Na Amazônia Ocidental - região que compreende o Acre, o sul do Amazonas e o noroeste de Rondônia -, o início da colonização esteve diretamente ligado à exploração extrativista da borracha. Naquele momento, a ação direta do Estado impulsionou a migração nordestina para a Amazônia, estabelecendo com isso um novo contexto social, econômico, cultural e territorial na região.
O confronto entre os que vinham de outras partes do Brasil e os que habitavam a região foi inevitável e desigual. Para responder aos modelos hegemônicos de ocupação capitalista baseados na violência e espoliação, os povos indígenas estabeleceram diferentes movimentos de resistências, que podem ser compreendidos tanto a partir das comunidades quanto a partir de suas organizações representativas.
A economia extrativista de exploração da borracha foi, para os indígenas, um tempo de perseguição e violência. Às vezes, o Estado era o próprio sujeito da perseguição e da violência. Às vezes, eram os vindos de fora, sendo o Estado omisso espectador. Através das chamadas “correrias”, eles foram submetidos à dispersão, expulsos das margens para as cabeceiras dos rios; à dizimação e à pacificação, transformação dos indígenas em “mão de obra” para os seringais.
É, pois, no contexto de ação violenta do Estado que os povos indígenas articulam a resistência contra a invasão e saque das terras e dos bens naturais. Com isso, surgem novas formas de resistência, inspiradas na organização formal e coletiva dos povos indígenas, diferentes das organizações tradicionais de cada povo, ainda que, de certa forma, ligadas a elas.
Novo tempo, nova forma de organização e resistência
A década de 1970, no Acre, marca a substituição do extrativismo pela pecuária extensiva de corte, que, ao lado da grande propriedade fundiária, consistirá no eixo central da modernização. Por outro lado, ela é também um marco no que diz respeito às formas de organização e resistência por parte do movimento indígena. Às novas formas de opressão e exploração corresponderam novas formas de resistir.
Até aquele momento, a resistência dos povos originários na Amazônia Ocidental era determinada a partir de suas comunidades. Naqueles idos anos, porém, os índios passaram a contar com o apoio de um importante aliado: a Igreja Católica. Somava-se a isso a atuação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma espécie de pastoral indigenista.
Este foi criado em 1972 pela Igreja Católica, ainda com uma estrutura clerical e vertical, mas com novas inspirações pastorais fundamentadas na Teologia da Libertação. Ao mesmo tempo em que questionava o modelo de missão tradicional (baseado na evangelização com vistas ao proselitismo e, portanto, no aculturamento), o “CIMI buscava novas formas de compromisso com as comunidades indígenas” (SUESS, 1989: 19).
No que tange ainda à atuação da Igreja Católica, vale ressaltar a importância das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das Pastorais Sociais. Sua atuação foi demasiado importante para o fortalecimento da luta dos movimentos dos trabalhadores rurais e dos indígenas na região.
Sempre naquela década, surge também outra importante aliada dos povos indígenas: a Comissão Pró-Índio (CPI) do Acre. Trata-se de uma organização não-governamental, criada com o objetivo específico de atuar com os povos indígenas. Hoje ela é parceira do Estado na execução de projetos nas terras indígenas com caráter “ecodesenvolvimentista”.
Assim, no início da década de 1980, pela afirmação da identidade e pela defesa da terra, surge o movimento indígena organizado da Amazônia Ocidental, constituindo o Núcleo de Cultura Indígena(NCI). Este era vinculado ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). Com isso, alcançava-se, pela primeira vez, a unificação das lutas dos povos indígenas da região.
Ainda no curso dos anos 1980, o NCI mudou o nome para União das Nações Indígenas do Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia (UNI/AC). Era indisfarçável seu caráter eminentemente político. Ela contava com a participação das comunidades, o que proporcionava legitimidade ao movimento. Porém, a preocupação com o processo institucional era ainda bastante incipiente.
O movimento buscava o apoio da sociedade brasileira e da comunidade internacional para suas reivindicações, tendo como eixo central a recuperação e garantia de suas terras. Favorecia-se, dessa forma, a unidade do movimento e sua vontade expressa de assumir o papel de sujeito histórico. Era inelutável o confronto com o Estado.
