Por Walter Goobar
Jornalista argentino
O Departamento de Estado dos EUA ministra um curso sobre "manejo” carcerário no Uruguai, quando o país do Norte ostenta os piores antecedentes em âmbito mundial por sua crueldade penitenciária e sua justiça intolerante com os pobres.
Nas últimas semanas, o presidente uruguaio surpreendeu com umas declarações desafortunadas sobre a presidenta Cristina Fernández de Kirchner, mas, em seguida, pediu desculpas publicamente, apesar de que deixou a descoberto uma espécie de duplo discurso uruguaio sobre a irmandade rioplatense.
Mais alarmante do que essas destemperadas declarações com respeito às relações com a Argentina, é uma série de movimentos pendulares que revelam a política extremamente complacente do Uruguai em relação aos Estados Unidos, em um momento em que Washington está buscando, por todos os meios, penetrar na região.
Nesse sentido, é mais do que surpreendente que esse curtido militante tupamaro, que passou 15 anos de sua vida nas celas de isolamento da ditadura nas quais –segundo sua própria confissão- "chegou a conversar com as rãs e com as formigas para não ficar louco”, agora admita que o Departamento de Estado dos EUA ministre um curso sobre "manejo” carcerário no Uruguai, quando o país do Norte ostenta os piores antecedentes em âmbito mundial por sua crueldade penitenciária e sua justiça intolerante com os pobres.
Em momentos em que a metade dos 166 presos detidos ilegalmente em Guantánamo prefere morrer de fome do que continuar suportando a violação de todos seus direitos, a imprensa uruguaia notificou que: "o Ministério do Interior, com o apoio da Embaixada dos Estados Unidos, ministrou um curso de formação em segurança interna para o sistema penitenciário, com a duração de duas semanas. Na atividade de encerramento dos cursos, esteve presente o Ministro do Interior, Eduardo Bonomi, e a embaixadora dos EUA, Julissa Reynoso. A capacitação foi ministrada pelos especialistas Mitch Sutton, assessor da Unidade de Capacitação e Treinamento Móvel de Academias Correcionais Federais de Xalapa (Veracruz, México) e por Antonio Maestas, conselheiro de Formação e Enlace do Departamento de Estado dos Estados Unidos”, segundo informa uma mensagem da agência UPI.
Nenhum meio uruguaio foi surpreendido pelo fato de que o governo da Frente Ampla aceitasse cursos de "manejo carcerário” de um dos países que –segundo a Anistia Internacional- lidera o ranking de atrocidades nesse âmbito. Não só na extraterritorialidade de Guantánamo, mas também em seu próprio território e contra seus próprios cidadãos. A imprensa oriental transcreveu as declarações da embaixadora Reynoso sem nenhum questionamento. Ela "explicou que o trabalho de capacitação do pessoal do sistema penitenciário é de grande ajuda para a comunidade. Apoiar a todas as instituições básicas para a democracia e o Estado de Direito é um dos objetivos da política externa dos Estados Unidos”.
O avanço estadunidense no Uruguai é ostensivo: em junho de 2012, foram os Navy-Seals, o corpo de elite estadunidense que perpetrou o assassinato de Osama Bin Laden no Paquistão, que realizou manobras com os fuzileiros uruguaios, sem sequer informar aos países vizinhos, como marcam os protocolos da Unasul. Em dezembro desse mesmo ano, os falcões da DEA expulsos da Bolívia pelo presidente Evo Morales desembarcaram em Montevidéu.
Tanta hospitalidade fez com que os estadunidenses acreditassem que podiam ir além: solicitaram permissão para a instalação de uma base militar de avançada (foward location) dos EUA em Durazno –como a que quiseram instalar no Chaco argentino-, e a participação do Uruguai em uma nova missão de paz da ONU no Nepal. No entanto, nas últimas semanas, ambos pedidos foram rechaçados pelo Ministério de Defesa uruguaio. Além disso, o organismo deixou transcender que controlará com mais rigor a atuação das Forças Armadas no exterior, após as autoridades detalharem um exercício militar na costa da Flórida, sede do Comando Sul dos EUA (que pareceu uma reedição –porém, ao revés- do treinamento que a Armada uruguaia tece em junho com os Seals).
Um ex-preso político, como Pepe Mujica, deveria saber melhor do que ninguém que –segundo a Anistia Internacional- "os EUA violam os padrões internacionais para o tratamento de prisioneiros”. Em seu relatório 2012, Anistia Internacional denunciou a situação de "cruel isolamento” em módulos penitenciários em diversos Estados, como Califórnia ou Arizona. Anistia indica que a situação da população carcerária no Arizona não cumpre os compromissos dos Estados Unidos com o Convênio sobre Direitos Civis e Políticos.
Outro tanto acontece na Califórnia: "As condições e a duração do encarceramento em módulos de isolamento na Califórnia são simplesmente terríveis”, manifestou Angela Wright, investigadora da IA sobre os Estados Unidos, que visitou vários cárceres no Estado californiano este ano. Em julho de 2011, 12 mil prisioneiros nos cárceres dos EUA lançaram uma greve de fome e de trabalho. Foi a maior greve de detidos na história dos EUA.
Na Califórnia, durante o período de cinco anos, de 2006 a 2010, a cifra de suicídios carcerários atingiu uma média de 34 por ano, dos quais 42% aconteceram em unidades de segregação administrativa ou em módulos de isolamento. Os estudos demonstram que os efeitos negativos derivados de períodos prolongados em regime de isolamento podem continuar muito tempo depois da liberdade dos internos.
A investigação está baseada na informação recompilada pela AI graças ao seu acesso exclusivo aos módulos de isolamento na Califórnia, que descreve as condições de reclusão sofridas por mais de 3.000 presos no Estado, entre eles 78 internos que permaneceram mais de 20 anos em regime de isolamento.
35% dos encarcerados em módulos de segurança máxima são pessoas sem delitos de sangue, tais como furto ou venda de drogas, que, em grande parte, foram reclusos nessas instalações por mal comportamento devido a problemas mentais.
Em seu relatório de 2013, Human Rights Watch reafirma: nos EUA "são os setores mais vulneráveis da sociedade –as minorias étnicas e raciais, os grupos com baixos ingressos, os imigrantes, as crianças e os anciãos- que estão mais expostos a sofrer injustiças no sistema de justiça penal”.
Com 5% da população mundial, os Estados Unidos detêm 25% dos presos do planeta e apresenta a proporção de encarceramento per capita mais elevada em âmbito mundial. Nenhuma outra sociedade na história da humanidade encarcerou seus habitantes em uma proporção tão grande. Estados Unidos soube converter sua superpopulação carcerária em um negócio rentável que promoveu o surgimento de um complexo industrial que agora conta com as maiores operadoras de cárceres privados do mundo. Em primeiro lugar, destaca-se a Corretions Corporation of America (CCA), seguida de outras, como o GEO Group, que também administra Cáceres na Austrália, na África do Sul e no Reino Unido.
Nem lerdos, nem preguiçosos, os Ministros Bonomi (Interior) e Lorenzo (Economia) anunciaram em março passado a construção, em Punta de Rieles, de uma prisão para 2.000 detentos, o que equivale à quinta parte do total de presos atualmente.
Não é preciso demasiada sagacidade para deduzir que os "cursos” não são nada mais do que álibis que permitem à Embaixada dos Estados Unidos, na perspectiva de adjudicar-se o primeiro estabelecimento carcerário público-privado no Uruguai.
Tradução: ADITAL