A origem dos mercados futuros é também anterior ao capitalismo. Sua história tem registros há milênios na China e na Índia entre os povos nômades que levavam mercadorias de um lado para o outro atravessando os desertos da Ásia, da África e do Leste Europeu e combinavam o preço futuro (trocas) quando retornassem à porta da casa do freguês trazendo na volta suas encomendas. Os chineses são os maiores, em volume de negócios, e os mais agressivos operadores de commodities e de futuros do mundo.
Mercados sempre existiram com ou sem o capitalismo, porém com o capitalismo as trocas se tornaram monetárias, ou seja, em vez de trocarmos as coisas por outras coisas, por exemplo, um pedaço de carne por pão, uma galinha por um quilo de farinha, passamos a trocar as coisas por moeda (dinheiro). Daí, o que era feito de forma limitada e por subsistência (para atender às necessidades básicas) passou a ter outra conotação e relação de valores.
Poderíamos discutir as trocas de seres humanos por comida, de crianças por animais, entre tantas outras que também existiam antes do capitalismo e ainda persistem com todas as duras conquistas pelos direitos humanos e ambientais. O fenômeno de mercantilizar coisas e pessoas ou o que deve ou não ser mercadoria, a ética e que tipo de valores pautam essas atitudes, independentemente de ideologias e religiões, devem ser estudados à luz da ciência econômica, social, política, jurídica e, sobretudo, à luz da psiquiatria. Somente o ser humano mata por prazer. As outras espécies não agem dessa forma.
Voltemos para os mercados futuros e tomemos como exemplo o caso do matemático chinês David X. Li, cuja fórmula elegante, a Cópula de Gaussian, foi reproduzida pelos operadores de Wall Street. O método de David X. Li foi adotado por todos, desde os investidores em títulos, os bancos de Wall Street, agências de classificação de riscos (rating) e reguladores. E tornou-se tão profundamente enraizado no “modus operandi” do sistema financeiro que muitos fizeram dinheiro com este modelo matemático, porém ignoraram as advertências sobre as limitações do uso dessa metodologia e seus potenciais riscos. Não existe probabilidade zero nos mercados futuros. Sempre haverá riscos proporcionais ao tamanho dos ganhos. Aliás, dependendo do volume financeiro da aplicação, os riscos podem ser também correspondentes à capacidade da alavancagem (velocidade e volume entre alta e baixa) desses mercados. Assim sendo, estima-se que, para cada grama de ouro, multiplicam-se em torno de 100 vezes a possibilidade de se realizar prejuízos.
O modelo de David X. Li se desfez, produzindo falhas que apareceram desde o início da crise em 2008 com a quebra do Banco Lehman Brothers, engolindo trilhões de dólares e colocando em risco a sobrevivência do sistema financeiro internacional, que, como papagaio, repete as mesmas práticas sem qualquer fundamento técnico quando se trata de ganhar dinheiro rápido com o mantra: “temos que aproveitar as oportunidades que as crises nos proporcionam!”.
Modelos matemáticos
Seriam uma fórmula matemática e seu autor os responsáveis pelo rombo de Wall Street?
A tragédia encontra-se no subprime, o sistema multitrilionário que permitiu que os fundos de pensão, companhias de seguros e os fundos de hedge (cobertura) emprestassem trilhões de dólares para as empresas, países e compradores de casas.
A responsabilidade, na verdade, é de quem usou a fórmula inadvertidamente, até porque, em um mercado desregulamentado, ninguém é obrigado a utilizar nenhuma metodologia, a não ser que seja imposta por força da lei ou por um lobbypoderosíssimo como está ocorrendo com a adoção da TEEB (“The Economics of Ecosystems and Biodiversity” — A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade), cujo relatório foi coordenado pelo físico e economista indianoPavan Sukhdev. Como usar a TEEB e interpretá-la também deve ser responsabilidade atribuída aos que dela se utilizam. Porém não significa que a partir do momento em que a ONU adota essa metodologia não deve ser questionado para o quê e com quê objetivos a TEEB foi concebida.
Como economista brasileira de origem beduíno-palestina, recuso-me a aceitar fórmulas matemáticas e modelos econômicos impostos de cima para baixo e de fora para dentro, testando teorias financistas com seres humanos e o ambiente. Sou autora de uma fórmula matemática que ainda, por questões de segurança, noção de risco e por não subestimar a inteligência alheia, não revelei e não pretendo revelar tão cedo.
