quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Nota do Cimi Regional AO sobre as apreensões de cartões de beneficio de indígenas

 

NOTA PÚBLICA

 

            O Conselho Indigenista Missionário- CIMI, Regional Amazônia Ocidental, órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, vem a público manifestar irrestrito apoio às recentes ações do Ministério Público Federal, Polícia Federal, Ministério Público Estadual e Polícia Civil, no sentido de fazer cessar a prática criminosa e recorrente de retenção dos cartões de benefícios de indígenas por terceiros, notadamente comerciantes e mesmo políticos, como o caso da vereadora do município de Feijó recentemente presa.

            A prática de retenção dos cartões remete ainda ao tempo dos barracões, na política de aviamento. Tanto é assim, que os indígenas denominam os criminosos que se apropriam de seus cartões de “patrões”.  Patões aos quais sempre estão devendo. Além da dívida impagável, são obrigados a seguir comprando no comércio do patrão e, não raras vezes, são obrigados a aceitarem mercadorias inclusive com prazo de validade expirado.

            Resulta ainda dessa prática criminosa, o aumento do preconceito contra os indígenas, já que não tendo dinheiro para a compra de mercadorias e combustíveis para o retorno às aldeias, são obrigados a permanecerem por mais tempo nas cidades e em condições absolutamente desumanas. Várias vezes alguns desses indígenas se veem na obrigação de buscar restos de comida nos lixões das cidades, despertando ainda mais a ira dos preconceituosos que se recusam a enxergar e reconhecer que, se os indígenas estão naquelas situações é justamente porque os patrões retiveram seus cartões de benefício.

            Nos custa muito ver crianças desnutridas e mesmo levadas a óbito em decorrência dessa prática criminosa. Observamos ainda o aumento da violência contra estes povos e também o aumento dos casos de suicídio, tudo agravado por essa prática comum, mas criminosa.

            Há muitos anos o Cimi vem denunciando essas práticas nas diversas cidades do Acre e Sul do Amazonas, contudo as respostas sempre foram tímidas. Esperamos que dessa vez seja para valer e que ações como a realizada recentemente em Feijó se repitam em todos os municípios para que, se não cessar, pelo menos venha a inibir a ação desses criminosos.

 

Rio Branco, 09 de agosto de 2022.

Dia Internacional dos Povos Indígenas

 

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO – CIMI

REGIONAL AMAZÔNIA OCIDENTAL

 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Carta de Cruzeiro do Sul.

 Chegamos à conclusão que estes projetos da economia verde, ao invés de solucionar, agravam as ameaças sobre nossos territórios e a própria crise climática e ambiental. Trata-se na verdade de esquemas de pagar para poluir, de gerar pretextos para viabilizar a continuada queima de combustíveis fósseis e o continuado crescimento econômico capitalista.


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Nos, integrantes dos povos Manchineri, Apurinã, Katukina Noke Kuí, Jamamadí, Jaminawa, Sharanawa, Huni Kuim, Shanenawa, Ashaninka,  Madiha, Kuntanawa, Jaminawa-Arara, Jaminawa do Igarapé Preto, Marubo, Arara, Apolima-Arara, Kanoé Rondonia, Oro Wari Rondonia, Bororo, Nukini, Nawa, agricultores/as, trabalhadores/as rurais extrativistas, representantes das organizações Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM), Amigos da Terra Brasil, Sempre Viva organização Feminista (SoF), Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Movimento dos Trabalhadores/as Sem Terra (MST-RO), Movimento dos Pequenos Agricultores/as (MPA – RO), reunidos nos dias 11 e 12 de junho no Centro de Treinamento Diocesano, na cidade de Cruzeiro do Sul no Acre, no evento Golpe Verde na Amazônia, identificamos as diversas ameaças que afetam nossos territórios e nossa sobrevivência cultural, social e física:

  1. A não demarcação de muitos de nossos territórios, incluindo aqueles dos povos em situação de isolamento voluntário, assim como a ameaça dos já demarcados pelo marco temporal e outras proposituras legislativas;
  2. Os projetos de construção de estradas e hidroelétricas, exploração de petróleo e gás, minérios e de madeira e a expansão do agronegócio, sem que haja sequer processos de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);
  3. O aumento das invasões, inclusive armadas, nos territórios, das perseguições e assassinatos durante o Governo Bolsonaro, por garimpeiros, pescadores e caçadores ilegais, madeireiros e traficantes, a exemplo do ocorrido com o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips;
  4. O desequilíbrio social, a violência interna, os suicídios e o êxodo rural que estes projetos e invasões provocam em nossas comunidades ao, entre outros, introduzir uso de álcool, drogas e abusos sexuais, incluindo desaparecimentos e a violência contra criancas;
  5. O acelerado avanço dos projetos do tipo REDD, REDD+, PSA ou, como chamam ultimamente, Soluções baseadas na Natureza (SbN), que vem sendo apresentados como soluções para o desastre climático e ambiental em curso, assediando nossas lideranças e organizações, cooptando algumas delas e causando graves conflitos internos.

Chegamos à conclusão que estes projetos da economia verde, ao invés de solucionar, agravam as ameaças sobre nossos territórios e a própria crise climática e ambiental. Trata-se na verdade de esquemas de pagar para poluir, de gerar pretextos para viabilizar a continuada queima de combustíveis fósseis e o continuado crescimento econômico capitalista. Os esquemas de compensação climática e ambiental, de fato, andam de mãos dadas com a destruição exercida pelos megaprojetos e invasões diretas em nossos territórios. As falsas soluções, assim como os mercados de carbono, prosperam na medida em que ameaças e violência aumentam.

Diante estas constatações, seguiremos denunciando todos os projetos que atentam contra a autonomia dos povos da floresta, seus territórios e a própria vida.

Nos reconhecemos como parte do grande organismo vivo que é a terra. Os diversos ataques que o capitalismo lança em ritmo acelerado sobre as florestas e seus povos agem como um vírus que ataca este organismo. Na medida em que este vírus se espalha, se transforma, assume novas formas e se camufla. Porém, a nossa luta, nossas rezas, rituais e cantos de cura, também se tornam cada vez mais fortes a medida em que nos unimos para enfrentar esses projetos de morte.

Como povos da floresta, somos a voz que cura e se levanta para defender a Mae Terra.

Cruzeiro do Sul, Acre , 12 de Junho de 2022.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Documento Final do Seminário Binacional Brasil/Peru

 

Documento Final do Seminário Binacional Brasil/Peru
Amazônia: Sociobiodiversidade, resistência ao modelo desenvolvimentista predatório

 

Nós, lideranças dos povos indígenas, Apolima Arara, Jaminawa do Igarapé Preto, Inũkuĩni, Huni Kui, Nokekoĩ, Ashaninka, Shãwãdawa, Nawa, Kutanawa, Shanenawa, Madija, Apurinã e Jamamadi, do Juruá, e Marubo, do Vale do Javari.

Reunidos entre 24 e 26 de maio de 2022, após análise do projeto de construção da estrada Cruzeiro do Sul-Pucallpa e conversa em conjunto entre nós e com especialistas, estamos por meio deste demonstrando nosso descontentamento e repúdio ao projeto acima citado.

Salientando o fato da ausência de Consulta Prévia, Livre e Informada, sobre quaisquer uma das obras presentes no plano, para com os povos indígenas, o que descredibiliza e deslegitima tais ações presentes em território indígenas.

Estamos cientes de que a construção da estrada se encontra dentro de um conjunto de modelo desenvolvimentista predatório incluindo exploração de minério, madeira, petróleo e gás.

Situada na região, com a maior bacia do mundo de água doce de superfície, há terras indígenas ainda não demarcadas e a presença de povos em isolamento voluntário que seguem sendo ignorados e negados.

Lembrando ainda que não foram realizados Estudos de Impacto Ambiental, necessários a todos os projetos que afetam o meio ambiente e as populações locais.

