Chico
Mendes vive na luta anticapitalista e antifascista! (que é uma luta só)[i]
Michael F. Schmidlehner[ii]
Acesse a revista Trinta
anos pós assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas
no Acre Clicando aqui e confira este e outros artigos)
O que
queremos realmente dizer, quando afirmamos que “Chico Mendes vive”? A frase
expressa a ideia de que as pessoas que tiraram a vida dele não conseguiram
destruir seus ideais, e que estes ideais continuam sendo defendidos hoje. Mas
eis a pergunta: quais seriam estes ideais e quem poderia ser considerado
defensor do legado de Chico Mendes? Um texto do jornal Empate de 2003 (cit,in
MORAIS 2012, p.26), mostra o quanto esta questão é controversa e polemica:
Os princípios que projetaram as lutas dos
trabalhadores rurais acreanos e lançaram seu representante maior no cenário
internacional foram abandonados em troca de um enganoso projeto de ‘desenvolvimento
estadual’ com ‘sustentabilidade’. Os inimigos de Chico Mendes o eliminaram
fisicamente. Os que se diziam seus amigos e aliados que, hoje, vivem e acumulam
cargos e benefícios à custa de sua memória, tratam de eliminar seus sonhos,
seus projetos, sua herança, seus princípios de não mercantilizar a floresta.
Analisando
a apropriação e ressignificação dos ‘sonhos e ideais’ de Chico Mendes pelo Governo
da Frente Popular do Acre – FPA, Maria de Jesus Morais (2012) mostra como este
governo criou um discurso da identidade acreana ao associar a luta dos
seringueiros com seu modelo de “desenvolvimento sustentável”. Aspectos mais
radicais ou polêmicos do pensamento de Chico Mendes foram sistematicamente
omitidos nesta narrativa governamental. Criava-se assim uma espécie de “Chico
Mendes light”, que servia perfeitamente como produto promocional para inserir
as florestas do Acre no emergente mercado global das “soluções” ambientais e
climáticas – manejo madeireiro “sustentável”, carbono florestal, serviços
ambientais – e atrair financiamentos de bancos e agências de desenvolvimento
internacionais.
Voltando
à pergunta inicial, que queremos dizer com “Chico Mendes vive” devemos ter em
mente duas coisas. Primeiro: ao proclamar que Chico Mendes vive, situamo-nos
inevitavelmente na esfera da interpretação. O homem não está mais fisicamente
aqui para nos contradizer ou dar razão. Ninguém pode ser único ou “legitimo” articulador
de seu legado na atualidade. O grau de legitimidade da nossa interpretação vai
depender de quanto ela é referenciada nas ações e palavras da pessoa histórica
de Chico Mendes. Segundo: as ações e as palavras de Chico Mendes têm que ser interpretadas
como sua reação – a aplicação de seus ideais – à uma determinada situação histórica
e política. Em outro momento histórico estes mesmos ideais tinham e terão que
se expressar de outra forma. Enquanto Chico Mendes estava vivo, sua luta era
contra a espoliação da Amazônia pelos fazendeiros. Diante a mercantilização da floresta
em seu nome, os ideais de Chico Mendes foram – em nossa interpretação – defendidos
pelos dissidentes deste projeto (como por exemplo o autor do artigo do Jornal
Empate citado acima). Em reação à nova conjuntura política do Brasil a partir
de 2019, a luta em nome de Chico Mendes terá que se reformular novamente.
Entendemos
que Chico Mendes tinha forte espirito comunitário e não queria ser “advogado”
dos povos da floresta no sentido de falar por eles. O apelo dele hoje
provavelmente seria para não nos fixarmos demais em sua pessoa ou idolatrá-lo.
Honrar o legado de Chico Mendes significa também usar nossa própria capacidade
crítica e criatividade para levar a luta adiante. Neste sentido propomos, para
fins deste ensaio, a seguinte resposta: “Chico Mendes vive” quer dizer que a
luta da qual ele se tornou símbolo se renova e aprofunda na medida em que a
realidade sociopolítica a qual ela precisa reagir muda.