Diferentemente de David X. Li, não a fiz para ganharem dinheiro com ela e também, a exemplo do executivo indiano egresso do Deutsche Bank, Pavan Sukhdev, não a fiz por encomenda dos banqueiros, das corporações e nem da ONU.
Foi por convicção de que era necessário introduzir uma célula benigna no corpo da economia cancerígena que produz metástases, como a da crise de 2008, que a desenvolvi. Iniciei o desenho dessa fórmula em 1990 motivada pela guerra Irã-Iraque, com a minha experiência prática como operadora nos mercados decommodities minerais, ouro, petróleo e derivativos (derivado de ativos ou futuros). Como disse anteriormente, a discussão sobre “descomoditização” se deu muito antes da fundação da Via Campesina e da notoriedade alcançada porJosé Bové com sua luta antiglobalização e anti-industrialização inspirando os Fóruns Sociais Mundiais.
Sobre a fórmula que criei, trata-se da sequência numérica que decodifica as matrizes das “commodities ambientais”. É a “descomoditização” do padrão convencional que determinou o sistema que promove a “comoditização”. Como a palavra “descomoditização” é mais complicada e de difícil explicação, tornando-se uma expressão, tanto quanto a palavra “commodity”, cunhei a expressão “commodities ambientais”. Sobre este tema esclareço com o artigo “Pós Rio+20 – Reflexões conceituais sobre a ‘comoditização’ dos bens comuns”.
Compreendo a histeria dos ativistas indianos contra a “comoditização”, já que eles têm sido as principais vítimas destes modelos irresponsáveis e utilitaristas pelos alunos da escola neoliberal de Milton Friedman. Curiosamente, o executivo coordenador do controvertido e questionável relatório TEEB é um indiano.
Porém, não será porque a palavra “commodities” está sendo demonizada com toda a razão que devemos omiti-la, ignorá-la ou mesmo substituí-la por outra que tente minimizar suas consequências sem discutirmos a essência do seu significado ou como podemos combater o sistema que a tornou um grande problema socioambiental. Quem disse que commodity tem que ser o que é? Aqui, em Terra Brasilis, usam-na há 517 anos sem traduzi-la e, principalmente, sem ser contestada. Foram os europeus e estadunidenses os que nos fizeram “engolirem-na” com seu jeito tecnológico de nos fazerem produzi-las, pagando uma miséria por elas, enquanto os produtores rurais ou agricultores (as) e campesinos (as), como queiram, correm todos os riscos de clima, safra, financeiros, além do risco de precificação.
Assim como a bula de um médico prescreve tomar “diclofenato de sódio”, nome técnico-científico, e fala-se em biodiversidade, ecossistemas, biomas no “biologuês”, sirvo-me dos nomes técnicos e científicos em economia e finanças para prescrever o receituário de um remédio, mas não me atrevo, no entanto, a aplicá-lo sem antes analisar com a sociedade se terá efeito positivo ou negativo o tal remédio. Nem tenho também a pretensão de produzi-lo sozinha, pois considero essa alquimia um conjunto de muitos fatores, sendo necessário o envolvimento de diversos atores socioambientais nesta longa empreitada. Quanto a conceituá-la, ainda é algo que, para ter o efeito desejado, deve ser assimilado por um considerável grupo de mentes pensantes. Do contrário, não será conceito, podendo ser apenas um amontado de ideias interessantes ou não.
Concordo com a ecofeminista e cientista Vandana Shiva sobre sua afirmação: “alimento não é commodity”. De fato, alimento não pode se resumir a alguns produtos da pauta de exportação brasileira, por exemplo: soja, cana, boi, pinus e eucaliptos. A palavra commodity não encontra tradução ao pé da letra em português, fato este que está registrado na literatura financeira apenas em inglês por se tratar de uma expressão mundial de finanças e de comércio exterior.
Direito à alimentação
Como seres humanos, alimentamo-nos com muitos outros produtos, e melhor e mais saudável seria que não fossem produzidos com veneno, como os agrotóxicos. Infelizmente, essa maneira de produzir ainda faz parte de nossa alimentação urbana fast food. São esses os ditos “alimentos” que compramos no supermercado e nas feiras livres, com poucas ou raras exceções, com a agroecologia disputando espaços restritos nas prateleiras dos supermercados e nos poucos guetos a preços inacessíveis para a maioria dos mortais sem poder de compra.