Além de todos os malefícios decorrentes da construção da estrada, vulgos “ramais” adjuntos que acabam por se tornarem portas de entrada para desmatamentos, ocupações ilegais e atividades ilícitas.

Antes de quaisquer iniciativas que impactem nossos territórios, exigimos:
-Demarcação e reconhecimento de todas as terras indígenas, garantias aos territórios de povos indígenas sem contato (isolados) e regularização fundiárias de comunidades tradicionais;
-Medidas para manutenção de flora, fauna e biodiversidade;
-Garantias de preservação de segurança alimentar das populações locais;
-Realização de Estudo de Impacto Ambiental, com dados reais, incluindo as diversas formas de poluição (sonora, visual, de água, solo), o desmatamento de grandes áreas, etc.;
-Medidas de segurança pública como prevenção ao aumento de violência contra as comunidades e lideranças.

Por tudo isso, nós, lideranças dos povos indígenas, rejeitamos o projeto de estrada Cruzeiro do Sul-Pucallpa e também o Projeto de Lei 6024/2019, que visa a redução da Reserva Extrativista Chico Mendes e reclassifica o Parque Nacional da Serra do Divisor para Área de Proteção Ambiental.

 

Cruzeiro do Sul – AC, 26 de maio de 2022

quarta-feira, 18 de maio de 2022

10 anos do REDD+ no Acre e seus impactos sobre as mulheres indígenas e extrativistas Entrevista com Letícia Yawanawá e Dercy Teles

Dercy Teles. Foto Rosa Luxemburgo

Leticia Yawanawa


O programa REDD+ no estado do Acre na Amazônia brasileira tem sido usado como modelo para o mundo durante muitos anos por promotores do REDD+ como WWF e Banco Mundial. Mas em todas as avaliações feitas deste programa, pouco se fala sobre impactos que a economia verde tem causado na vida das mulheres em comunidades que dependem das florestas. 

Nesta entrevista, conversamos sobre o assunto com duas das lideranças mais importantes do Acre e do Brasil na luta pela terra: a camponesa, professora e militante Dercy Teles de Carvalho e a indígena Letícia Yawanawá.

Dercy é extrativista, e foi apresentada no artigo anterior deste dossiê. Letícia - na língua materna chamada de Atai Yawanawá - atua no movimento indígena desde 1996. Atualmente, é conselheira da Organização das Mulheres Indígenas do Acre, Sul da Amazônia e Noroeste de Rondônia (SITOAKOR), entidade a qual ela já coordenou, por dois mandatos. Letícia também faz parte do Conselho Nacional das Mulheres Indígenas (CONAMI). 

Minha opinião: A revista GOLPE VERDE: Falsas soluções para  o Desastre Climático, trás, na fala de duas grande mulheres, uma leitura sobre o cenário atual e aponta luzes para um futuro possível se houver articulação para enfrentar o assédio de bancos, governos, empresas e ONGs. Falas mansas, porém, firmes a denunciarem verdadeiramente o GOLPE VERDE em curso pelos proponentes dos programas e projetos do tipo REDD +. Aproveitem essa oportunidade e tenham uma boa leitura.


DOSSIÊ: Sempre foi dito que o REDD+ é programa no qual os indígenas seriam uma das prioridades. Como você avalia estes 10 anos do REDD+ no Acre para os povos indígenas? 
 
Letícia: Faço uma avaliação muito negativa. Eu fiquei quase seis anos como conselheira do SISA. Quando a coordenadora do REM/SISA chegava das COPs, dizia que muitos indígenas seriam beneficiados. Daí eu começava a observar quais são os benefícios que os Povos Indígenas tinham. O que me lembro - quando era coordenadora da SITOAKORE e andava muito nas terras indígenas na época - é que não vi nenhuma comunidade que tem um benefício desse programa REDD+. Além disso, a gente ainda tem terra para ser demarcada aqui e que nunca foi apoiado. É ainda uma luta, a demarcação das terras. 

 Agora, o que eu via na cidade, no governo, é que eles tinham uns setores bonitos, bem equipados, com muitos técnicos vindos de outros lugares, que ganham do SISA. Mas eu não vi um índio trabalhando lá dentro, nem mulheres, nem homens. Porque não dá para dizer que os índios não têm capacidade, tem várias indígenas parentes formadas também que poderiam estar trabalhando, mas a gente via – vê, até hoje - só os técnicos. 

Como conselheira do SISA no passado, eu falei que os recursos que vinham para os povos indígenas teriam que ser um recurso que tivessem um resultado, que ficasse na aldeia, para o bem da comunidade. Entrar no escritório do SISA era muito bonito, mas nós sequer tínhamos uma estrutura de referência para os indígenas, nem para mulheres, nem para homens. Eu falava, e muitas vezes as pessoas me olhavam dizendo: “ela só vem para criticar”. Há outras parentes que vinham para uma reunião do SISA, que ganhavam diária e que não podiam falar nada, não... 

Eu nunca fui bem vista pelo governo. Eles foram obrigados a chamar a gente porque nós somos uma organização de mulheres toda legalizada, que é o que eles pedem. Então não tinha como não nos convidar, porque também éramos uma organização de representatividade de três estados - do Acre inteiro, do Sul da Amazônia que é a Boca do Acre, e do Noroeste de Rondônia. Enquanto o SISA se apresentava dizendo que estava trabalhando com 20, 30 associações, eu digo: mentira! Porque a maioria não existe mais. Hoje você vê outras associações e ONGs que tomavam conta destes recursos - a própria Comissão Pró Indio, a Associação do Movimento de Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre... 

DOSSIÊ: O programa REDD+ provocou uma mudança na organização dos povos, criando mais associações para que o governo pudesse distribuir recursos. Você já disse que não viu mudanças, que o dinheiro do REDD tampouco ajudou a demarcação das terras indígenas. Como tudo isso afetou as mulheres indígenas nas comunidades? 

Letícia: Como coordenadora da organização de mulheres, eu disse que nós, mulheres indígenas, não somos abelha, não, nem formiga, para viver de cheiro. Nós vivemos de ação concreta, por mais que seja pouco. Teve uma reunião onde estavam vários países num hotel aqui muito luxuoso. Estavam autoridades de vários países. Mas não me convidaram porque eles não queriam que eu aparecesse para falar a verdade. 

Mas eu cheguei nessa reunião. Esperei todo mundo falar. Tinha muitas pessoas olhando para mim com muita preocupação, porque sabiam que eu ia falar! Aí eu pedi a palavra, porque eu era conselheira titular do REM/SISA. Estávamos quatro mulheres, eu disse: “olha mulheres, eu vou falar. Eu não costumo mentir, não costumo falar coisas que não é certo”. Falaram de vários orçamentos, de milhões e milhões. Aí eu falei: “aonde estão os milhões? Nós, mulheres, aonde estamos incluídas nestes milhões?” Todo mundo olhou assustado. Eu disse: “onde é que nós estamos? Nós estamos esquecidos no meio da floresta com este programa do REM, que é o mesmo programa do REDD”. A moça que é da Alemanha, Christina, ela me ouviu, ela disse: dona Letícia, eu preciso falar com você. Esperei e, quando ela saiu, ela já nem ligou mais. Ela já nem mais olhou para mim. Aí escrevi a carta para sair do conselho. 

Nós mulheres não fomos incluídas. Se tiver, é o pessoal da CPI, se tiver é a nossa parente Francisca Arara, ela é representante do governo, mas não das mulheres indígenas das aldeias. Porque uma associação indígena que tem uma mulher eleita pela aldeia, é uma outra coisa, que fique claro isso. Não estou esculhambando, estou falando a verdade. As mulheres não têm participação. Se tiver mulher que vai para outro país, são aquelas representantes do governo, é outra coisa. Mas as mulheres indígenas do Acre não têm participação. 

DOSSIÊ: E como o REDD tem afetado as mulheres extrativistas dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes ao longo destes 10 anos, período no qual foram implementados vários projetos do REDD+ para beneficiar as famílias e as mulheres? ‘Bolsa verde’, o projeto de ´floresta plantada´, o manejo florestal do corte seletivo de madeira... 