Naquele contexto de resistência dos movimentos sociais, surge também a oportunidade de lutar no campo da política partidária. Partiram, então, para a disputa do poder político estatal. A estratégia era bastante compreensível e até atraente, tendo em vista a abertura do regime pós-ditatorial no Brasil.
No movimento indígena, a luta política partidária foi intensificada visando a uma participação indígena atuante na Constituinte de 1988. Na verdade, “as lideranças indígenas acreditavam no fortalecimento da representação política como sendo indispensável para o êxito das lutas” (DEPARIS, 2007: 107).
O movimento social acreano, agora (década de 1990) somava-se à base política partidária cuja referência era o Partido dos Trabalhadores (PT), que já ameaçava o monopólio das oligarquias políticas naquela época. A relação do movimento com a base partidária se estreita ainda mais em 1999, quando o governo do Estado passou a ser conduzido pela FPA. Esse grupo político era composto por doze partidos (PT, PSDB, PC do B, PMN, PL, PDT, PPS, PV, PTB, PT do B, PSB e PSL), tendo o engenheiro florestal Jorge Viana (PT) e Edson Cadaxo (PSDB) como Governador e Vice-Governador, respectivamente. Era uma coalizão atraente para o movimento indígena, afinal era liderada pelo PT, aliado histórico dos “povos da floresta”.
Crônica de uma vitória às avessas
Tendo chegado ao poder estatal, a FPA buscou apoio de agências governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais, e de bancos multilaterais de desenvolvimento para implementar o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre (PDSA). Segundo as autoridades governamentais do Acre, o referido programa de desenvolvimento é inspirado no modo de vida dos “povos da floresta”: seringueiros, camponeses, ribeirinhos e índios.
Nesse novo contexto, alguns membros dos movimentos sociais são convidados a tomar parte na condução da máquina estatal. Como outras lideranças dos povos da floresta, as lideranças indígenas celebraram a parceria e os acordos firmados com o governo. Para eles, isso representava a oportunidade de modificar uma realidade histórica de descaso e violência por parte do Estado.
Agora, o Estado se apresentava como “amigo”. Pouco se deu atenção ao fato de o projeto da FPA ter à sua frente as oligarquias locais e agências de cooperação técnica e financeira de países como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.
Em parceria com o movimento indígena, o governo da FPA inicia um processo de inserção da temática indígena como política pública, incorporando demandas com o objetivo de conciliar o projeto de desenvolvimento do Estado com a melhoria de condições de vida nas comunidades indígenas. Nesse sentido, foi criado o “Programa Emergencial de Desenvolvimento de Comunidades Indígenas”, desenvolvido pela UNI/AC através de um convênio firmado com o governo do Acre.
Organizando o domínio estatal, desorganizando a resistência
O CEI é formado por representantes de quatro órgãos estaduais (Gabinete Civil, SEE, SEPRO e SECTMA), três órgãos federais (FUNAI, FUNASA e UFAC), três organizações indigenistas (CPI-Acre, CIMI e COMIN), dez organizações indígenas (UNI, OPIRE, OPITAR, OPIRJ, APIWTXA, ASKARJ, AAPBI, OAEYRG, GMI e OPIAC) e outros dois representantes de povos indígenas (um do rio Purus e outro do rio Iaco): 22 membros e seus respectivos suplentes (AQUINO, 2006: 36).
Esperava-se que o Conselho tivesse uma dinâmica que pudesse atender às expectativas dos povos indígenas da região. Mas havia o perigo de essa instância fugir ao controle e barrar ou prejudicar a execução dos projetos governamentais que, como as estradas referidas acima, tivessem impactos sobre as terras e sobre o modo de vida dos povos originários.
Neste contexto, a SEPI teve um papel estratégico para as pretensões do Executivo Estadual: articulando as ações compensatórias e mitigadoras nas diferentes Tis do Acre, evitando resistência articulada por parte das comunidades e movimento indígenas.
Não resta dúvida de que, nas parcerias com o governo, o movimento indígena busca protagonismo, como ao assumir as ações de saúde na região da Amazônia Ocidental através do convênio UNI/FUNASA, nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas de Saúde do Alto Purus e Juruá. Isso foi fruto de um convênio entre o governo de Fernando Henrique Cardoso e o governo petista acreano. Porém, daí resultaram consequências negativas, que culminaram na extinção da UNI/AC e no fortalecimento da SEPI.
