Viu
as dragas e as balsas pegando fogo, enquanto sobrevoava o rio Teles
Pires. Uma bomba passa ao lado do avião, à direita. No campo de visão de
V., não havia indígenas.
O
bimotor desce – a pista de pouso não fora destruída. Havia rastros de
sangue no chão, marcas de bala nos telhados e nas paredes. Espalhados
pelo caminho, restos de cartuchos, munições e carcaças de bombas. Todas
as casas estavam com as portas arrombadas.
E
então a comunidade começa a sair e ir ao encontro de V.. Estavam todos
escondidos nas casas, assustados com a chegada do avião. Reúnem-se no
barracão e explicam à liderança Munduruku do que tinham medo.
V.
ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas, machucadas,
queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe chorava
desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida. Achava
que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata. Havia uma
mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial lhe deu.
Os professores não-índios que trabalham na comunidade também foram
agredidos.
V.
ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas, machucadas,
queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe chorava
desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida. Achava
que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata. Havia uma
mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial lhe deu.
Os professores não-índios que trabalham na comunidade também foram
agredidos. Todas as embarcações foram explodidas ou fuziladas e
afundadas. Os barcos de pesca foram danificados ou destruídos. As armas
de caça, quebradas ou levadas. Dinheiro e ouro foram roubados.
Computadores – entre eles, da saúde e das escolas – foram inutilizados. A
escola foi alvejada por tiros e bombas nas paredes e telhado. Celulares
e câmeras foram tomados, esmigalhados, jogados no rio ou tiveram seus
cartões de memória apreendidos. Os motores de popa da saúde foram
lançados ao rio. Fiações do telefone comunitário foram cortadas e o
rádio da aldeia confiscado, impedindo qualquer contato de indígenas com
outras aldeias. O carro da aldeia foi carbonizado.
V.
chegara na aldeia em 8 de novembro, um dia depois de uma comunidade de
indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká, em Jacareacanga, no Pará, divisa
do estado do Pará com o Mato Grosso, ter sofrido um violento ataque da
Polícia Federal.
Neste
mesmo dia, uma comissão especial do Poder Legislativo esteve no local
para apurar as denúncias que haviam chegado à cidade. No relatório da
visita, o presidente da Câmara Municipal de Jacareacanga, Elias Freire
(PSDB), afirmou haver "indícios de vários crimes praticados pela força
policial inclusive com exposição de vulneráveis, o que contraria
disposições legais do Estatuto da Criança e do Adolescente". O vereador
Raimundo Santiago (PT), o Raimundinho do PT, mostrou-se "pasmo com a
violência praticada contra os indígenas" e disse que "as imagens que viu
comprovam sobejamente que ocorreu crime contra o povo da aldeia Teles
Pires".
Os indígenas entregaram à comissão uma relação (veja) dos bens destruídos pelos policiais. Minutos
antes dos indígenas contarem a V. o que havia acontecido, um Munduruku
havia sido encontrado boiando no rio Teles Pires. Era o corpo inchado de
Adenilson Kirixi Munduruku. Ele havia sido assassinado no dia anterior,
7 de novembro, durante a ação policial.
7 de novembro
Na
manhã daquele dia, 400 botas pularam de três helicópteros camuflados e
de voadeiras alugadas de ribeirinhos, espalhando-se estrategicamente
pelo território indígena, amassando as formigas da aldeia Teles Pires.
Era
a Polícia Federal (PF) e a Força Nacional de Segurança, acompanhados da
Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente (Ibama), executando manobras da Operação Eldorado, uma mega
ação de desmantelamento de esquemas de garimpagem ilegal nos estados de
Mato Grosso, Pará, Rondônia, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul. Chegaram 244 anos depois do vigário José Monteiro de
Noronha ter anotado pela primeira vez em seu caderninho, em 1768, a presença dos primeiros Munduruku – chamados por ele de “Maturucu” – às margens do rio Maués, no hoje estado do Amazonas.
Depois
do pouso, E. M. e um grupo de lideranças saíram à procura de
representantes da Funai e do chefe da operação para conversar. Só
encontraram o delegado da Polícia Federal, Antônio Carlos Moriel
Sanches, que, segundo as lideranças, responsável pela intervenção. "O
delegado falou que não tinha conversa com autoridade, com indígena,
tinha que fazer o que foram fazer", conta E. M.. "Uma liderança
[indígena] telefonou para Brasília, e de lá falaram que era pra avisar o
delegado que não fizesse nada até que alguém de Brasília chegasse lá".
"Nessa
hora, só estava a Polícia Federal. O pessoal da Funai e do Ibama
estavam juntos com os policiais, sobrevoando em dois helicópteros e
deixando os policiais em locais estratégicos para invadir a aldeia",
assinala E. M..
"O
delegado começou a empurrar as lideranças. Eu também fui empurrado. O
delegado disse que não tinha conversa com ninguém, nem com cacique nem
com liderança". Nesse momento, segundo E. M., estavam presentes as
lideranças, caciques, seguranças de caciques, mulheres e crianças.