Legado anticapitalista
Para hoje
fazer referência aos ideais de Chico Mendes é preciso resgatar aqueles aspectos
do seu pensamento que foram omitidos ou suprimidos na versão oficial das
últimas duas décadas. Neste contexto precisa ser lembrado Euclides Fernandes
Távora que é a pessoa que provavelmente mais contribuiu com a formação do
pensamento de Chico Mendes. Euclides era
um militante do Partido Comunista Brasileiro que havia se refugiado na floresta
acreana. Elder Andrade de Paula e Silvio Simione da Silva (2012, p.105) resumem
a importância de Euclides na vida de Chico Mendes assim:
Com as ferramentas ofertadas por Euclides
Távora, Chico Mendes não só aprendeu a ler e escrever. Apreendeu, sobretudo, a
paixão pelas ideias revolucionárias de seu “velho amigo e instrutor” (forma
respeitosa com que se referia a Euclides) e ao seu modo, um método de análise
da realidade que orientou sua trajetória política e o projetou para reescrever
a História da luta de resistência de uma parcela dos segmentos sociais
subalternos na Amazônia brasileira.
Os ideais
comunistas de Chico Mendes e sua clara ideia de luta social estão evidentes em
seus textos, por exemplo, quando ele escreve em sua Carta ao Jovem do Futuro
sobre a revolução socialista mundial que “unificou todos os povos do planeta
num só ideal e num só pensamento de unidade socialista”. Outro exemplo é a
forma como ele se refere ao Banco Interamericano - BID, (banco este, inclusive
que no Governo da FPA ia se tornar o primeiro grande financiador do Programa de
Desenvolvimento Sustentável do Estado do Acre - PDSA), usando estas palavras: “Com
isso, a ONU e as entidades ambientalistas americanas nos convidaram para
participar de uma reunião do BID em Miami, em março de 1987. Eu fui, sabendo
que estava em terreno inimigo.” (CUT/CNS 1988). A luta pela humanidade da qual
Chico Mendes fala não é ambientalista, mas antes de tudo anti-capitalista.
Dois discursos - um só sistema de espoliação
Em 28 de
outubro 2018 um novo presidente foi eleito no Brasil. A mudança no cenário político
brasileiro, que está em curso desde 2016, se insere naquilo que críticos chamam
“surto fascista”, fenômeno com que atualmente se deparam diversos países, onde políticas
de extrema direita ganham espaço com um discurso de perseguição de minorias. No
Brasil, além desta perseguição, espera-se nos próximos anos uma acelerada
destruição da Amazônia.
As novas
tendências fascistas, antes de tudo, têm que ser entendidas como consequência
de décadas de globalização neoliberal, que criou um clima de insegurança e precarização
e uma profunda frustração diante as múltiplas crises que ela criou e para a
quais ela não tem resposta credível. A atual viragem a direita que na
superfície parece “dar um basta”, romper com o sistema anterior, de fato – e
isso pretendemos mostrar neste texto – conserva em grande parte existentes
estruturas econômicas e de poder.
Nossa avaliação
da atual conjuntura coincide com a tese formulada na década de 1930 por Georgi
Dimitroff, que explica fascismo e "democracia burguesa" como duas
formas diferentes do capitalismo. Neste sentido, a situação do Brasil hoje é em
determinados aspectos comparável com aquela no início da década de 1920 na
Itália ou aquela durante a Grande Depressão na Alemanha, quando a democracia
burguesa foi transformada numa ditadura fascista, que manteve a exploração
capitalista, mesmo com os meios mais brutais. Segundo Dimitrov (1938, p. 2,
tradução nossa) fascismo é “ditadura abertamente terrorista dos elementos mais
reacionários, mais chauvinistas, e mais imperialistas do capital financeiro. ”
Podemos
dizer que o sistema capitalista, em termos ideológicos, possui um caráter “camaleônico”,
com dois principais discursos oscilando na sua superfície, que no contexto das atuais
crises neoliberais se apresentam assim:
·
O primeiro discurso é de um
suposto “consenso”, socialmente “inclusivo” e “politicamente correto”, reconhecendo
parcialmente a existência de uma crise global e apresentando as políticas capitalistas
– cujas consequências violentas e destrutivas ele oculta – como “soluções”, através das quais “todos
ganham”. Este discurso legitima mecanismos hegemônicos (menos violentos) de
dominação. Ele pode ser chamado o discurso
das falsas soluções.