Dercy: Em 2010, quando o governo do Acre assumiu a política do REDD+, decretou o ‘fogo zero’ e veio com a ‘bolsa verde’. Era um pago trimestral em compensação pelo fato que o povo não podia mais abrir uma roça na floresta, o que é um prejuízo cultural irrecuperável, porque as mulheres, tanto as indígenas como as mulheres das populações tradicionais extrativistas, sempre foram quem trabalhavam na roça. Com essa proibição a partir de 2010, deixaram de produzir. E a comida é uma das coisas fundamentais na vida, sem comida ninguém consegue viver e ser feliz. As mulheres plantavam legumes e vendiam. Hoje as pessoas dependem de comprar comida, arroz polido que vem de outro estado, do Mato Grosso... A ‘bolsa verde’ é uma esmola, não sei se já aumentou o valor, mas era 100 reais [menos de 20 dólares] por mês. E neste momento, o ICMBio (5) está distribuindo sacolões de produtos industrializados dentro da Reserva. Então, é uma coisa que afeta a vida das mulheres profundamente porque ela também deixa de passar para os filhos essa cultura, de se produzir aquilo que consome, sem agrotóxicos, de qualidade, na própria comunidade. 

Em relação ao projeto de ‘floresta plantada’, também chamado de ‘sistema agroflorestal’, conversei com uma mulher que fez parte deste programa, e ela reclamou muito. Primeiro em relação ao volume de trabalho que é acrescentado na vida da família. Segundo, porque enquanto recebiam as mudas preparadas para plantar, não tinham nenhum apoio para realizar o trabalho, como uma roçadeira e combustível, isso para manter o sistema agroflorestal de acordo como eles queriam. E a família era cobrada pelo presidente da associação que estava à frente deste projeto, e visitava periodicamente para verificar se a manutenção estava dentro dos padrões do projeto. Ela disse que a vida dela se transformou num inferno. 

Outro problema era que as mudas só eram oferecidas fora da época chuvosa, porque tinha que ter sido nessa época para as plantas se afirmar na época seca. Por isso, a maioria das plantas não se sustentaram, porque as pessoas não tinham condições de irrigar. Concluindo: só deu certo para cinco pessoas, e essas cinco pessoas todas estavam ligadas ao governo. Ou seja, elas não botavam a mão na massa. Elas pagavam alguém para fazer o trabalho. Por isso deu certo para elas. 

Sobre o ‘manejo florestal’, isso na verdade não teve nada de sustentabilidade, pelo contrário, abriu precedentes para que as próprias comunidades destruíssem a floresta. Porque, nestes 20 anos que governou o Acre com este discurso do desenvolvimento sustentável, o governo não implementou nenhuma política que garantisse a sustentabilidade das famílias. O manejo não deixou recursos que mudasse a vida das famílias, pelo contrário, empobreceu-as. E criou um precedente para as famílias continuarem vendendo madeira, independentemente de ter empresa fazendo manejo ou não, elas estão vendendo para os grandes criadores de gado cercar seus pastos. E a gente sabe que isso vai causar só o empobrecimento da população, especialmente as mulheres, que vão terminar nas periferias das cidades, passando necessidades, vendo as filhas que ainda têm se prostituírem, entrarem nas facções do tráfico. 

Isso é um dado muito complicado, porque a gente sabe que, antes, as mulheres conseguiam criar os filhos dentro de um padrão cultural de respeito e de responsabilidade. Hoje a gente vê as meninas de 14, 15 anos, com criança no braço... Há casos de abuso sexual de menores e tem famílias destruídas. Mas fica no anonimato, fica invisível, e fica por isso mesmo. Então a entrada desses agentes externos levou a uma descaracterização profunda do modo de vida, e só deixaram ruína. Nada positivo. 

Tem uma série de outros elementos que contribuíram para uma espécie de naturalização daquilo que está ocorrendo. Por exemplo, o celular mais moderno está dentro da Reserva, nos mais distintos recantos. A televisão também. São elementos que dispersam, impedem as pessoas de refletirem. Outro elemento que também contribui significativamente, são as igrejas evangélicas. Contribuíram com este processo de dispersão das pessoas em relação à realidade e ao futuro. 

Dossiê: Uma das propostas do programa REDD+ é transformar as mulheres indígenas em microempreendedoras, criar mercados até no exterior para os artesanatos. O que você acha destas iniciativas? 

Leticia: Eu andei em várias terras indígenas. Vi que 90% dos artesãos são as mulheres indígenas, que fazem seu artesanato e suas pinturas, para uso e para comercialização. Criam uma auto-sustentabilidade dentro da aldeia. Tem muitas mulheres, viúvas ou, às vezes, deixadas pelo marido, que estão ali, com seus filhos. Essa mulher, ela se ajuda com seus filhos, faz seu artesanato, é com essas mulheres que a gente tinha compromisso de fazer, de ter um espaço para nós receber os artesanatos das mulheres, vender e devolver o dinheiro para as mulheres. Isso foi que nos falamos para eles, era o desejo das mulheres, mas isso não aconteceu. 

O artesanato sempre foi para nosso uso e ele tem um valor simbólico, e não se faz um artesanato de qualquer jeito. Você está transformando aquela miçanga num desenho que tem um significado para relembrar nossas pinturas quando ainda não tínhamos contato. E sempre quando a gente vende o artesanato, a gente faz uma cerimônia. Aquela pessoa que leva é abençoada. Tem um anel preto que os Apurinã fazem, né? Eles fazem um ritual quando a mulher está com cólica, coisa de mulher mesmo, coloca isso aí para ela não ter tanta cólica. Então todo o artesanato para nós tem um significado, um valor cultural e espiritual. 

Dossiê: O REDD+ afirma que é um mecanismo para reduzir o desmatamento, mas depois de 10 anos de REDD no Acre, o desmatamento está aumentando, ainda mais com Bolsonaro no poder. Como isso tem afetado reservas extrativistas e terras indígenas? Quais os desafios para as mulheres lidarem com isso? 

Dercy: As mulheres das comunidades tradicionais faziam muitas atividades, inclusive o cipó. Estive recentemente num ramal e percebi que onde era só floresta e onde eu, no passado, quando era agente de saúde, andava a pé, a floresta desapareceu. Com isso, as mulheres foram prejudicadas, porque elas faziam coisas do cipó e ganhavam dinheiro. As vassouras, os paneiros para colher milho e juntar arroz na roça. As cestas para guardar roupas usadas, outras para juntar ovos de galinha, porque ficam bem ventilados e isso facilita a durabilidade. Hoje não dá mais fazer isso, não tem mais cipó porque tudo virou pasto. 

O desmatamento teve uma celeridade violenta nesse período do Bolsonaro no poder, de 2019, 2020, 2021, em função da desvalorização do extrativismo. Como o extrativismo não sustenta a demanda de consumo que foi colocado com a chegada dos ramais e a energia, as pessoas estão loteando as colocações, e na medida que elas loteiam cada um desmata um tanto de hectares, ou seja, vai se formando uma grande fazenda com muitos donos. Porque um vende 3 hectares, outro vende 5, outro vende 6. Hoje, você sai daqui de Xapuri e você adentra a reserva extrativista de um lado para outro pelo ramal, pela estrada. 

Sobre todo este processo que veio com o REDD+, minha perspectiva é que a gente consiga reverter esse quadro a partir de um processo educativo, trabalhado junto a essas comunidades, numa linguagem acessível que as pessoas possam compreender. Até porque as pessoas não tem como se contrapor porque os promotores do REDD+ usam uma linguagem que ninguém consegue compreender o que eles estão falando. E quando você não tem informação, você não tem argumento para se contrapor. 