Ainda através da SEPI, o governo investiu na estruturação das organizações de base comoOrganização dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE), Organização dos Povos Indígenas de Tarauacá (OPITAR) e Organização dos Povos Indígenas da Região do Juruá (OPIRJ). Com esse artifício, ele conseguiu assimilar lideranças à máquina estatal, contratar assessores indígenas e deixá-los à disposição do Estado.
Dessa forma, o que parecia contribuir para o fortalecimento do movimento contribuiu, na verdade, para seu debilitamento. Organizações importantes na história de resistência do movimento, como a UNI/AC, foram extintas. Experiências com referências coletivas de organização foram pulverizadas. E assim a SEPI se fortaleceu à medida que enfraqueceu o movimento indígena e suas organizações representativas.
As ações governamentais nas Tis, nas gestões de Jorge Viana (1999-2006) e de Arnóbio Marques (ou simplesmente “Binho”, como também é conhecido) (2007-2010), foram pautadas nesse tipo de estudos que visam à “gestão territorial”. Embora aleguem que possam trazer coisas positivas para as comunidades indígenas, são instrumento de dominação por parte do governo. Isto porque os dados coletados nas comunidades indígenas são sistematizados com a cooperação técnica dos organismos internacionais, como forma de justificar determinados projetos capitalistas que visam à exploração da natureza. Trata-se, portanto, de uma forma de apropriação simbólica e material dos territórios pertencentes aos povos originários.
O diagnóstico etnoambiental configura-se como nova forma de dominação sobre os povos indígenas e seus territórios. Nas palavras de Correia, esses estudos/levantamentos
Mantêm, portanto, um dos aspectos históricos da cartografia ocidental, mostrado por Harley (1988), de serem utilizados para a dominação, mas, agora com novas terminologias (mapeamento participativo, etnozoneamento, etnomapeamento, diagnóstico etnoambiental, levantamento etnoecológico, levantamento etnoambiental etc.) e associados à ideologia de desenvolvimento sustentável. Delineiam, assim, novas formas de dominação sobre os povos indígenas (CORREIA, 2007: 187).
Através desses expedientes, o governo elabora planos de “gestão” das potencialidades econômicas das Tis. Sem acrescentar ou subtrair, esse é o caso do PROACRE. Lançado no final de 2008, através de um novo contrato do governo do Acre com o Banco Mundial (BM), esse programa objetiva à definição das ZAPs (Zonas de Atendimento Prioritário) e das ZEDs (Zonas Especiais de Desenvolvimento).
Mas, não casualmente, o referido programa pretende também promover o “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades de Conservação, Tis e projetos de assentamento”. Além de aprofundar a subordinação do Estado às instituições financeiras internacionais, tal programa permitirá o manejo madeireiro em áreas indígenas.
A desarticulação do movimento na Amazônia Ocidental, dentre outras coisas, resultou também na paralisação do processo demarcatório de TIs. São 17 a serem demarcadas em todo o estado. Não foi por acaso que, historicamente, a demarcação de terras se transformou na principal bandeira de luta e reivindicação indígenas. Para os povos originários, a “posse” da terra representa uma vitória palpável e um palpável instrumento de proteção contra “os invasores”. Todavia, mantido o PROACRE, voltar à luta pela demarcação de terras não será grande vantagem – ou mesmo vantagem nenhuma – para os índios.
Sejamos claros. O “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável” significa: território indígena aberto ao capital e ao “invasor”. Desse modo, a demarcação de terras não será, sequer formalmente, obstáculo ao capital. Nem garantirá que os povos nativos perpetuem sua cultura, sua história e seu modo de vida.
Assim, poderiam os latifundiários, seus porta-vozes e ideólogos – que vivem a protestar que “há muita terra pra pouco índio” – opor-se a que se demarquem as terras indígenas? Por isso, a manter-se o atual quadro, a luta pela terra tornar-se-á anacrônica, obsoleta.
“Transformismo”; “propaganda de afirmação” e “prática de negação”
No intuito de lograr êxito em seus propósitos, o governo vem envolvendo os indígenas através do que o BM chama de “empoderamento”, o que, em tese, implica inclusão participativa. Ao lado disso, o governo promoveu uma valorização desses povos nunca vista na sociedade acreana, trabalhando positivamente para a afirmação de sua identidade.