·
O segundo discurso opera a
partir da construção de um inimigo que possa ser excluído e abertamente perseguido.
A crise global é basicamente negada e a “crise nacional’ simplesmente atribuída
à atuação deste inimigo, dando-se a solução através da sua (política, cultural
ou física) eliminação. Este discurso legitima mecanismos coercitivos (mais
violentos) de dominação. Ele pode ser
chamado o discurso da negação.
Nas
próximas páginas pretendemos mostrar, no contexto da Amazônia brasileira, que
estes dois discursos se complementam e como – enquanto eles alternam e se
sobrepõem – a espoliação continua e seus mecanismos econômicos em grande parte
não mudam.
Exploração madeireira “sustentável”
O
discurso das falsas soluções na esfera ambiental e climática foi idealizado inicialmente
no âmbito do Banco Mundial e da ONU e consolidado nas grandes convenções que
foram assinados na Eco-92. Consagrando o conceito de “desenvolvimento
sustentável”, estes tratados preconizaram preservação do ambiente e do
equilíbrio climático sem questionar o principal paradoxo do desenvolvimento capitalista:
seu paradigma de crescimento económico ilimitado diante da limitação dos
recursos naturais.
O
Governo da FPA, como descrevemos no início do texto, reproduziu o novo discurso
em nível local. No centro do desenvolvimento sustentável configuraram
inicialmente os projetos de manejo madeireiro. O discurso apresenta estes projetos
como inclusivos e participativos, denominando-os “manejo florestal comunitário
sustentável”, enquanto os impactos violentos estão sendo sistematicamente ocultados.
O relatório da Plataforma DhESCA de 2014 – veementemente desmentido pelo
Governo da FPA – revela alguns aspectos deste “lado escuro” do manejo madeireiro,
resumindo as queixas das comunidades afetadas, como por exemplo: “diminuição do
território disponível para a realização de atividades tradicionais e de subsistência,
[...] fuga de animais de caça, [...] ‘Invasão’
de pessoas de fora das comunidades trazidas pelas madeireiras [...] exploração
sexual de mulheres e meninas” (FAUSTINO; FURTADO, 2014, p.18)
O corte
raso da floresta e a violenta expulsão de seus moradores que ocorreram em
décadas anteriores seguindo o lema “integrar para não entregar”, foram trocados
por uma matança silenciosa da vida do seringueiro. A proposta da Reserva
Extrativista – originalmente do movimento seringueiro – foi desvirtuada e sucessivamente
transformada em negócio pelas grandes ONGs e as madeireiras.
Dominação via Carbono
A
relação de tutela que o Governo e as ONGs criaram com as comunidades rurais no
Acre ao implementar os projetos madeireiros facilitou, predominantemente na
década de 2010, a introdução dos programas para Redução de Emissões por
Desmatamento e Degradação Florestal – REDD e Pagamentos por Serviços Ambientais
– PSA. Em 2012 o Governo criou por meio da Lei estadual 2.308 de 2010 (conhecida
como lei SISA) e de um acordo com o estado da Califórnia (EUA) a base para um
mercado regulado de Carbono e, com esta política, atraiu recursos do Fundo Amazônia
(dinheiro principalmente da Noruega e da Petrobras), da Alemanha e recentemente
do Reino Unido. Os países industrializados e os exploradores de combustíveis
fósseis (A Noruega é um dos principais produtores mundiais de petróleo e gás)
tem grande interesse em – através da compra de carbono florestal – “compensar”
as emissões causadas por suas atividades, ou seja, “pagar para poluir”.
O
discurso que enfatizava a vocação florestal do Acre e a previsão de poder
vender créditos de carbono para Califórnia serviram como convite para os
diversos empreendimentos de REDD privado que até hoje se instalaram no estado. Olhando
de perto para alguns destes projetos, REDD revela-se como um poderoso novo
mecanismo de espoliação da Amazônia que – mesmo utilizando a nova roupagem
discursiva – conserva e reafirma antigas estruturas de dominação.