A cientista Vandana Shiva diz algo que deve ser considerado à luz da ciência econômica, já que a produção de commodities nem nos alimenta e nem nos sustenta financeiramente. Há muito tempo, deixou de ser alternativa econômica, gerando emprego e renda no campo, para ser concentração de capital na mão dos mesmos capitalizados com a “oportuna” falta de política agropecuária, de soberania e segurança alimentar que estão diretamente ligadas às mais das emergências reinvindicações de campesinos, sem terra, comunidades tradicionais e povos da floresta: a reforma agrária e o direito à terra.
No entanto, não poderíamos afirmar que “alimento não é mercadoria”, usando a palavra em português sem explicá-la no “financês”. A afirmação “alimento não é mercadoria” não encontra respaldo na realidade e no imaginário das pessoas comuns (não politizadas). Pode ser palavra de ordem, uma expressão derivada da frase cunhada a partir da justa e necessária luta de José Bové, que encontrou apoio na Via Campesina. Esta sim encontra respaldo na realidade em que vivemos nessa economia de mercado, ao afirmar que “o mundo não é uma mercadoria” — seja em português como em inglês — “o mundo não é uma commodity”.
Senão vejamos: alimento é mercadoria sim, porque ainda temos que comprar alimento no supermercado, na padaria, nas feiras livres, nos hortifrutigranjeiros, nos mercados, nas quitandas, entre outros cantos. Também o Estado não nos proporcionará alimento gratuito. Mera ilusão achar que o Estado vai dar comida grátis para todo o contingente dos mais de 7,5 bilhões de seres humanos neste planeta, sem contar, é claro, os demais seres vivos.
Certamente, como defende Vandana Shiva, “alimento não é commodity”, porque, afinal, não nos alimentamos com monocultura intensiva (uma única cultura), sendo apenas cinco principais produtos da pauta de exportação brasileira, e nem podemos deixar de nos alimentar com outras variedades que são mais importantes e garantem a segurança alimentar e nutricional, como raízes, verduras, legumes, frutas, cereais, folhas verde, cascas, mel de abelha, temperos, condimentos, leite, ovos, farinhas, carnes diversas (não somente a de gado, frango e suíno), peixes, frutos do mar, e por aí vai afora, sem contar com as plantas que curam. Medicamentos podem ser tradicionais ou alternativos. Por que estamos nos matando na medicina convencional com drogas que viciam e provocam efeitos colaterais?
Assim sendo, proponho adotar outra frase, que compreendo ser mais adequada ao que se pretende comunicar: “alimento é direito humano e dos demais seres vivos”. Não deixarei os outros seres vivos de fora desta pendenga, considerando o aprendizado adquirido com o eco-historiador e ambientalista Arthur Soffiati, que nos apresenta o desafio do novo paradigma naturalista organicista contemporâneo:
O paradigma mecanicista continua impregnado no ser humano ocidentalizado, agora de forma prática. Por outro lado, emerge um novo paradigma, que poderíamos chamar de naturalista organicista contemporâneo. Em lugar do “penso, logo existo”, coloca-se agora o “computo, logo existo”. Computar é processar as informações e transformá-las em conhecimento para a vida. Todos os seres vivos — unicelulares ou pluricelulares — computam. Logo, todos podem ser considerados sujeitos e objetos.
Se entendermos que “alimento é direito humano e dos demais seres vivos”, estaremos empunhando uma bandeira que encontrará respaldo no imaginário das pessoas e levantará um questionamento fundamental: por que temos que comprar alimentos caros e ruins nos supermercados? Se é que o que está no supermercado pode se considerar “alimento”. Dar uma papinha industrializada para seu bebê é estar alimentando-o?
Com estas indagações, entre outras, provocamos inquietudes e, dessa forma, promovemos uma discussão filosófica e mais eficiente nas mentes, nos corações e nos estômagos, conscientizando as pessoas sobre o que afinal estamos produzindo e consumindo.
Podemos começar filosofando como o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: “Ser ou não ser mercadoria: eis a questão!”.
Notas:
EL KHALILI, Amyra. Pós RIO+20: Reflexões conceituais sobre a “comoditização” dos bens comuns.
EL KHALILI, Amyra. Ser ou não ser mercadoria: eis a questão!. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 13, n. 74, p.77 -80, mar./abr. 2014.
Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.