Com efeito, aquilo que Paula diz a respeito dos seringueiros vale para os “povos da floresta”, em geral, e para os índios, em particular: os seringueiros, que em décadas anteriores foram considerados “atrasados”, agora passam a ser “modernos”, porque sua forma de se relacionar “com o meio natural é a mais adequada para se garantir a proteção da floresta amazônica” (PAULA, 2005: 288).
Mas o que significam, de fato, a participação/inclusão e a valorização dos indígenas no Governo da FPA? A quem servem?
É possível apreender o significado dessa participação/inclusão a partir do conceito de “transformismo”. Forjado por Antônio Gramsci, este conceito diz respeito ao processo através do qual o Estado, via cooptação, assimila personalidades políticas singulares e/ou grupos adversários inteiros. Estes são, então, incorporados às forças conservadoras.
Através de tal expediente, o Estado inclui-domestica àqueles que lhe faziam resistência e lhe criavam embaraços. Exatamente como ocorre no Acre, onde o governo assimilou parte significativa das lideranças e de setores indígenas, fazendo-os dóceis a seus interesses e colaboradores seus. Dessa forma, os projetos estatais são apresentados como sendo frutos de uma parceria entre iguais, harmônica, benéfica, eficaz. Quando não, são apresentados como fruto de iniciativa dos próprios índios.
Os cooptados passam, então, a combater seus grupos de origem. Procuram, também, fazer com que os relutantes e os avulsos acatem os desígnios estatais. Em razão disso, outro resultado inelutável de tal processo é que o Estado se fortalece alimentando a fraqueza do movimento indígena, tal como a SEPI submetendo ou extirpando as outras formas de organização do movimento.
Não são poucos os que percebem os perigos contidos nas políticas estatais, e protestam contra isso – conquanto de forma ainda débil e inorgânica. Os que assim agem são tratados com a exclusão, a desqualificação e a perseguição. A retaliação estatal chega a atingir povos inteiros.
Em verdade, quanto mais colaborador do governo mais chance tem um grupo de receber melhorias em sua aldeia, e vice-versa. Em umas aldeias há até computadores. Em outras (na maioria), porém, nem sequer as condições mínimas de saneamento, saúde e educação são asseguradas.
Por sua vez, a afirmação identitária dos povos indígenas pode ser compreendida sob a mesma lógica da valorização dos “povos da floresta” em geral, onde também encontra lugar a ressignificação dos heróis e da história acreana.
Recorrendo ostensivamente a expedientes ideológicos, o governo conta uma história acreana repleta de heróis e feitos. Segundo essa narrativa, ela começa com a “Revolução Acreana” e é coroada com a vitória eleitoral da FPA (1999) e com a implantação do “desenvolvimento sustentável” e da “florestania”. Qualquer coisa que fuja a esse roteiro é apresentada como um perigo, um retrocesso.
Nessa empresa, as personalidades maiores da FPA se colocam como herdeiros únicos dos heróis daquela história/estória. Daí abusarem, até à distorção, de figuras como Chico Mendes. Remodelam os traços dessas “figuras gloriosas” até que, desfigurando-as, fiquem parecidas com elas. Agigantam-nas, apenas para se gloriarem à sua sombra.
Por isso, toda glorificação de Chico Mendes e de outras figuras graúdas da historia acreana (como Galvez e Plácido de Castro) é, assim, uma glorificação daquelas personalidades e das políticas estatais. Trata-se não de um culto aos mortos, como em princípio poderíamos supor. Trata-se, isto sim, de um culto aos vivos. Narcisismo elevado à máxima potência. Os sacerdotes incensam apenas a si mesmos.
E quanto à valorização dos povos indígenas? Não mais que apropriação propagandística. Estes, como os povos da floresta em geral, são valorizados apenas para difundir (interna e externamente) a ideia de que o governo, como eles e com eles, vive em harmonia com a natureza. Num momento em que os povos da floresta são considerados portadores de um modo de vida sinônimo de preservação ambiental, convém ao governo e a suas figuras de proa serem identificados com eles, usurpando daí o prestígio que for possível.
