dos recursos  designados para aquela área e promovia a eleição do Capitão ou Cacique que deveria responder por toda a comunidade. Assim, em volta do funcionário chefe formava-se uma escuderia disciplinadora, totalmente manipulada, formando uma hierarquia política, funcional e autoritária.

Esses capitães permaneceram no controle de muitas áreas indígenas até os dias de hoje, obrigando as comunidades a votarem num chefe que nunca correspondeu ao modelo político tradicional. Ao contrário, eles eram e ainda são os receptores de recursos externos, seja do Estado ou de outros organismos presentes nas áreas, igrejas, ONGs e toda sorte de beneméritos comovidos com a pobreza indígena. Certa vez, numa aldeia Kaiowá Guarani em Mato Grosso do Sul, duas mulheres envolvidas na luta de seu povo assim explicaram: a principal fonte de violência dentro das nossas aldeias vem dos capitães, que são figuras criadas pela FUNAI e não tem nada a ver com a gente. Eles querem dinheiro, envolvem os jovens em coisas erradas e tudo o que chega fica com eles. Outra fonte de controle é o agenciamento da mão de obra indígena para o trabalho nas fazendas próximas às áreas, realizado tanto pelo funcionário chefe quanto pelo capitão. É interessante notar que mesmo depois que os indígenas passaram a ocupar os cargos da FUNAI não houve modificação nas funções e nem no modelo de gestão das áreas indígenas.

Foi esse modelo que propiciou a criação das polícias indígenas que ainda existem em muitas comunidades. No período da ditadura militar a criação da Guarda Rural Indígena / GRIN, que funcionou em alguns lugares foi ao que tudo indica uma versão mais sofisticada do modelo de controle e que introduziu o treinamento militar especializado e a tortura. O empoderamento de uma casta dentro da comunidade do poder disciplinador e dos instrumentos de violência faz parte do rol de maus exemplos que a sociedade brasileira oferece aos povos indígenas. São as páginas tristes de uma história que deve ser olhada de frente para que possamos compreender melhor uma das facetas da violência e das formas de sociabilidade que vigoram em diversas comunidades.

O Cimi, há 40 anos, atua para furar o cerco do controle do Estado e romper a solidão em que cada comunidade vivia (algumas ainda vivem) confinada sob o comando dos chefes funcionários. As ilhas sociais, às quais correspondem ilhas territoriais, reduziam a população a uma identidade única, sem comunicação com outras comunidades e povos. Nunca vou esquecer Maria Rosa Kaingang, lá no Icatu, no interior de São Paulo, em 1976. A área era dividida entre Terena e Kaingang. A presença Terena provinha do fato de que a reserva Indígena de Icatu havia sido presídio indígena, por isso tinham ficado por lá algumas famílias. Maria Rosa dizia que aquela terra era dos índios e que, por isso, os Terena não deveriam permanecer; afinal, índios eram os Kaingang, como se fossem sinônimos. Nem essa noção, de que índios pertencem a uma categoria social histórica, possuíam.

Conhecer outros povos, identificar sua condição enquanto categoria social brasileira, trocar experiências, construir a luta pela demarcação de terras, constituir direitos, enfim, criar o movimento indígena, essa foi a contribuição que o CIMI deu aos povos indígenas que viviam isoladamente sua solidão social e política. Se isso fosse pouco já seria bastante.

O documento que inspirou o título dessa colocação Y-Juca-Pirama termina assim:

“Neste esforço de assumir nossa existência em todas as suas dimensões, sentimo-nos solidários com tudo o que existe no mundo, especialmente na América Latina, em favor da libertação do homem e dos povos, em particular dos povos indígenas. (...)
“Chegou o momento de anunciar, na esperança, que aquele que deveria morrer, é aquele que deve viver”.

E aí estão vivos e fortes, guerreiros e guerreiras a lutar por suas terras, por seus direitos e, infelizmente ainda, contra a violência.

_________
O título do artigo inspirou-se no Documento Y-Juca-Pirama, o índio: aquele que deve morrer. Documento de urgência de bispos e missionários assinado em 25 de dezembro de 1973. E também no livro de Octavio Paz – O labirinto da solidão e post-scriptum: tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1976.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Kátia, a antropóloga, criadora da abreugrafia

 José Ribamar Bessa Freire


Nelson Rodrigues só se deslumbrou com "a psicóloga da PUC" porque não conheceu "a antropóloga da Folha". Mas ela existe. É a Kátia Abreu. É ela quem diz aos leitores da Folha de São Paulo, com muita autoridade, quem é índio no Brasil. É ela quem religiosamente, todos os sábados, em sua coluna, nos explica como vivem os "nossos aborígenes". É ela quem nos ensina sobre a organização social, a distribuição espacial e o modo de viver deles.