Nós mulheres, a gente tem que fazer um investimento no campo político mesmo. De inserir as mulheres nesse debate para que elas compreendam esse processo, porque nós somos a maioria no Brasil. Então, a gente pode fazer a diferença, a partir do momento que a gente compreender tudo que está acontecendo, a gravidade deste processo, e se posicionar politicamente. 

Leticia: A gente vê isso com muita tristeza. Nossa Samaúma, segundo nossa história, nossa espiritualidade, é uma árvore muito grande no meio da floresta, por isso dizem que ela é uma mulher, ela é fruta, ela é sombra, ela é a maior de todas. Agora tá pior porque a gente vê madeiras e madeiras cortadas. Madeira que cresceu por 40 ou 50 anos, cortada em alguns minutos. É muito triste a gente ver isso. 

 A Samaúma, se ela fosse uma mulher que falasse, ela estava chorando. Ela grita quando seus filhos são levados embora. Com isso, vêm as secas, que afeta o povo das nossas terras porque nossas terras estão cercadas por pessoas que a gente nem conhece. Os animais acabam saindo daquele lugar desmatado, os igarapés – os riachos que desaguam num rio - secando, e no final os rios secando. Como mulher, indígena, a gente vê isso com muita tristeza. 

Mas nós vamos continuar na nossa terra, com dinheiro ou sem dinheiro. É nossa obrigação como indígena. Com apoio vai ser melhor. E que não venha orçamento só para beneficiar os escritórios do governo na cidade, e que tenha principalmente apoio para as mulheres, as mulheres precisam. 

 (1) Com populações extrativistas, queremos dizer populações cujo modo de vida se baseia na extração de produtos da floresta, ou de outro bioma, muitas vezes completado por uma agricultura de subsistência. Os seringueiros, população extrativista do estado do Acre, é um exemplo, vivendo da extração de látex das árvores seringueiras. 
(2) É chamado “REDD+ jurisdicional” quando a implementação não é apenas na terra atribuída a projetos específicos, mas em toda uma jurisdição, como um departamento, uma província, um estado ou um país. Leia mais : https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao2/de-projetos-de-redd-para-redd-jurisdicional-mais-noticias-ruins-para-o-clima-e-as-comunidades/ 
(3)https://www.wwf.org.br/?33524/Acre--primeiro-estado-a-realizar-transaes-com-REDD 
(4) Denominação dada ao lugar de vida e trabalho dos seringueiros e sua família. Constituída geralmente pela casa de moradia e uma área destinada à pequena agricultura e criação de animais, circundada pelas estradas de seringa. O tamanho médio dessas colocações gira em torno de 300 ha. 
 (5) ICMBio: Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, órgão federal governamental, responsável pela gestão das Reservas Extrativistas - RESEX

quinta-feira, 14 de abril de 2022

ACAMPAMENTO TERRA LIVRE ACRE 2022: Apesar dos pesares a luta segue com força e fé

Exigimos que sejam reconhecidos os direitos e a existência das comunidades tradicionais e indígenas que vivem em unidades de conservação, como o caso dos Sharanawa no Parque Chandless e dos Nawa e Nukini no Parque Nacional da Serra do Divisor.


Criança Huni Kui. Foto Lindomar Padilha

    A foto representa bem o sentido do Acampamento Terra Livre no Acre: Toda a ternura e esperança de um outro futuro possível que nascerá do enfrentamento aos projetos de morte para os povos originários. O Projeto de Lei 490 representa toda sorte de ataque aos direitos dos povos; a bandeira do Acre representa e diz claramente do compromisso do atual governo do estado com esses projetos de morte, afinal, o atual governo é um ruralista apoiador incondicional de Bolsonaro;  O cocar nos lembra que os governos passados e o atual, nunca se preocuparam efetivamente com os povos e que  avanço, se houve, foi por causa e consequencia da luta; A criança representa a certeza de um amanhã mais sorridente e um futuro onde a liberdade reinará.
    A verdadeira causa indígena não tem o glamour que parte da mídia gosta de apresentar nesses tempos de "homenagens" aos povos indígenas. A mídia e os políticos aproveitam esses momentos para  se mostrarem defensores desses povos e, para isso, se fazem cercar de representantes mais preocupados com sua imagem própria e mesmo com as vantagens pessoais. Mas, a verdadeira luta se dá no chão do acampamento e no solo sagrado das aldeias, no mais, não passam de belas imagens e discursos para agradar.
    Em outro momento escreverei mais sobre o acampamento. Por enquanto é preciso silenciar para ouvirmos o que essas guerreiras e guerreiros nos tem a dizer. Silenciemos nossas mentes.

Eis o documento final:


ACAMPAMENTO TERRA LIVRE ACRE 2022

DOCUMENTO FINAL


Nós, lideranças e representantes de 14 “povos indígenas” do estado do Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia, reunidos no Acampamento Terra Livre Acre 2022, preocupados com os retrocessos e ataques aos nossos direitos, nos sentindo ameaçados com os ataques sistemáticos do Congresso Nacional e do Governo Federal por meio de projetos de lei, decretos e outras medidas administrativas, nos reunimos em plenária para somar e apoiar a mobilização indígena nacional. Acampamos entre os dias 11 e 14 de abril de 2022 na frente do Palácio do Governo e da Assembleia Legislativa em Rio Branco, onde discutimos:

• Direitos dos Povos Originários: Constituição Federal e Tratados Internacionais, a Convenção 169 da OIT (Decreto 5051 de 19 de abril de 2004), a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas; 

• Educação Escolar Indígena: conquistas e retrocessos;

• Saúde indígena: conquistas e retrocessos no atendimento à saúde e no controle social indígena;

• Fortalecimento da soberania alimentar, e do cuidado e preservação dos territórios;

• Recursos e financiamentos para fortalecer inciativas de valorização da cultura;

• As tentativas de retrocessos que ameaçam os direitos indígenas e ambientais garantidos na Constituição Federal de 1988

- PL 191/2020, para liberar a mineração, o cultivo de transgênicos e empreendimentos nas Terras Indígenas sem respeito ao usufruto exclusivo e ao direito de consulta livre, prévia e informada.

- PL 490/2007, que pretende alterar as regras para a demarcação das terras indígenas e liberar a exploração predatória dos nossos territórios.

- PL 6024/2019, proposto pela deputada federal do Acre Mara Rocha, quer reduzir a Reserva Extrativista Chico Mendes e acabar com o Parque Nacional da Serra do Divisor para a expansão do agronegócio, da agropecuária e da exploração mineral, o que irá impactar diretamente as nossas vidas e comprometer a vida das futuras gerações.

- Julgamento do Recurso Extraordinário de Repercussão Geral - Tese do Marco Temporal

- PL 3729/2004 (PL 2159/2021), que pretende alterar as regras do licenciamento ambiental e favorecer a exploração predatória das riquezas dos nossos territórios.

- PDL 177/2021, proposto para autorizar o Brasil a denunciar a Convenção 169 da OIT, acabando com a proteção e obrigação de consulta, e abrindo as portas dos nossos territórios para empreendimentos e multinacionais.

O Estado brasileiro não está dialogando com os Povos Indígenas, não há efetivação das políticas públicas para as comunidades indígenas nas áreas de educação, saúde, segurança pública e proteção territorial. Isso acontece também no estado do Acre, com a falta de instâncias de diálogo e participação direta e efetiva dos Povos Indígenas.

Exigimos que as instituições cumpram suas obrigações e garantam a participação indígena na construção, execução e efetivação das ações e políticas dirigidas aos Povos Indígenas.

Exigimos a continuidade da demarcação das Terras Indígenas ainda não demarcadas e a proteção das lideranças ameaçadas por invasores dos nossos territórios.

Exigimos que o Estado cumpra sua obrigação de proteger, fiscalizar e garantir a integridade das Terras Indígenas demarcadas e das terras que estão em processo de demarcação e reconhecimento. E exigimos a proteção das lideranças, defensoras e defensores ameaçados.