Dessa maneira, apresentar as políticas estatais como sendo inspiradas no modo de vida dos povos originários contribui favoravelmente para o governo em pelo menos dois sentidos: 1) funciona como uma espécie de legitimação das políticas estatais, como a dar a elas o selo de ambientalmente benéficas; e 2) oculta que a verdadeira matriz de tais políticas são os cânones do BM e do BID, instituições, sabidamente, responsáveis por assegurar os interesses do capital e dos países centrais (com destaque para os EUA) nos mais diversos rincões do planeta.
A contradição de tudo isso se torna manifesta no fato de haver agentes do governo ensinando os índios a fazerem artesanato, a cuidarem da floresta através do manejo, o que é crédito de carbono e outras coisas que são a mais completa e perversa subversão de suas ancestrais tradições. Poderia haver contradição mais gritante entre a propaganda de afirmação e a prática de negação da questão indígena por parte do governo?
O que ocorre no Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD) – a começar pela sua criação em área reconhecidamente habitada pelos Nukini – é exemplar a esse respeito. Camely traz o relato de um índio Nukini que muito ilumina a situação dos nativos com a criação do Parque:
(...) ocorre que quando foi criado o Parque os Nukini já estavam aqui. Alguns Nukini construíram aqui no Parque uma sede, tinha até uma escola. Era uma organização boa. O Paulo era o cacique na época e aí acusaram ele de traficante, tudo para justificar o que eles iam fazer: veio aqui a Polícia Federal e o IBAMA, chegaram de helicóptero e tocaram fogo na sede, só deu tempo do pessoal sair correndo. Tocaram fogo na moradia dos índios e da sede que funcionava como uma escola. Também queimaram o posto de saúde. A Polícia Federal jogou gasolina e tocou fogo. São 25 famílias Nukini que aqui nasceram e se criaram. Há uma reivindicação nossa de que aqui seja regularizada a nossa terra, porque não existe lugar igual a este. O que ocorre é que agora não se pode mais plantar, não se pode fazer o que fazia antes. Nós nem sabia que isto aqui era Parque, há pouco tempo foi que colocaram esta placa aí de Parque Nacional (CAMELY, 2009).
As palavras do indígena acima mostram que a política ambiental do governo, longe de ser inspirada e contribuir para a preservação do modo de vida dos povos originários, é, em um sentido bem material, sua mais completa negação. Diante de tamanha violência, compreende-se o quanto interessa ao governo lideranças cooptadas e um movimento indígena desmobilizado.
Perspectivas para os próximos anos
A apelação não surtiu o efeito esperado. As autoridades a quem recorreu apoiaram a luta do CIMI em favor dos povos originários ou permitiram que ele a levasse a cabo. Lamentavelmente, nem todas as autoridades católicas pensam em uníssono. E a atuação do CIMI passou a ser minada por dentro da própria Igreja local. Pesa neste sentido a falta de apoio ou mesmo a oposição do Bispo Dom Joaquín Pertíñez.
Inegavelmente zeloso das questões mais litúrgicas e intraeclesiais, Dom Joaquín é politicamente conservador, dispensa pouca atenção às questões sociais e ignora – talvez por completo – a questão indígena. Sem o fundamental apoio dessa autoridade, o CIMI fica praticamente isolado.
Decerto, não se pode dizer que o Bispo apoia ativamente o governo. Mas seu conservadorismo e ignorância criam embaraços para o CIMI. Como se pouco isso fosse, alguns de seus assessores mais próximos são, confessadamente, governistas. Entre outros, esse é o caso do Pe. Mássimo Lombardi.
Dentre outras coisas, o referido clérigo atua como Coordenador das Pastorais Sociais, cargo que exerce sempre condicionado pelo seu incondicionado apoio ao PT e à FPA. Enquanto o CIMI evita participar de eventos e encontros promovidos pelo Governo – para não legitimar projetos que são do interesse do governo e não dos indígenas -, Pe. Mássimo não se faz de rogado. E ainda posa para foto. Com esse simples ato, além de seu apoio pessoal, o sacerdote hipoteca o apoio da Igreja e das pastorais sociais a que representa, entre as quais o CIMI.