A
empresa estadunidense Carbon Co. LLC em parceria com a empresa Freitas
International Group, LLC (nome de fantasia Carbon Securities) efetivou desde
2012 quatro projetos REDD no Acre: Purus, Russas, Valparaíso e Envira. As áreas
onde estes projetos foram implantados são antigos seringais. Os parceiros
locais da Carbon Co. que alegam ser proprietários destas florestas são em parte
descendentes dos antigos seringalistas ou empresários que “compraram” as terras
dos mesmos. Nestas áreas há históricos de conflitos de longa duração entre as
comunidades – ex-seringueiros, ribeirinhos, pequenos produtores – e os supostos
proprietários. Gerson Albuquerque (2012) descreve alguns destes conflitos no
antigo seringal Valparaíso, e como as arcaicas relações de trabalho lá
sobrevivem até hoje. Em entrevistas realizadas na década de 1990, moradores da
área descrevem a relação com o atual “proprietário” da área, Manoel Batista
Lopes:
Moro há 53 anos lá. Ele, lá no seringal, mata
nossos porco, nossos cachorro. Primeiro ele mandava os capanga matá. A gente
tinha que assiná um contrato prá prantá e só podia prantá pouco, na capoêra,
num podia desmatá. Quem pescá no lago tem que dividi cum ele, se não dé ele diz
que vai dá parte na justiça. (ALBUQUERQUE 2012, p. 18).
O
violento regime de dominação que perdura nas florestas acreanas desde o
primeiro surto da borracha não só não mudou com a nova economia florestal
promovida pelo Governo da FPA, mas reafirmou-se na lógica dos projetos REDD. A
proibição das atividades de subsistência que antes objetivava a maximização da
produção de borracha, hoje serve para maximizar a estocagem de carbono na
biomassa. O que mudou drasticamente com o novo modo de produção é o discurso. Agora
encontram-se placas do projeto REDD nas colocações da área exibindo – ao lado
das proibições do projeto – a frase: “A comunidade é parceira”.
Na mesma
linha “eufemística”, as descrições oficiais dos projetos da Carbon Co. no Acre,
enfatizam aspectos como participação, transparência e repartição de benefícios
com a comunidade. No documento descritivo
do projeto Envira (MCFARELAND 2015, p.42) lemos por exemplo que eventuais
queixas por parte da comunidade seriam atendidas pela empresa do promotor local
do projeto, Duarte José de Couto Neto. Esta empresa seria ao mesmo tempo
proprietária da área, ou seja, para os moradores Duarte de fato representa o
“patrão”. O nível de participação e transparência que pode ser esperado do
“atendimento” por este empreendedor ambientalista pode ser deduzida de suas declarações
públicas, nas quais afirma entre outros ter “saudade, e muita do regime
militar” (cit. in KILL, 2018).
Por meio
do carbono como novo produto, implementa-se um novo modo de produção nas
florestas, assentado nas antigas relações de dominação capitalista criadas
pelos seringalistas. Para vender este produto – projetado para salvar o mundo
da catástrofe climática –, o discurso que o promove precisa ofuscar as reais relações
da sua produção. Neste sentido, a vinculação com o “legado” de Chico Mendes é
um elemento essencial para a promoção dos projetos REDD. Na página de venda
online da Carbon Securities (na versão em inglês) consta:
Hoje, a Carbon Securities firmou parceria com a
Fundação Chico Mendes, gerida e operada por Ilzamar Mendes e Elenira Mendes,
esposa e filha de Chico Mendes. Temos o prazer de manter vivo o espírito e a
iniciativa de Chico Mendes e estaremos sempre lutando para salvar a floresta
tropical juntos. (CARBON SECURITIES 2018, tradução nossa)
REDD: a ameaça vira ”oportunidade”
Surge a
questão sobre o futuro dos projetos do tipo REDD no novo cenário político no Acre
e no Brasil a partir de 2019. As esperadas políticas de eliminação do – como
diz o presidente eleito – “ativismo xiita ambiental” e a reduzida fiscalização
ambiental vão afetá-los ou inviabilizá-los? Seguindo nossa tese que o discurso
das falsas soluções e o discurso da negação se complementam em uma só lógica de
espoliação capitalista, esta mudança não pode afetá-los fortemente. Sem alongar
especulações sobre o futuro, podemos mencionar duas circunstâncias que apontam
para a persistência destes projetos.