Exigimos que sejam reconhecidos os direitos e a existência das comunidades tradicionais e indígenas que vivem em unidades de conservação, como o caso dos Sharanawa no Parque Chandless e dos Nawa e Nukini no Parque Nacional da Serra do Divisor.

Exigimos a proteção dos territórios e dos direitos dos Povos Indígenas em Isolamento Voluntário, que não querem contato.

Reivindicamos ações do governo brasileiro para a defesa das fronteiras e proteção da ameaça das estradas que estão sendo construídas no país vizinho e que afetará gravemente as terras indígenas, a floresta e o meio ambiente no Alto Juruá. Exigimos ações contra a estrada que está sendo construída para ligar o Rio Ucayali e o Rio Juruá (Nueva Itália – Puerto Breu) na fronteira, e a suspensão da proposta de construção da estrada entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, que está sendo promovida sem consulta, com risco de dano ao meio ambiente, grilagem, poluição dos rios, invasão dos nossos territórios e dos isolados.

Encaminhamos esse documento aos órgãos competentes para as providências cabíveis no cumprimento de sua missão institucional. Aguardaremos a manifestação e a resposta às nossas demandas.

Solicitamos que os órgãos de defesa dos direitos indígenas como o Ministério Público Federal acompanhem, fiscalizem e garantam a transparência das políticas públicas e o respeito aos nossos direitos.

O presente documento está em acordo com o preconizado na Constituição Federal (art. 232), com os princípios da autonomia e autodeterminação, do direito de representarmos a nós mesmos e de ingressarmos em juízo em defesa dos nossos direitos e interesses.

Unir para Lutar! E Unificar para Vencer!


terça-feira, 12 de abril de 2022

LIDERANÇAS DE 16 POVOS DO ACRE INICIAM A MOBILIZAÇÃO ACAMPAMENTO TERRA LIVRE 2022

 

Foto: Lindomar Padilha - Cimi

Cerca de 170 representantes de 16 povos do Acre iniciaram neste dia 11 de abril o ATL/AC (Acampamento Terra Livre no Acre). A mobilização começou com uma marcha em direção à diversos órgãos e instituições. A primeira parada foi na Coordenação regional da Funai (Coordenação Alto Purus), coordenada por José Ciro Monteiro Junior, que é fuzileiro naval. Esta primeira parada foi também a mais sintomática e reveladora de quão grave está a situação dos povos indígenas. O coordenador não recebeu as lideranças e se recusou até mesmo a dar uma explicação para tal recusa. Mas, o fato ainda mais grave foi que, após a fala do Sr. Francisco Saldanha, cacique do povo Jaminawa da Terra Indígena São Paolino, e como o cacique se dirigia a um banheiro externo à Funai,  o coordenador percebeu sua passagem e dirigiu-se a ele nos seguintes termos: “É Francisco você fala mal da Funai né? Portanto, não vou receber mais nenhum documento vindo de vocês. Se quiser procure o Ministério Público”. Segundo depoimento do cacique, a intenção era clara: no mínimo intimidar.

Diante da postura intransigente e desrespeitosa, para dizer o mínimo, todas as lideranças que tomaram a palavra repudiaram o comportamento do coordenador afirmando que o mesmo não pode trabalhar com os povos indígenas e se tornou unânime o pedido de demissão. Segundo as lideranças, o coordenador terá uma representação formal contra ele e um pedido urgente de exoneração. Aliás, aproveitaram a parada no MPF e OAB/AC para denunciá-lo e pedir que providências sejam tomadas.

Na Polícia Federal foram recebidos em comissão e ouviu da PF um compromisso de acolher todas as demandas que lhe forem apresentadas. No MPF o próprio procurador saiu de seu gabinete e foi ao encontro das lideranças em um ato muito bonito. Também foi recebido com muito afeto e sob gritos e falas de agradecimento pela atuação na defesa dos direitos dos povos e no cumprimento de suas atribuições constitucionais.

Após todo o dia de caminhada e visita aos órgãos, todos montaram acampamento em frente ao Palácio do governo do estado e em frente a Assembleia Legislativa. Até o dia 14 permanecerão acampados e cumprindo uma extensa pauta marcada principalmente pelo sucateamento da Funai, ICMBio e Ibama, propostas e projetos que atingem diretamente os povos seus direitos e territórios, que segundo dados do Cimi são 33 propostas, reunindo mais de 100 projetos, ameaçam direitos indígenas. Outro ponto a ser debatido trata das novas formas de violações de direitos alimentadas pela chamada economia verde ou mercantilização e financeirização da natureza por meio de projetos do tipo REDD+ e REM (Programa para Pioneiros em REDD). Modelo que o Acre tem exportado como se estivesse dando certo, mas, na verdade é parte da grande farsa das falsas soluções. Neste contexto, foi feito também hoje, dia 12, pela manhã o lançamento da revista GOLPE VERDE: Falsas Soluções para o Desastre Climático (https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2022/02/golpe-verde-cimi-ao.pdf).

O acampamento segue com muita animação e com a promessa de grandes debates. Ao final, serão apresentados encaminhamentos e um documento final que expressará todas as demandas apontando para um outro futuro possível.


Criança Huni Kui em frente à Funai
Foto Lindomar Padilha - Cimi

quinta-feira, 31 de março de 2022

Golpe Verde: falsas soluções para o desastre climático

         LIVE – Lançamento de nova publicação: 

Golpe Verde: falsas soluções para o desastre climático


DATA: 12 DE ABRIL 2022

HORARIO: 08:00HS (RIO BRANCO), 10:00HS (BRASILIA)

DURAÇÃO: 1,5 HORA


 

UM BATE-PAPO SOBRE ESTA PUBLICAÇÃO COM:

DERCY TELES DE CARVALHO, camponesa, educadora popular, sindicalista, militante e ativista política brasileira.

MANOEL EDIVALDO SANTOS MATOS, agricultor e ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (PA).

LETÍCIA YAWANAWÁ , conselheira da organização das mulheres indígenas SITOAKORE - Organização das Mulheres Indígenas do Acre, Sul da Amazônia e Noroeste de Rondônia.

MICHAEL F. SCHMIDLEHNER , professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre (IFAC).

MODERAÇÃO: CIMI-Amazônia Occidental e Amigos da Terra Brasil

 

Para participar do evento, por favor registra-se aqui:

https://us02web.zoom.us/meeting/register/tZUqcuqsqD0vHNOzWxK4vU8fLkaOiwxMyJnA

 

SOBRE A PUBLICAÇÃO:

 

A Publicação organizada pelo Cimi Regional Amazônia Ocidental reúne artigos que analisam criticamente o processo da implementação da chamada “economia verde” no estado do Acre. A publicação faz parte de uma série histórica composta por outros dois materiais: o dossiê O Acre que os mercadores da natureza escondem, lançado na Cúpula dos Povos (RJ), em 2012, e a revista 30 anos pós-assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre, publicada em 2018. Aliadas a uma série de outras ações e produções, estas publicações resultaram em um processo de articulação entre mulheres e homens indígenas, extrativistas, ribeirinhos, militantes da academia e organizações sociais dentro e fora do Acre.

CLIQUE AQUI PARA BAIXAR A PUBLICAÇÃO

Com o programa REDD+ no Acre completando 10 anos, e frente ao caos generalizado que no mundo – e especialmente no Brasil – vivenciamos hoje, em 2021, nos vimos impelidos a escrever mais este dossiê. Apresentamos, em oito textos, um panorama desse processo histórico no Brasil. Transitando pelo vasto horizonte das violações e desmandos do capitalismo verde, começamos 33 anos atrás, com o assassinato de Chico Mendes, e seguimos analisando os impactos do REDD em comunidades indígenas e extrativistas no Acre, e para além do Acre. Desnudamos, também, a mais nova roupagem do REDD: as Soluções baseadas na Natureza (SbN), promovidas em conferências do clima da ONU.