"Foi
quando o delegado tirou o revólver para atirar na liderança que ele
empurrou. Foi nessa hora que o segurança do cacique empurrou o braço do
delegado, que escorregou e caiu na água, porque ali era um declive e
chão é liso", explica.
Foi
então que a Polícia Federal abriu fogo contra os indígenas. "Os dois
primeiros tiros contra a vítima foram dados pelo delegado, que ainda
estava dentro d'água, com a água pela cintura. Vários policiais
começaram a atirar contra os indígenas".
Segundo
os relatos, três tiros acertaram as pernas da vítima Adenilson Kirixi,
que perdeu o equilíbrio e caiu na água, sem conseguir se levantar
novamente. "Nessa hora, o delegado deu um tiro na cabeça do Adenilson,
que caiu morta e afundou no rio". Segundo os indígenas, o delegado foi
resgatado pelos policiais e levado para cima da draga. "Aí os policiais
jogaram uma bomba no Adenilson, quando o corpo já estava afundando no
rio".
Quando
os indígenas tentaram resgatar o corpo do parente, foram alvejados
pelos policiais que estavam em terra. "Eles diziam que não era para
pegarmos o corpo. Do helicóptero, a polícia atirava e jogava bombas de
efeito moral na aldeia, no meio de todo mundo, com as mulheres, as
crianças", relata.
Procurada
pela reportagem, a Polícia Federal não quis se manifestar sobre as
acusações. Segundo a assessoria de comunicação, talvez a PF e a Funai se
manifestem conjuntamente sobre o caso nos próximos dias.
Meu irmão
G.
K. era irmão de Adenilson. "Quando ouvi o tiroteio, fui correndo para a
beira do rio. Estavam dizendo que meu tio tinha morrido. Eu queria
saber se era verdade. Os policiais jogaram bomba e spray de pimenta. Meu
olho ardeu e eu fiquei sem rumo".
O
indígena relata que um terceiro helicóptero teria chegado nesse
momento, com mais policiais. Foi quando ele saiu correndo em direção à
mata, perseguido pela PF. "Me escondi embaixo das árvores, ouvindo o
barulho das bombas, dos helicópteros e dos tiros. Tinha mais gente
escondida lá também", relembra. Três horas depois, G. K. volta à aldeia e
insiste em apurar informações sobre a morte do irmão.
"Os
policiais me diziam que não tinha ninguém morto, que os feridos estavam
no hospital. Meu irmão não estava lá". O Munduruku encontrou, então, o
servidor da Funai, Paulão – os indígenas não sabem de onde veio -, que
acompanhava a Operação. Ele também lhe negara ter havido alguma morte.
Segundo todos os relatos, Paulão teria sido o servidor da Funai
responsável pelo acompanhamento da Operação.
O laudo cadavérico realizado pela Polícia Civil do Mato Grosso (veja)
confirmou que Adenilson Kirixi levou três tiros nas pernas e um tiro
frontal na cabeça. Não há informação se houve apreensão e perícia na
arma que efetuou – ou nas armas que efetuaram – os tiros.
Parte
dos indígenas fugiu para a mata, parte para as residências, imaginando
que ali estariam seguros. Durante a fuga, dois indígenas foram
gravemente feridos pelos policiais. E. M. e O. K. estão hospitalizados em Cuiabá. Outros
indígenas também foram levados para o hospital. O pelotão, então,
invadiu a aldeia, arrombando portas e janelas, jogando bombas dentro dos
domicílios "Levaram tudo o que tinha dentro das casas, nossos facões,
facas, espingarda de caça", atesta.
"Chutaram meu pai"
"Eu
vi os tiros e saí correndo pra pedir socorro no rádio e na internet.
"Quem estava no rádio comigo ouvia os tiros", conta I. W.. "O meu pai
chegou onde eu estava, ferido. Tinha levado um tiro de bala de borracha.
A gente saiu começou a gritar pra eles pararem de atirar, mas eles não
pararam", relata I. W.. "Corriam atrás da gente e atiravam. Atiraram na
mulher do meu irmão, que está grávida de 8 meses. Atiravam com bala de
borracha e com bala de verdade também".
"Então
entramos de novo em casa, com mais umas dez pessoas. A polícia arrombou
a porta e entrou jogando bombas de gás lacrimogêneo na gente. Tinha uma
mulher com um bebê de dois meses lá dentro". Segundo I.W., os policiais
mandaram todos saírem da casa e colocarem as mãos na cabeça. "Chutaram o
meu pai e agrediram todos os homens que estavam ali. Eu dizia pra eles
que a gente não era bandido pra ser tratado daquele jeito".