Primeiro:
projetos privados de REDD, como aqueles da Carbon Co. por enquanto vendem
certificados apenas no mercado voluntário. Para isso eles não dependem de uma
base jurisdicional específica. Mesmo se, com o fim do Governo da FPA, as
transações com Califórnia não se realizem, estes projetos podem continuar
vendendo seus créditos para empresas ou pessoas físicas no mundo inteiro que
desejam diminuir ou apagar sua “pegada de carbono”. Entre 2016 e 2017, o
projeto Envira vendeu créditos no valor de pelo menos 750.000 toneladas de
carbono. (KILL 2018) No site da Carbon Securities (2018) pessoas podem comprar tais
créditos online por dez dólares por tonelada. Baseado neste preço, o valor de
mercado do carbono vendido pelo projeto Envira em dois anos totalizaria mais
que 7,5 milhões de dólares.
Projetos
privados de REDD teoricamente podem se tornar ainda mais lucrativos num cenário
geral de desmatamento aumentado, uma vez que podem reivindicar mais
“adicionalidade”. Que significa isto? Na medida em que um empreendedor REDD
pode argumentar que a floresta que seu projeto supostamente preserva esteja
ameaçada, este seu projeto vale mais redução de carbono em comparação com um
cenário sem projeto. Na paradoxal logica da adicionalidade, a ameaça de desmatamento
ou degradação florestal acaba “valorizando” o carbono florestal e transformando
a ameaça em oportunidade de negócio.
Segundo:
mesmo que algumas declarações do novo presidente eleito apontam para uma possível
saída do Brasil do acordo de Paris, há indícios que isto não ocorra. A
permanência do Brasil, com a consequente concretização de uma política nacional
de REDD compensa economicamente. Um analista da revista Forbes argumenta neste
sentido:
Os europeus fazem questão de destacar para
Bolsonaro e para os poderosos interesses agrícolas que o apoiam, que o Brasil é
um dos maiores beneficiários de ser signatário do Acordo de Paris. Como o país
está na vanguarda da vulnerabilidade às mudanças climáticas e da capacidade de
combatê-lo, ele recebe milhões em subsídios como parte do regime de Paris que
desapareceria se abandonasse o acordo. (KAETING 2018, tradução nossa)
Para
sustentar seu vício em combustíveis fosseis, os países industrializados
necessitam o pretexto de “compensar” suas emissões. Para o Brasil, por sua vez, esta dependência apresenta
uma oportunidade de fazer um jogo duplo de ameaça e proteção da Amazônia, barganhando-a
como “sumidouro de carbono”.
Sinergias com o agronegócio: o novo Código Florestal
O texto
acima citado menciona os “poderosos interesses agrícolas” que apoiam o novo
presidente do Brasil. Por que projetos “ambientalistas” como REDD e PSA seriam no
interesse do agronegócio? Dois anos depois da criação da Lei SISA, o então
senador Jorge Viana foi relator do novo Código Florestal (Lei nº12.651 de maio
de 2012). Esta lei, marca a mudança de uma política exclusivamente de
restauração para uma política com amplas possibilidades de compensação de
desmatamentos. A Cota Rural Ambiental (CRA) é a peça
central neste sistema de compensação, uma vez que pode ser usada para cumprir a
obrigação de Reserva Legal em outra propriedade, ou seja, o proprietário que
desmatou além do permitido, por exemplo um sojeiro da Amazônia mato-grossense,
pode compensar essa dívida através de CRAs de outro local, dentro do mesmo
bioma, seja em Mato Grosso ou, por exemplo, do Acre. O Novo Código Florestal,
em seu artigo 41 inclusive autoriza e incentiva a “cumulação” de diversos tipos
de compensações, quando autoriza o Poder Executivo a instituir programas para
“pagamento ou incentivo a serviços ambientais [...] isolada ou cumulativamente” (grifos nossos),
listando os sete serviços ambientais que haviam sido definidos em 2010 na Lei
SISA e acrescentando como oitavo item “a manutenção de Áreas de Preservação
Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito”.