Podeis obtemperar que o caderno Mercado, onde a coluna é publicada, não é lugar adequado para esse tipo de reflexão e eu vos respondo que não é pecado se aproveitar das brechas da mídia. Mesmo dentro do mercado, a autora conseguiu discorrer sobre a temática indígena, não se intimidou nem sequer diante de algo tão complexo como a estrutura de parentesco e teorizou sobre "aborigenidade", ou seja, a identidade dos "silvícolas" que constitui o foco central de sua - digamos assim - linha de pesquisa.

A maior contribuição da antropóloga da Folha talvez tenha sido justamente a recuperação que fez de categorias como "silvícola" e "aborígene", muito usadas no período colonial, mas lamentavelmente já esquecidas por seus colegas de ofício. Desencavá-las foi um trabalho de arqueologia num sambaqui conceitual, que demonstrou, afinal, que um conceito nunca morre, permanece como a bela adormecida à espera de alguém que o desperte com um beijo. Não precisa nem reciclá-lo. Foi o que Kátia Abreu fez.

Com tal ferramenta inovadora, ela estabeleceu as linhas de uma nova política indigenista, depois de fulminar e demolir aquilo que chama de "antropologia imóvel" que seria praticada pela Funai. Sua abordagem vai além do estudo sobre a relação observador-observado na pesquisa antropológica, não se limitando a ver como índios observam antropólogos, mas como quem está de fora observa os antropólogos sendo observados pelos índios. Não sei se me faço entender. Mas em inglês seria algo assim como Observing Observers Observed.

Os argonautas do Gurupi

Todo esse esforço de abstração desaguou na criação de um modelo teórico, a partir do qual Kátia Abreu sistematizou um ousado método etnográfico conhecido como abreugrafia que, nos anos 1940, não passava de um prosaico exame de raios X do tórax, uma técnica de tirar chapa radiográfica do pulmão para diagnosticar a tuberculose, mas que foi ressignificado. Hoje, abreugrafia é a descrição etnográfica feita com o método inventado por Kátia Abreu, no caso uma espécie de raio X das sociedades indígenas.

Esse método de coleta e registro de dados foi empregado na elaboração dos três últimos artigos assinados pela antropóloga da Folha: Uma antropologia imóvel (17/11), A Tragédia da Funai (03/11/) e Até abuso tem limite (27/10) que bem mereciam ser editados, com outros, num livro intitulado "Os argonautas do Gurupi". São textos imperdíveis, que deviam ser leitura obrigatória de todo estudante que se inicia nos mistérios da antropologia. A etnografia refinada e apurada que daí resulta quebrou paradigmas e provocou uma ruptura epistemológica ao ponto de não-retorno.

A antropóloga da Folha aplicou aqui seu método revolucionário - a abreugrafia - que substituiu o tradicional trabalho de campo, tornando caducas as contribuições de Boas e Malinowski. Até então, para estudar as microssociedades não ocidentais, o antropólogo ia conviver lá, com os nativos, tinha de "viver na lama também, comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar" da sociedade estudada, numa convivência prolongada e profunda com ela, como em 'Lama', interpretada por Núbia Lafayette ou Maria Bethania.

A abreugrafia acabou com essas presepadas. Nada de cantoria. Nada de anthropological blues. Agora, o antropólogo já não precisa se deslocar para sítios longínquos, nem viver um ano a quatro mil metros de altura, numa pequena comunidade nos Andes, comendo carne de lhama, ou se internar nas selvas amazônicas entre os huitoto, como fez um casal de amigos meus. E tem ainda uma vantagem adicional: com a abreugrafia, os antropólogos nunca mais serão observados pelos índios.

Em que consiste, afinal, esse método que dispensa o trabalho de campo? É simples. Para conhecer os índios, basta tão somente pagar entrevistadores terceirizados. Foi o que fez a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) que, por acaso, é presidida por Kátia Abreu. A CNA encomendou pesquisa ao Datafolha que, por acaso, pertence à empresa dona do jornal onde, por acaso, escreve Kátia. Está tudo em casa. Por acaso.