 

Entre artigos acadêmicos, depoimentos de militantes de base, entrevistas e cartas públicas, refletimos sobre os acontecimentos e as políticas às quais somos submetidos, e assim nos preparamos melhor para o porvir. Esperamos, com este material, dar continuidade no debate público sobre a resistência aos projetos de economia verde que tentam enganar a população brasileira e o mundo, fingindo plantar árvores ou mantê-las em pé – enquanto, na realidade, passam o trator e a boiada.


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

DA SEBRAELIZAÇÃO À FARSA DAS FALSAS SOLUÇÕES

Este artigo encontra-se publicado na revista Golpe Verde: Falsas soluções para o desastre climático. A revista é uma coletânea de artigos que buscam refletir e analisar os 10 anos de REDD no estado do Acre e seus tentáculos que se espalham por outros estados como Mato Grosso, Rondônia e Maranhão. 

Leiam a versão da revista  em português aqui

Na relação com os povos indígenas é de suma importância para o desenvolvimentismo, ou capitalismo se preferir, adequar o evolucionismo biológico às questões socioculturais para que estes povos deixem de ser o que são para se “transformarem”, por meio da assimilação e da integração, em não indígenas (...).

Lindomar Dias Padilha[1]


A Sebraelização[2] é um termo quase conceitual que tenho adotado para explicar um dos processos metodológicos utilizados para atrair os povos indígenas, ou pelo menos algumas pessoas tomadas como se fossem lideranças, ao processo de mercantilização e financeirização da natureza e da cultura destes povos. Escrevi um texto intitulado “A Sebraelização do Indigenismo na Amazônia Ocidental como estratégia para a mercantilização e a financeirização[3]" onde proponho uma reflexão sobre o processo e, mais ainda, sobre os mecanismos utilizados e que escondem as verdadeiras intenções dos mercadores da natureza.

Pois bem, a intenção com este novo texto é dar sequência àquelas observações, porém, centrando agora nas falsas soluções apresentadas aos povos e comunidades para que estes sejam convencidos de que estão tendo seus usos, costumes e tradições respeitados e ao mesmo tempo seguem colaborando para que se evitem ou pelo menos sejam amenizados os efeitos negativos decorrentes da destruição da natureza, inclusive “recebendo” por estes serviços prestados. A tarefa não é fácil, mas é um desafio que se coloca para todos nós que imaginamos uma natureza e povos que dela dependem e com ela convivem absolutamente interligados, interconectados e interdependentes. O ponto chave para desenvolver este tipo de raciocínio é a interdependência, o que nos impede de falarmos em “pagamento”. Entretanto, não é de hoje que se tenta separar os povos indígenas da natureza como ocorre com os povos de cultura ocidentalizada. A intenção desta separação não é outra que não a implantação do capitalismo naquilo que ele tem de pior: comercializar tudo, a natureza, enquanto matéria prima e as pessoas, enquanto consumidoras e mão de obra.

Um elemento de compreensão e interpretação da realidade fundamental para introdução do sistema ocidental de pensamento é o tempo. Por isso, já no texto anterior (PADILHA. 2018) salientava-se o equívoco da divisão do tempo nos termos propostos por Terri Aquino e Marcelo Iglésias, que assim dividia os tempos indígenas:

I) o tempo das malocas, 2) o tempo das correrias, 3) o tempo do cativeiro, 4) o tempo dos direitos e 5) o tempo da história presente (CPI/AC, 1996, p. 28)

O que subjaz a essa forma de dividir o tempo, é a ideia de que os povos indígenas estão em processo evolutivo, nos moldes do que o desenvolvimentismo considera “evolução”. Com este questionamento que faço, não proponho retroceder à tese do fixismo, mas tão somente considerar os processos em si mesmos, sem que sejam necessariamente evolutivos, rumo a um suposto desenvolvimento linearmente traçado e definido pelas sociedades ditas evoluídas. Os povos originários, sim, possuem todos os elementos necessários a uma organização social, cultural e produtiva autônoma. Cada povo tem seu jeito próprio e precisa ser respeitado nisso. Cada povo sente as transformações processuais de uma forma diferente e por isso constrói caminhos próprios, vivendo, construindo e narrando sua própria história.

Na relação com os povos indígenas é de suma importância para o desenvolvimentismo, ou capitalismo se preferir, adequar o evolucionismo biológico às questões socioculturais para que estes povos deixem de ser o que são para se “transformarem”, por meio da assimilação e da integração, em não indígenas e em apenas nacionais, brasileiros. Há ainda um elemento muito importante a ser considerado nessa verdadeira mutação: a relação de produção e divisão do trabalho. Quando interligados e interdependentes, natureza e povos indígenas desempenham funções, tanto no processo quanto nas relações mesmas.

Assim como o tempo dos povos fora artificialmente alterado para que se adequasse ao projeto desenvolvimentista, a natureza e os povos devem deixar de desempenhar funções para prestarem “serviços” um ao outro. A transformação das funções em serviços é um passo necessário e fundamental para que se estabeleça uma relação comercial, precificada. Se há serviços prestados, há que se ter “pagamentos” pelos mesmos. Roberto Sanchaes Resende ao analisar O “Agroextrativismo e pagamentos por serviços socioambientais” a partir das Reservas Extrativistas da Terra do Meio, no Pará, observa que:

As propostas para a criação de sistemas de pagamentos por serviços ambientais têm se proliferado nas últimas décadas, estando diretamente relacionadas com as mudanças observadas em escala planetária em processos como a regulação do clima, dos ciclos hidrológicos e a renovação de ecossistemas. Essas mudanças climáticas e ambientais têm afetado aquilo que a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) definiu como as contribuições da natureza para as pessoas, que são a base material para a reprodução física, econômica e cultural dos seres humanos. (RESENDE, 2020, p. 01).

Observemos que se estabelece não só uma separação entre ser humano e natureza, como, por meio de “serviços”, submete-se a natureza ao ser humano. A natureza mesma presta serviços aos seres humanos e, por isso, passa a figurar como se fora, a natureza, contratada pelos humanos e a estes devesse prestar serviços. Vejam o que diz o Ministério do Meio Ambiente quando para justificar a passagem das funções ambientais a serviços:

As interações entre os elementos de um ecossistema são chamadas de funções ecossistêmicas. Alguns exemplos destas funções são a transferência de energia, a ciclagem de nutrientes, a regulação de gases, a regulação climática e do ciclo da água. Essas funções geram serviços ecossistêmicos quando os processos naturais subjacentes a suas interações desencadeiam uma série de benefícios direta ou indiretamente apropriáveis pelo ser humano. (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2020) (grifo meu).

            A regulação de gases, a regulação climática, quando “apropriáveis” pelo ser humano tornam-se serviços. É como se a natureza e os povos indígenas, ligados à ela de forma indissociável, deixasse o tempo da escravidão para entrar no tempo do trabalho assalariado, ou serviços pagos. Há uma questão de fundo intransponível que os mercadores da natureza omitem, entre outras, clara: quem recebe em nome da natureza, já que esta não possui conta bancária e nem passou procuração?

            Não há que sermos simplistas, mas também não podemos aceitar que um jogo de palavras nos confunda. É. Pois, justamente no jogo de palavras que reside a farsa que denunciamos há vários anos. Jogos de palavras que se adequam ao interesse do mercador. REDD, REDD+, REM, Pagamentos por Serviços Ambientais, Soluções baseadas na natureza... Tudo, porém, vinculado ao que chamam de “Serviços” Ecossistêmicos e Serviços Ambientais. Assim foi que o Estado do Acre, em outubro de 2010 atribui a si mesmo a capacidade jurisdicional de legislar e, a partir disso, negociar diretamente tais serviços. Está criado o Sistema de Incentivo a Serviços Ambientais no estado do Acre.

Cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais - SISA, o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais - ISA Carbono e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos do Estado do Acre e dá outras providências. (Acre, Lei 2.308).