O
relatório “Preparando a implementação da Cota de Reserva Ambiental em Mato
Grosso” explica este “uso cumulativo” dos diversos serviços ambientais a partir
da CRA pelos latifundiários do estado:
Além disso, a CRA sendo um atestado da
existência de uma área florestal conservada, ela pode ser usada para outros
fins e em outros mercados além da compensação de passivos de reserva legal: por
exemplo, pode ajudar a viabilizar mecanismos de Redução de Emissões do
Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), estabelecendo um título conversível
em toneladas de carbono; ou ainda, pode servir em ações de responsabilidade
ambiental de empresas, como um “vale-floresta”, etc. Poderia também ser usada
em pagamento da compensação ambiental de empreendimentos hidrelétricos,
conversão de multas de impactos ambientais como derramamento de petróleo,
dentre outros. (sem prejuízo da responsabilidade de remediação dos danos). (ICV
2013, p.9)
Neste
sentido, a então Senadora e presidenta Confederação Nacional da Agricultura
(CNA), Katia Abreu comenta que sua organização procura “fundos e corporações
que querem compensar suas emissões com a redução das emissões dos agricultores
brasileiros” (cit, in CARDOSO 2012).
O novo Código
Florestal cria fortes sinergias entre dois poderosos mecanismos de acumulação
de capital no Brasil: o do agronegócio e o do carbono. Além disso, ele oferece
para as agro-oligarquias – até então “anti-ambientalistas” que reproduziram o discurso
da negação – a possibilidade de se apresentarem como protetores da Amazônia. Ou
seja, de se apropriarem do discurso das falsas soluções. Nas palavras de Jorge
Viana sobre o novo Código Florestal esta função fica clara: "Quando o meio
ambiente ganha, ganha o agronegócio, ganha a produção, ganha a economia".
(SENADO FEDERAL 2011)
“Limpando o ar” para as multinacionais
Não são
apenas os latifundiários que ganham com o agronegócio. Alimentando o crescente
vício do mundo industrializado em carne e biocombustíveis, a produção das commodities
agrícolas (como soja, cana de açúcar, milho) por sua vez é viciada no uso de
produtos de empresas multinacionais, tais como sementes (patenteadas ou
transgênicas) e agrotóxicos. Nos últimos três anos houve forte concentração
corporativa neste ramo. Atualmente, os quatro “gigantes” do agronegócio mundial
são: Corteva Agriscience (resultante da fusão de Dow com Dupont em 2015), Chem China
(que comprou Syngenta em 2017), Bayer (que comprou Monsanto em 2018) e BASF.
Para
nossa análise, Bayer – agora a maior corporação agrícola do mundo – e BASF merecem
especial atenção. Após a compra da empresa americana Monsanto pela Bayer por cerca
de US$ 66 bilhões, a BASF – por exigência das autoridades de defesa da concorrência
– adquiriu ativos da Bayer no valor de cerca de US$ 7,24 bilhões. Com isto, estas
duas multinacionais alemãs assumem uma posição dominante no agronegócio
brasileiro. Combinadas, as vendas de Bayer e Monsanto no Brasil somam R$ 15
bilhões anuais (PORTALDOAGRONEGOCIO. 2018). Ao mesmo tempo, por serem fortes
componentes da economia exportadora alemã, Bayer e BASF vêm participando em
diversas iniciativas juntas com o governo daquele país. Estes programas, como
por exemplo German Food Partnership (GFP, Parceria Alimentar Alemã), fóruns para “soja responsável” e “óleo de palma responsável”
frequentemente são criticadas por organizações da sociedade civil, que veem
nelas uma “lavagem verde” para as insustentáveis práticas do agronegócio. O apoio
à implementação do novo Código Florestal pelo Governo Alemão é igualmente consistente
com seu interesse na expansão do agronegócio no Brasil. Entre 2014 e 2020, o
Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ) apoiou a
operacionalização do CAR com 5,5 milhões de Euro. (GIZ 2017)
Mas, sobretudo
temos que mencionar neste contexto a recente implantação do programa alemão REDD
Early Movers no estado de Mato Grosso (para mais informação sobre este
programa, leia o artigo de Jutta Kill nesta revista). Por que a Alemanha quer “premiar”
por sua política climática justamente aquele estado Brasileiro, que desde
décadas é considerado o líder em desmatamento e o berço do agronegócio
brasileiro?