Terra à vista

Os pesquisadores contratados, sempre viajando em duplas - um homem e uma mulher - realizaram 1.222 entrevistas em 32 aldeias com cem habitantes ou mais, em todas as regiões do país. Os resultados mostram que 63% dos índios têm televisão, 37% tem aparelho de DVD, 51% geladeira, 66% fogão a gás e 36% telefone celular. "A margem de erro" - rejubila-se o Datafolha - "é de três pontos percentuais para mais ou para menos".

"Eu não disse! Bem que eu dizia" - repetiu Kátia Abreu no seu último artigo, no qual gritou "terra à vista", com o tom de quem acaba de descobrir o Brasil. O acesso dos índios aos eletrodomésticos foi exibido por ela como a prova de que os "silvícolas" já estão integrados ao modo de vida urbano, ao contrário do que pretende a Funai, com sua "antropologia imóvel" que "busca eternizar os povos indígenas como primitivos e personagens simbólicos da vida simples". A antropóloga da Folha, filiada à corrente da "antropologia móvel", seja lá o que isso signifique, concluiu:

"Nossos tupis-guaranis, por exemplo, são estudados há tanto tempo quanto os astecas e os incas, mas a ilusão de que eles, em seus sonhos e seus desejos, estão parados, não resiste a meia hora de conversa com qualquer um dos seus descendentes atuais".

Antropólogos da velha guarda que persistem em fazer trabalho de campo alegam que Kátia Abreu, além de nunca ter conversado sequer um minuto com um índio, arrombou portas que já estavam abertas. Qualquer aluno de antropologia sabe que as culturas indígenas não estão congeladas, pois vivem em diálogo com as culturas do entorno. Para a velha guarda, Kátia Abreu cometeu o erro dos geocêntricos, pensando que os outros estão imóveis e ela em movimento, quando quem está parada no tempo é ela, incapaz de perceber que não é o sol que dá voltas diárias em torno da terra.

No seu artigo, a antropóloga da Folha lamenta que os índios "continuem morrendo de diarreia". Segundo ela, isso acontece, não porque os rios estejam poluídos pelo agronegócio, mas "porque seus tutores não lhes ensinaram que a água de beber deve ser fervida". Esses tutores representados pela FUNAI - escreve ela - são responsáveis por manter os índios "numa situação de extrema pobreza, como brasileiros pobres". Numa afirmação cuja margem de erro é de 3% para mais ou para menos, ela conclui que os índios não precisam de tutela.

- Quem precisa de tutela intelectual é Kátia Abreu - retrucam os antropólogos invejosos da velha guarda, que desconhecem a abreugrafia. Eles contestam a pobreza dos índios, citando Marshall Sahlins através de postagem feita no facebook por Eduardo Viveiros de Castro:

‎"Os povos mais 'primitivos' do mundo tem poucas posses, mas eles não são pobres. Pobreza não é uma questão de se ter uma pequena quantidade de bens, nem é simplesmente uma relação entre meios e fins. A pobreza é, acima de tudo, uma relação entre pessoas. Ela é um estatuto social. Enquanto tal, a pobreza é uma invenção da civilização. Ela emergiu com a civilização..."

Miss Desmatamento

A conclusão mais importante que a antropóloga da Folha retira das pesquisas realizadas com a abreugrafia é de que os "aborígenes", já modernizados, não precisam de terras que, aliás, segundo a pesquisa, é uma preocupação secundária dos índios, evidentemente com uma margem de erro de três pontos para mais ou para menos.

- "Reduzir o índio à terra é o mesmo que continuar a querer e imaginá-lo nu" - escreve a antropóloga da Folha, que não quer ver o índio nu em seu território. "Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público. O índio hoje reclama da falta de assistência médica, de remédio, de escola, de meios e instrumentos para tirar o sustento de suas terras. Mais chão não dá a ele a dignidade que lhe é subtraída pela falta de estrutura sanitária, de capacitação técnica e até mesmo de investimentos para o cultivo".

A autora sustenta que não é de terra, mas de fossas sépticas e de privadas que o índio precisa. Demarcar terras indígenas, para ela, significa aumentar os conflitos na área, porque "ocorre aí uma expropriação criminosa de terras produtivas, e o fazendeiro, desesperado, tem que abandonar a propriedade com uma mão na frente e outra atrás".

Ficamos, então, assim combinados: os índios não precisam de terra, quem precisa são os fazendeiros, os pecuaristas e o agronegócio. Dados apresentados pela jornalista Verenilde Pereira mostram que na área Guarani Kaiowá existem 20 milhões de cabeças de gado que dispõem de 3 a 5 hectares por cabeça, enquanto cada índio não chega a ocupar um hectare.