            Com a criação do sistema esperava-se uma adesão quase que automática. Porém, havia uma imensa barreira a ser superada: Os territórios indígenas como local de maior biodiversidade e consequentemente lugar de maiores Serviços Ecossistêmicos onde se constata que a lógica indígena não obedece e muitas vezes não se enquadra na lógica mercadológica do capital e isso exigiu um esforço a mais para fazer com que os povos indígenas fossem considerados, enquanto parte do processo de geração de capital e desses serviços.  Tanto as alterações propostas na lógica temporal, expressa nos tempos históricos, quanto as alterações legais, expressas na criação e alteração de leis, finalmente se encontram no verdadeiro objetivo: adequar os povos ou pelo menos lideranças às necessidades do desenvolvimentismo e finalmente disponibilizar ao mercado externo a estes povos, seus territórios e o que neles existe.

Agora não chegam as caravelas com portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e outros do norte desenvolvido. Chegam empresas transnacionais do norte, trazendo a tiracolo os governos de seus países, com propostas "ecologicamente corretas" e carregando em seu bojo a subordinação ainda maior dos povos do sul. A terra, lastro do capital natural, está sendo comercializada em bolsas de valores. Tal sanha também se estende aos outros elementos da natureza, como o ar, a biodiversidade, a cultura, o carbono - patrimônios da humanidade. (CIMI, 2012). (grifo meu).

            O texto acima é parte de uma nota do Conselho Indigenista Missionário intitulada: “A Sanha do Capitalismo Verde: REDD e as artimanhas contra os povos indígenas” e reflete com clareza que os interesses presentes nesta farsa das falsas soluções são justamente o de mercantilizar e financeirizar a natureza, incluindo ai o ar e as culturas dos povos. Não é com outra intenção que se fez a divisão dos tempos a gosto do freguês, criou-se a lei 2.308 no Acre e deu-se sequência ao avanço sobre os territórios com o acordo entre Acre, no Brasil, Califórnia, nos Estados Unidos e Chiapas, no México[4] e ainda o acordo do chamado REM (REDD Early Movers)[5], chamado de REDD para pioneiros junto ao Banco de Desenvolvimento da Alemanha, KFW[6] meio pelo qual os projetos de REDD finalmente chegaram aos territórios dos povos originários, sobre os auspícios do governo do Acre por meio do REDD jurisdicional.

            Sim, as novas caravelas ancoraram no Acre e agora já não lhes basta saquear madeiras, ouro ou outras drogas do sertão[7], querem o ar, as mentes, corações e as culturas dos povos. Neste processo merece destaque o acesso às culturas por meio do suposto engajamento também das mulheres indígenas. Mais recentemente o governo do Acre apresentou projeto para práticas empreendedoras voltadas para mulheres indígenas à Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) Damares Alves[8]. A argumentação de que pessoas, e não comunidades e povos, sejam empreendedores, nascem no governo do Acre em tempos idos, mas, caem como uma luva para os propósitos dos atuais governos federal e estadual: integrar os povos originários e entregar seus territórios à iniciativa privada completando o chamado “golpe verde” baseado na farsa das falsas soluções. O avanço da mercantilização sobre as culturas e espiritualidades indígenas tem sido sistematicamente festejado pelo governo do Estado, como na manifestação da Secretária de Turismo e Lazer do governo de Gladson Cameli, PP, Rachel Moreira.

Para se ter uma ideia, em 2013 tínhamos apenas três festivais  indígenas sendo realizados em todo o Acre. No ano passado, saltamos para 27 e este ano estão previstos 43, com a participação de turistas nacionais e internacionais. (NOTÍCIAS DO ACRE, 2018).

            Diversos problemas afloram quando analisamos o crescimento dos tais festivais culturais, sendo um dos mais graves o acesso de turistas nacionais e principalmente estrangeiros às culturas, espiritualidades e das chamadas “medicinas tradicionais”, possibilitando e viabilizando a comercialização desses saberes e até mesmo o tráfico ilegal de substâncias e plantas. A valorização das culturas deve sim ser promovida, mas deve antes, atender os interesses da própria comunidade. Revigorar a cultura é ato interno de cada povo e a este deve servir. Quando a cultura e espiritualidade passam a ser objetos a serem comercializados, podem vir a ser considerados apenas folclores, se afastando cada vez mais da sacralidade, isso se chama “profanar” a natureza e o sagrado que ela representa para os povos originários. Não são os povos que se auto violam, mas os mercadores que lucram violentando-os como tem feito historicamente. Ao final e ao cabo, espera-se transformar o indígena em apenas uma pessoa, desvinculada de seu povo e sua história, prometendo lhe riquezas que nunca virão e , se vier algo, nunca será suficiente.

            É óbvio que os povos indígenas têm o direito de se autodeterminarem e, para tanto, devem ter total liberdade de escolha daquilo que julgarem bom ou não para eles. Porém, o que questionamos aqui não é este direito, mas temos que denunciar o assédio sobre esses povos e comunidades. São diversas as formas de assédio sofridas por esses povos. São assediados por igrejas, partidos políticos, e uns cem números de ideologias financiadas pelo capital sedento por seguir espoliando-os, sejam fisicamente os territórios, seja mentalmente com propostas supostamente boas, porém, falsas e cujo interesse é apenas o de converter os povos em novos consumidores dos desejos do capitalismo desenvolvimentista.

Talvez a maior contribuição dos povos indígenas para a humanidade em geral seja justamente não se inserir cegamente no mercado e isto está gravemente ameaçado com o modelo defendido pelo governo do Acre, expresso claramente na inconstitucional lei 2.308/2010. (PADILHA, 2012, p. 30).

            Há vinte anos já tínhamos a certeza de que o ataque aos territórios, povos e culturas fazia parte de um processo macabro desencadeado pelos donos do mundo e mercadores da natureza que enxergavam na natureza e nos territórios fonte primitiva para seguir alimentando seus lucros inescrupulosos.  Há dez anos, na Rio + 20, com o Dossiê Acre, decidimos por denunciar ao mundo a farsa, as falsas soluções e o saque. Hoje seguimos pesquisando, denunciando e lutando contra os projetos de exício, daqueles que se deleitam e se alimentam com a destruição. Tais projetos se apresentam como “solução” quando são exatamente o oposto. Essa trajetória de se alimentar com a destruição, segue com o capitalismo e persegue os povos originários.

Todos os estudos indicam a presença de petróleo nesta região e nós estamos muito otimistas. Isso é um novo tempo na economia do Acre, muitos empregos podem ser gerados. Vejam que apenas na fase inicial dos estudos a empresa de sísmica instalada em Cruzeiro do Sul tinha 700 trabalhadores contratados. E o que precisa ser destacado é que o retorno dos investimentos pode começar em seis meses após a perfuração. (...) Há um enorme potencial também para os pequenos e médios empresários participarem da atividade econômica do gás e do petróleo e em nada isso compromete o nosso respeito ao meio ambiente. (NOTICIAS DO ACRE, 2013). (grifo meu).

            A fala acima é do então governador do Acre Tião Viana[9], PT. É importante notarmos que, como justificativa para tamanho entusiasmo com a exploração de petróleo, apresenta-se como remissão econômica para o estado do Acre e, cinicamente diz que as atividades não comprometerão “o nosso respeito ao meio ambiente”. O cinismo é um dos lados de uma mesma moeda: os mesmos que se declaram defensores dos povos indígenas e do meio ambiente defendem igualmente a manutenção do modelo colonialista, desenvolvimentista e economicista onde o lucro é o “deus”, o sagrado.

 Portanto, de 1500 até hoje, o modelo baseado no saque dos territórios, segue rigorosamente o mesmo. A verdadeira alternativa só pode ser baseada na decoloniedade. Temos que ter a coragem de propor uma ruptura com o sistema e os povos indígenas são exatamente quem tem proposto historicamente esta ruptura. Por isso mesmo, na visão dos proponentes das falsas soluções, estes povos são os que devem morrer enquanto povos autônomos devendo aceitar a submissão ao capital desenvolvimentista. Os ataques aos povos e seus territórios nunca cessa, mas obedece a alguns ciclos e de tempos em tempos se manifestam de maneira mais agressiva em nome de um suposto progresso. Assim foi com as BRs 364 e 317, com a exploração de petróleo e gás de xisto, com a mineração na região do Juruá e agora, mais recentemente com o retorno do debate sobre a estrada ligando Cruzeiro do Sul a Pucallpa, no Peru. A estrada se apresenta como desenvolvimento, mas é no fundo mais uma forma de se adentrar nos territórios e prosseguir o saque.