O
período em que o acordo para financiar REM em Mato Grosso foi fechado (final
2017) coincide com a consolidação da compra de Monsanto pela Bayer. Neste
momento já se sabia que a Bayer terá que lidar com as grandes polêmicas em
torno dos produtos agrotóxicos que assumiria da Monsanto. No foco desta polêmica
internacional estão os herbicidas da linha Roundup com o princípio ativo glifosato, que segundo estudos
independentes é considerado possivelmente cancerígeno. O presidente da
Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso
(Aprosoja-MT) comenta sobre este veneno: “Sem glifosato não tem safra no
Brasil” e “Hoje produtor não sabe mais plantar de outra forma a não ser esta”
(ESTADÂO 2018). A função de “lavagem verde” pelo programa REM – isto é a tentativa
de com ele encobrir os impactos violentos do agronegócio por meio do discurso
das falsas soluções – fica evidente a partir deste momento.
Olhar
para o histórico das duas corporações alemães nos permite entender ainda melhor
certas dinâmicas discursivas. Na época do regime nacional-socialista alemão,
Bayer e BASF faziam parte de uma só empresa aglomerada, chamada IG Farben. A IG
Farben foi responsável pela produção do gás venenoso Zyklon B que foi usado
para assassinar milhões de pessoas nos campos de extermínio. A mão de obra da empresa
era em grande parte trabalho forçado, incluindo 8000 internos dos campos de
concentração. A estreita cooperação com o Governo nazista levou a um quintuplicar
dos lucros líquidos da IG Farben entre 1933 e 1943. (HAYES 1987, p.124)
Hoje, a
Bayer diz “contribuir para a formação e o bem-estar da sociedade, além de [desenvolver]
ações de preservação do meio ambiente.” e BASF assegura criar “química para um
futuro sustentável”. Como tal “conversão” pode ser explicada? Insistimos que as
corporações capitalistas não possuem ideologia ou filosofia. Elas obedecem
unicamente ao imperativo da acumulação de capital. O caráter inexorável da
progressão desta lógica encontra sua simples expressão no título da revista
mensal da IG Farben de maio 1938: "De fábrica para fábrica".
Empresas
como Bayer e BASF, seguindo a dinâmica camaleônica do sistema capitalista,
constantemente adaptam seu discurso para conciliar seus mecanismos de
acumulação com a moral da época. Esta dinâmica acaba conservando estruturas de
poder: o discurso muda justamente para que as relações de poder não mudem. Desta
forma, as estruturas coloniais e imperiais vêm se reafirmando ao longo dos
séculos.
Concluindo
A
intensificação do desmatamento e dos atos de violência contra os povos da
floresta que se iniciam com a nova presidência e seu discurso da negação desafia
a sociedade civil para adotar formas mais diretas de resistência. Porém, o
perigo neste momento é que o discurso das falsas soluções possa se fortalecer diante
da ameaça, apresentando-se como “única alternativa” para lidar com a crise. Não
devemos cair neste engano. Os movimentos sociais precisam reconhecer que os dois
discursos se complementam e juntos promovem a espoliação capitalista da
Amazônia
Na
medida em que o capitalismo extingue vida na terra, a luta da esquerda se tornará
uma luta ecológica. Uma ecologia política – isto é uma abordagem que reconhece
a dimensão essencialmente política da questão ambiental – inspirada na luta anticapitalista
do movimento dos povos da floresta e Chico Mendes pode nortear a esperada
reformulação da esquerda no Brasil pós-2018. As palavras que Euclides Távora dirigiu
a Chico Mendes em 1964, parecem valer novamente para nós hoje: “[...] por maior
que seja o massacre, sempre existirá uma semente que renascerá e aí você terá
que entrar, mesmo que seja daqui a oito, dez anos.” (CUT/CNS 1998) Só que hoje a
acelerada destruição da base da vida pelo capitalismo não nos permite mais
esperar muito.
Referências
bibliográficas
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Trabalho e Lutas Sociais entre Trabalhadores Agro-Extrativistas do Rio
Valparaíso na Amazônia acreana. Revista Nera, n. 5, p. 13-33, 2012.
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Acesso 08/09/
[i]
Artigo pulicado originalmente na revista Trinta anos pós assassinato de Chico
Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre, em dezembro 2018
[ii] Michael
Franz Schmidlehner, formado como mestre em filosofia na Universidade de Viena,
nativo da Áustria e brasileiro naturalizado, é pesquisador e professor de
filosofia.