Um discípulo menor de Kátia Abreu, Luiz Felipe Pondé, também articulista da Folha, tem feito enorme esforço para acompanhar a produção intelectual de sua mestra, usando as técnicas da abreugrafia, sem sucesso, como mostra artigo por ele publicado com o título Guarani Kaiowá de boutique (9/11), onde tenta debochar da solidariedade recente aos Kaiowá que explodiu nas redes sociais.

Kátia Regina de Abreu, 50 anos, empresária, pecuarista e senadora pelo Tocantins (ex-DEM,atual PSD), não é apenas antropóloga da Folha. É também psicóloga formada pela PUC de Goiás, reunindo dois perfis que deslumbrariam Nelson Rodrigues.

Bartolomé De las Casas, reconhecido defensor dos índios no século XVI, contesta o discurso do cronista do rei, Gonzalo Fernandez de Oviedo, questionando sua objetividade pelo lugar que ele ocupa no sistema econômico colonial:

- “Se na capa do livro de Oviedo estivesse escrito que seu autor era conquistador, explorador e matador de índios e ainda inimigo cruel deles, pouco crédito e autoridade sua história teria entre os cristãos inteligentes e sensíveis”.

O que é que nós podemos escrever na capa do livro "Os Argonautas do Gurupi" de Kátia Abreu, eleita pelo movimento ambientalista como Miss Desmatamento? Que crédito e autoridade tem ela para emitir juízos sobre os índios? O que diriam os cristão inteligentes e sensíveis contemporâneos? Respostas em cartas à redação, com a margem de erro de 3% para mais ou para menos.

sábado, 24 de novembro de 2012

Nota de repúdio contra a ação criminosa da Polícia Federal praticada na Aldeia Teles Pires, do povo Munduruku


O Cimi vem a público manifestar seu veemente repúdio à ação virulenta e assassina praticada pela Polícia Federal, na chamada Operação Eldorado. Usando o pretexto de cumprimento de ordem judicial que determinava a destruição de dragas de garimpos no Rio Teles Pires e de pontos ilegais de mineração, o delegado Antonio Carlos Muriel Sanchez comandou a invasão, no dia 07/11/2012, à Aldeia Indígena Teles Pires, no município de Jacareacanga, estado do Pará. De acordo com depoimentos prestados à 6ª. Câmara do Ministério Público Federal, lá praticaram todo tipo de atrocidades, como espancamentos, assassinato, tentativa de assassinato, destruição de moradias, de escola, posto de saúde, celulares, computadores, aparelho de radiofonia, embarcações de pesca, de transporte e as dragas utilizadas no garimpo. Além disso, os indígenas não estão podendo pescar, pois o rio ficou contaminado pelo combustível que estava nas dragas, destruídas pela Polícia Federal.

Os indígenas Munduruku relataram que, sem nenhuma explicação, o delegado Muriel e policiais federais acompanhados de dois representantes da Funai e Ibama, entraram na aldeia, invadiram casas e destruíram tudo que encontravam pela frente. Os líderes indígenas, na tentativa de estabelecer diálogo foram agredidos, com tapas no rosto e humilhações, sendo que num dos momentos o delegado sacou seu revólver e o apontou para o cacique da comunidade, quando então, um dos indígenas tentou desviar a arma, momento em que o delegado caiu no rio. Ainda, segundo os depoimentos prestados ao MPF, os agentes da Polícia Federal que acompanhavam o delegado, passaram a disparar contra os indígenas, foi quando Adenilson Kirixi recebeu três disparos nas pernas e também caiu no rio. O delegado, que estava na água, também atirou contra o indígena. Seu corpo foi encontrado boiando no rio no dia seguinte. No mesmo instante, helicópteros sobrevoavam a aldeia e jogavam bombas. Outros três indígenas ficaram gravemente feridos e estão internados. Muitas crianças ficaram feridas e em estado de choque, em função da violência, das bombas e dos disparos de balas de borracha.

De acordo com os depoimentos das vítimas, o garimpo que se pratica no Rio Teles Pires é regular, pois vem sendo feito mediante acordos estabelecidos entre os Munduruku, a Funai, o Ministério da Justiça e o Ibama.