Segundo
I. W., aos homens – também idosos e crianças – foi ordenado que
deitassem no chão com as mãos na cabeça, enquanto as mulheres e crianças
foram mantidas como reféns, separadamente, no campo, com armas
apontadas para elas. "As mulheres e crianças ficaram o dia inteiro
debaixo do sol, com os policiais armados em volta. A
gente pediu comida, mas não deram. Não deixavam a gente falar a nossa
língua, só português". "Eu gritava, e o policial me perguntou se eu
estava com raiva. Eu respondi que sim, porque estavam invadindo a aldeia
e as casas. Os policiais disseram que tinham um mandado judicial e que
só estavam cumprindo sua obrigação. Eu perguntei pra eles se o juiz
também tinha autorizado que eles invadissem as casas e agredissem as
pessoas".
"Arrombaram
o posto de saúde, jogaram uma bomba de gás e apontaram uma arma para a
cabeça da técnica de enfermagem, L. R.. Jogaram os remédios no chão e
quebraram os medicamentos. Também atiraram na escola, jogaram bombas e
quebraram as telhas", relata. I. W. chorou muito ao contar esta
história.
"O
tiroteio durou 30 minutos. Parecia filme de guerra. Quando pararam de
atirar, um grupo de policiais saiu em busca do corpo que havia afundado
no rio, enquanto outros recolhiam cascas de munição e bombas que
encontravam pela frente", relembra E. M.. "A gente ficou cercado pelos
policiais. Levaram o nosso rádio. Destruíram o motor que gerava energia
para a aldeia".
Os
índios feridos foram levados de helicóptero para atendimento no
Hospital Regional de Alta Floresta, em estado grave. Segundo as
lideranças indígenas, ainda estão internados. Os agentes da PF receberam
atendimento no local.
E.
M. relata as prisões posteriores ao ataque. "Eles levaram 17 pessoas
para a fazenda Brascan, onde havia uma base da polícia", conta. O irmão
de E. M. também havia sido preso. Uma indígena que acompanhava o irmão
que havia sido preso, também foi levada. Eles foram enviados a Sinop, no
Mato Grosso – a aldeia fica em Jacareacanga – e depuseram à polícia. Os
depoimentos teriam sido acompanhados por um Procurador da Funai de
Cuiabá cujo nome não souberam dizer. Posteriormente, foram levados de
volta à aldeia pela polícia.
Foi
no final da operação, ainda no dia 7, que as dragas e balsas foram
destruídas. Segundo os indígenas, cada uma das 11 embarcações destruídas
no leito do rio tinham de 30 a
40 mil litros de combustível, além de baterias. Eles relatam que os
peixes estão morrendo e que não podem usar o rio, agora contaminado
pelos fluídos.
Segundo os indígenas, a polícia permaneceu nas proximidades por mais três dias.
Os
professores e profissionais de saúde não-índios não querem voltar para a
aldeia. Os alunos não querem ir às aulas. A comunidade possui cerca de
500 pessoas, contando com mais duas aglomerações, a dos Kayabi e a dos
Apiaká, que também dependem da estrutura de Teles Pires.
Blitzkrieg bop
No
dia 6, W. U. conta que indígenas Kayabi compartilharam pelo rádio a
informação de que helicópteros estavam sobrevoando suas terras.
"Achávamos que eles estavam vindo pra se reunir com a gente", relata.
Contudo, segundo W. U., o que estava acontecendo ali era a construção
das bases da Operação Eldorado. A primeira fora construída na Fazenda
Brascan, localizada no Vale Ximari, em Apiacás (MT), a dez quilômetros
da comunidade Kayabi. A segunda base da Operação foi montada a um
quilômetro da aldeia, no igarapé Buretama. Foi neste local, "onde há
apenas um morador", que um grupo de guerreiros Munduruku foi ter com os
policiais para entender o que estava acontecendo.
Quando
os indígenas encontraram os policiais, eles estavam evacuando uma das
balsas que seria destruída. "Perguntamos o que eles iriam fazer. Eles
disseram que não queriam conversa, que vieram fechar o garimpo e
explodir as dragas, que tinham uma ordem judicial pra isso". Os
indígenas pediram para ver o mandado que autorizava a Operação e
insistiram sobre a necessidade de uma reunião entre a polícia e as
lideranças. "Explicamos que o garimpo era o nosso sustento, que não
poderiam fechar assim. Trouxemos o documento do acordo com a Funai sobre
o garimpo", explica. "Aí começou o desentendimento. Um policial quebrou
uma flecha e deu um empurrão num cacique de uma aldeia próxima. Eles
falaram pra gente tirar o que a gente quisesse da draga, porque a draga
ia ser explodida, e assim foi feito". Segundo W. U., os indígenas
retornaram à aldeia para contar ao cacique e outras lideranças que a
polícia estava na área e havia destruído uma das embarcações. Os
policiais suspenderiam a destruição e só voltariam no dia seguinte.
W. U. foi atingido por bombas e está com marcas de queimadura no corpo.
Segundo
todos os relatos, a Força Nacional de Segurança não se envolveu nos
momentos de violência da Operação. A Polícia Federal em Mato Grosso decidiu suspender temporariamente a Operação. O MPF do Mato Grosso e do Pará abriram investigação sobre o caso.
Continue lendo: Por que mataram Adenilson Munduruku?