É bom lembrarmos que estes não são projetos isolados, estão em profunda articulação entre si e com o capital internacional por meio de arranjos como Calha Norte, Avança Brasil, IRRSA (Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul), PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)... e por ai vai. O desenvolvimentismo acena aos povos com promessas falsas de futuro próspero e ao mesmo tempo acena também de forma falsa, com a promessa de um ambiente saudável. Chamam a isso, entre outros nomes, de desenvolvimento sustentável. Neste arranjo falso e de farsas, indígenas, indigenistas e ambientalistas são assediados. O pior é que muitos aceitam o assédio e tentam seguir sobrevivendo com o dinheiro sujo que o assediador lhes oferece comprando-lhes assim o silêncio[10].

As denúncias que estão sendo apresentadas não são meras expressões da vontade de alguns, mas resultado de investigações, pesquisas e escutas das comunidades. Assim foi que pudemos falar de Economia Verde, Povos das Florestas e Territórios: violações de direitos no estado do Acre DHESCA (2015) que realizou uma investigação sobre as violações de direitos decorrentes dessas falsas soluções assinalando que essas falsas soluções servem de “cortina de fumaça” para que o capital avance sobre os territórios.

            Bem medido e bem pesado, a solução está e só virá dos povos originários e comunidades tradicionais. Nas caravelas, antigas e atuais, não cabem as soluções porque elas existem justamente para nos convencer de que não há solução sem eles (e o que eles trazem), ou seja, o capitalismo mesmo. Eu diria mais: não basta descolonializar questionando o capitalismo, temos que destruir o desenvolvimentismo, seja de direita ou de esquerda. Falamos a partir da nossa militância, da experiência dos e com os povos, mas também de pesquisadoras e pesquisadores comprometidos com a verdade e com a vida. Temos que seguir aprendendo com os povos da gratuidade!

Referências:

BRSIL, Ministério do Meio Ambiente. Funções dos Ecossistemas. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/servicosambientais/ecossistemas-1/conservacao-1/servicos-ecossistemicos/funcoes-dos-ecossistemas. Acessado em 27/09/2021.

CIMI, Dossiê Acre: O Acre que os mercadores da natureza escondem. 2012.

Comissão Pró-índio do Acre, História Indígena CPI/AC, 1996. Disponível em: https://cpiacre.org.br/publicacao-acervo/historia-indigena/

DHESCA, Economia Verde, Povos das Florestas e Territórios: Violações de Direitos no Estado do Acre, Rio Branco, 2015. Disponível em: https://www.plataformadh.org.br/wp-content/uploads/2015/08/economia_verde_relatorio.pdf

NOTÍCIAS DO ACRE, Festivais indígenas celebram cultura e espiritualidade dos povos do Acre. Publicado em 28/07/2018. Disponível em: https://agencia.ac.gov.br/festivais-indigenas-celebram-cultura-e-espiritualidade-dos-povos-do-acre/

_______, Exploração de petróleo no Acre é viável, defende especialista. Publicado em 13/09/2013. Disponível em: https://agencia.ac.gov.br/exploracao-de-petroleo-no-acre-e-viavel-defende-especialista/

Rezende, Roberto Sanches. «Agroextrativismo e pagamentos por serviços socioambientais: reflexões a partir das Reservas Extrativistas da Terra do Meio (PA)», Anuário Antropológico [Online], v.45 n.1 | 2020, posto online no dia 27 janeiro 2020, consultado 01 outubro 2021. URL: http://journals.openedition.org/aa/4956; DOI: https://doi.org/10.4000/aa.4956

 



[1] Mestre em direito, especialista em Desenvolvimento Social no Campo: Povos Indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, filósofo indigenista.

[2] O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) é uma entidade privada sem fins lucrativos. É um agente de capacitação e de promoção do desenvolvimento, criado para dar apoio aos pequenos negócios de todo o país. Desde 1972, trabalha para estimular o empreendedorismo e possibilitar a competitividade (...). Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/canais_adicionais/o_que_fazemos

[3] Revista Trinta Anos Pós Assassinato de Chico Mendes e Destruição Oculta de Florestas e Vidas No Acre, Rio Branco, Dez. 2018 PDF. Acesse em: https://pt.scribd.com/document/404309042/Trinta-anos-pos-assassinato-de-Chico-Mendes-e-destruicao-oculta-de-florestas-e-vidas-no-Acre-Rio-Branco-dez-2018-pdf

[4] Em 17/11/2010, os Governadores Binho Marques, do Acre e Arnold Schwarzenegger, da Califórnia, assinaram um memorando que definiria as regras para a comercialização de crédito de carbono entre Acre, Califórnia (EUA) e Chiapas (México). Disponivel em: https://agencia.ac.gov.br/acre-e-califrnia-querem-falar-a-mesma-lngua-quando-o-assunto-crdito-de-carbono/

[5] Segundo o Instituto de Mudanças Climáticas do Acre, IMC, A finalidade do Programa REM é apoiar com “financiamento ponte” implementadores de programas jurisdicionais de REDD+ para fortalecer sua autonomia e sustentabilidade. Nomeado mundialmente como – REDD +, de acordo com as decisões sob o marco da Organização das Nações Unidas Mudança Climática (UNFCCC). O fomento é realizado por meio de remuneração baseada nos resultados adequadamente documentados e verificados de redução de emissões por desmatamento. A finalidade, portanto, do Programa REM é apoiar com “financiamento ponte” implementadores de programas nacionais e subnacionais de REDD+. Disponível em: http://imc.ac.gov.br/programa-para-pioneiros-em-redd-rem/

[6] Fundado em 1948 como uma instituição pública, o KfW pertence hoje à República Federal da Alemanha (80%) e aos estados federados (20%). O  KfW é um dos maiores bancos alemães e capta os recursos para suas atividades de fomento quase exclusivamente nos mercados de capitais internacionais.

[7] As chamadas drogas do sertão abarcavam uma série de produtos como o guaraná, o anil, a salsa, o urucum, a noz de pixurim, pau-cravo, gergelim, cacau, baunilha e castanha-do-pará. Todas essas especiarias tinham alto valor de revenda no Velho Continente e, com isso, logo o contrabando apareceu nessas áreas. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/drogas-sertao.htm

[8] O projeto foi elaborado em parceria com o Gabinete da Primeira Dama, da Companhia de Desenvolvimento de Serviços Ambientais (CDSA), Secretaria de Estado de Assistência Social, dos Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres (Seasdham) e prevê a realização de oficinas, capacitações para práticas empreendedoras como a criação de uma grife de roupas indígenas. A proposta final é lançar os produtos para venda em loja virtual. Disponível em: http://imc.ac.gov.br/acre-apresenta-projeto-para-praticas-empreendedoras-voltada-para-mulheres-indigenas-a-ministra-damares-alves/

[9] Sobre este embate, sugiro a leitura de uma matéria de 2008. Disponível em: https://ac24horas.com/2013/11/29/coordenador-do-cimi-chama-sebastiao-viana-de-mentiroso/amp/

[10] Os povos indígenas e comunidades tradicionais , reunidos em Xapuri, estado do Acre denunciaram as diversas agressões contra aqueles que ousavam questionar a farsa das falsas soluções. Disponível em:  https://www.ecodebate.com.br/2017/07/28/denuncia-no-acre-liderancas-indigenas-e-extrativistas-sao-ameacadas-por-se-posicionarem-contra-politicas-de-economia-verde/