Nos depoimentos os Munduruku afirmam que servidores da Funai e do Ibama foram anteriormente à região, na tentativa de convencer a comunidade a dar sua anuência para o estudo de impacto ambiental, tendo em vista a construção de hidrelétricas no Rio Teles Pires. Na ocasião, a comunidade se manifestou, em consonância com as demais comunidades e povos de toda a região, contra tais empreendimentos e informou que não dará nenhum tipo de anuência a estas iniciativas do governo.

Conclui-se, com isso, que a ação criminosa da Polícia Federal não tem relação com a exploração garimpeira, exercida há décadas. Foi sim uma tentativa de intimação e desastrosa demonstração de força do Governo Federal, no intuito de calar a voz de resistência do povo Munduruku, contra a construção do complexo de hidrelétrico previsto para a região do Tapajós.

Na opinião do Cimi, as autoridades públicas responsáveis pelas questões indígena e ambiental devem ser responsabilizadas. São elas: a presidente Dilma Rousseff, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, a presidente da Funai, Marta Azevedo, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, o presidente do Ibama, Volney Zanardi Junior. Estas autoridades deveriam agir e exercer suas funções com zelo e cuidado no sentido proteger as comunidades, especialmente aquelas que se encontram em situação de risco, como é o caso da comunidade indígena Munduruku, da Aldeia Teles Pires.

O Conselho Indigenista Missionário manifesta solidariedade ao povo Munduruku e exige que medidas sejam adotadas imediatamente, no sentido de garantir a segurança e a proteção aos Munduruku, bem como se preste toda assistência aos feridos e à comunidade que perdeu tudo que tinha no ataque criminoso. É necessário que se garanta acompanhamento médico e sejam levados alimentos para a comunidade.

No entender do Cimi, esse ataque policial criminoso constitui-se em tentativa de genocídio, visto que o poder público avalizou uma ação policial virulenta contra toda uma comunidade indígena, dentro de uma área demarcada pelo Governo Federal.

Brasília, 23 de novembro de 2012.

Cimi – Conselho Indigenista Missionário
Cimi 40 anos

* Imagens do ataque: Comunidade Mundukuru

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

MPF/AC continua cobrando melhorias na educação escolar indígena


Meses após a audiência pública que tratou sobre o tema, deficiências continuam a existir
Foto: Lindomar Padilha
O Ministério Público Federal no Acre (MPF/AC) cobrou informações do Governo do Acre e do Ministério da Educação sobre a educação escolar indígena no estado.

A procuradora da República Antonelia Carneiro Souza enviou ofício ao secretário de educação e esportes do Acre requisitando informações sobre construção e reforma de escolas nas aldeias, estruturação física e de profissionais nessas escolas, formação de profissionais, edição de livros didáticos específicos por etnia e distribuição de merenda escolar e transporte de alunos.

Ao Ministério da Educação foram pedidas informações sobre o montante total de verbas repassadas ao Estado do Acre, destinadas a compras, obras e serviços relacionados à atividade de educação escolar indígena, em 2011 e 2012, bem como a previsão de repasses para o ano de 2013.

Os ofícios foram expedidos no âmbito do inquérito civil que apura a qualidade da educação escolar indígena prestada às 14 etnias do Acre. Em julho deste ano uma audiência pública tratou sobre o tema, tendo as lideranças indígenas manifestado as deficiências na área e os órgãos responsáveis apresentado as ações para resolver os problemas.

Ocorre que, até o momento, o Governo do Acre ainda deve informações sobre alguns dos temas, e os temas que foram informados demonstram que nenhum dos problemas foi resolvido, alguns até seguem sem nenhum encaminhamento.

No tocante à construção e reforma de Escolas, os dados apresentados até o momento demonstram que existem, ainda, escolas em condições críticas e insalubres, com o agravante de que o Governo não informa com precisão quantas e quais são as aldeias que precisam de escolas e quais escolas necessitam de reforma.

Quanto à formação de profissionais, em 2011 não houve oferta de nenhum curso na área, sendo que o Governo do Acre havia informado que em 2012 seria oferecido formação inicial e continuada aos profissionais e, até o momento, não há informações de que tais cursos tenham realmente ocorrido.

Com referência à distribuição de merenda, constatou-se que mais da metade das escolas não receberam alimentos para os alunos, a mesma situação foi registrada quando se verificou que materiais e livros didáticos que deveriam ter sido entregues não chegaram nem a 50, das 179 escolas indígenas no Estado.

Transporte escolar de alunos e confecção de material didático, que foram reclamações recorrentes das lideranças indígenas, seguem apresentando deficiências e, mesmo com as previsões apresentadas pelo Governo do Acre para 2013, essas deficiências ainda não seriam sanadas.