Durante as campanhas eleitorais, Tião Viana afirmava que se abria uma nova fase de desenvolvimento para o Acre: o da indústria. Eis aí o que pode lhe servir de justificação ideológica para promover exploração de petróleo, ainda que ao preço de deixar mais expostas as insuficiências e contradições do “desenvolvimento sustentável” que defende.
Tão perceptíveis quanto as insuficiências são as contradições. Alega-se preservação ambiental, mas mercadifica-se a floresta, entregando parte significativa dela às serrarias! Propõem-se a plantação de cana-de-açúcar para a produção de bicombustível, e busca-se, obcecadamente, exploração de petróleo. É possível conceber esquizofrenia mais extremada?
Dizem que o sustentável surge, historicamente, para qualificar aquele tipo de desenvolvimento que se põe na contramão do desenvolvimento que se consolida com a Revolução Industrial, este calcado na exploração irracional dos recursos naturais e na utilização de combustíveis fósseis. Mas no Acre não há diferença entre um e outro. Vê-se que o projeto de desenvolvimento em curso se assemelha à caixa de Pandora. Muitos são os males que dela têm saído. Mas não a esperança.
O declínio da legitimidade da FPA e a “nova etapa do desenvolvimento” do estado apontam-nos para o recrudescimento da situação. Tudo leva a crer que os anos vindouros serão difíceis. E, para o melhor como para o pior, propícios para recompor a resistência. Ou, nas palavras de Mao Tsé-Tung: “Existe um grande caos abaixo do céu – a situação é excelente”.
Considerações Finais
Historicamente, a relação Estado-Movimento Indígena na Amazônia Ocidental foi marcada pelo conflito. O Estado sempre dispensou ao Movimento Indígena exclusão, indiferença, violência etc. A luta dos povos originários por autodeterminação e defesa da identidade e do território sempre encontrou nele impiedoso adversário.
Entretanto, em 1999, com a eleição do governo da FPA, cria-se grande expectativa de mudanças positivas nesse histórico. O Estado seria conduzido por um partido que mantinha relações amistosas com o movimento indígena. É criada a SEPI e também espaços e instâncias em que os nativos poderiam se fazer ouvir.
Pela primeira vez, os indígenas foram encarados como sujeitos e convidados a tomar parte na condução do aparato estatal. Além disso, o referido governo colocou em marcha um modelo de desenvolvimento que dizia ser inspirado no modo de vida dos “povos da floresta”.
Paralelamente, porém, o governo promoveu um intenso processo de cooptação de lideranças indígenas e de desmobilização do movimento. Em função disso, hoje não há mais reivindicação ardorosa e combativa por demarcação de terras. Pouco se protesta contra a conclusão das BRs 364 e 317 e contra a criação de áreas de preservação ambiental que, sabidamente, afetam irreversível e perversamente alguns povos.
Por outro lado, o governo tem promovido estudos e mais estudos sobre a potencialidade econômica das TIs, certamente intentando explorações. E, mais recentemente, ele tem criado as condições para implantar o manejo madeireiro também em TIs.
Por força de tais razões, pode-se dizer que convidar o movimento indígena a tomar parte na estrutura estatal foi uma forma que o governo encontrou de vigiá-lo, desmobilizá-lo, enquadrá-lo.
O pior desses tempos sombrios, entretanto, é que, ainda entre muitos, essa contrarrevolução é celebrada como revolução.
Referências Bibliográficas
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Trata-se de uma versão, um tanto modificada, do trabalho Estado e Movimento Indígena na Amazônia Ocidental: do conflito à conciliação?, apresentado no II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte, realizado entre os dias 13 e 15 de setembro de 2010, Belém (PA). Esse texto faz parte de meu livro Democracia no Acre: notícias de uma ausência, lançado agora em 2014.
Em face dos problemas no estado e da magnitude dos desafios, hoje o CIMI atua no sentido de conseguir aliados em toda a Amazônia brasileira e, ainda, na Amazônia boliviana e na peruana. É nesse sentido que se pode entender o Seminário Internacional Grandes Projetos na Amazônia e seus Impactos, ocorrido em Rio Branco-AC entre os dias 2 e 4/06/2010. Entendemos que essa, mais que uma atitude acertada, é uma atitude necessária. É inconcebível restringir às esferas local, regional e – ou no máximo – nacional, enquanto há muito o capital atua numa escala continental.