O Governo do Acre tem 45 dias para informar todos os dados requisitados, que serão cruzados com as informações do MEC. Após o recebimento destes dados, a procuradora responsável pelo caso tomará as atitudes que entender cabíveis para o caso.

Fonte: MPF/AC

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Aliança contra ‘decreto de extermínio’ marca abertura de Congresso dos 40 anos do Cimi


Por Renato Santana,
de Luziânia (GO)

Sob o signo da resistência obstinada dos povos indígenas ante o permanente decreto de extermínio, cerca de 250 missionários, missionárias, convidados e lideranças indígenas iniciaram na manhã desta terça-feira, 20, o Congresso dos 40 anos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO).

Fundado no ano de 1972, durante o regime militar (1964-1985), quatro décadas depois o Cimi se reúne com o tema “Raiz, Identidade e Missão”. “Queriam, naquela época, o fim dos índios. Esse era o projeto. O Cimi nasceu para lutar contra isso”, disse Thomaz Aquino Lisboa, que desde os anos 1970 vive junto ao povo Myky, do Mato Grosso.

Tal decreto de extermínio era sequência da ideia de colonização que por essas terras aportou com as naus portuguesas e espanholas. Da mesma forma, uma ideia de missão religiosa junto aos povos que aqui estavam, e foram denominados indígenas pelos europeus, que também se mantinha no início da metade do século XX.

Os povos eram tratados, por um lado, como mão de obra serviçal e escrava para a perspectiva econômica ventilada pela “descoberta do novo mundo”, além de terem suas terras devastadas e saqueadas, e por outro como pagãos e com urgente necessidade de evangelização para a salvação de suas almas.

“Com o Concílio Vaticano II (1962-65) tudo mudou. Então, o que fazer, pois se tudo o que fazíamos era errado? O Cimi surge também com essa função de orientar a busca por outros caminhos, sorvendo preceitos antropológicos e na perspectiva de uma outra teologia”, afirmou padre Zacaria, que chegou ao povo Xavante, no Mato Grosso, ainda em 1956, período dos contatos feitos pelas frentes de atração do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI).     

A primeira grande missão do Cimi foi acabar com internatos religiosos para indígenas e se integrar em missão às comunidades, entendendo que os povos deveriam permanecer em suas terras tradicionais, sob a própria cosmologia, política, sociedade e, por fim, cultura.

“Tínhamos um instrumento de denúncia sobre o que a ditadura fazia contra os povos indígenas, o Y Juca Pirama (O Índio: Aquele que Deve Morrer). Com ele percorremos o país mostrando os assassinatos, as expulsões de terras”, lembrou Thomaz Lisboa.  

Conforme os fundadores do Cimi, a grande intenção era colocar os indígenas como protagonistas de suas próprias vidas, contribuindo com a organização da luta e assessorando os movimentos na permanência e retomada de seus territórios, além “da própria identidade. Se podemos dizer que o Cimi contribuiu foi com isso: com a possibilidade desses povos não perderem suas identidades”, frisou Dom Erwin Kräutler, presidente do Cimi e bispo da Prelazia do Xingu (PA).

Aliança

Paulo Suess, assessor teológico do Cimi, destacou algumas peculiaridades da organização: “O Cimi sempre improvisou. No Cimi as coisas acontecem, sem muito planejamento. Isso tem sua graça e é reflexo daquilo que nós aprendemos com os povos indígenas”. Para os missionários e missionárias, um dos principais legados do Cimi é o de não ensinar aos povos, mas aprender com eles  para melhor contribuir com suas lutas.

“Temos assim nossa raiz, fincada nas comunidades (...) nossa identidade. E a missão, coragem de enfrentar as política anti-indígena, porque nunca nos aliamos a partidos ou governos. Nossos aliados são os povos indígenas, nossa bandeira é a deles”, sintetizou Dom Erwin.

Lideranças indígenas  de todo país realizaram um ato lembrando as centenas de mártires indígenas e indigenistas, assassinados na luta pela terra. Ao final, os secretários executivos na história dos 40 anos foram chamados à frente para abrir oficialmente o congresso.

Antonio Brand, morto em setembro deste ano, secretário executivo do Cimi durante a Constituinte (1987-88), foi representado por sua filha, Luciana. O silêncio emocionado, seguido por um estouro de grande esperança no presente, marcou o início das atividades.