quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Funai e sua política de índios ignorados


Por Bárbara Arisi

Imagem capturada do Facebook
A Funai costuma se congratular por realizar uma política indigenista inovadora, propagandeada como sendo única no mundo, destinada a proteger os povos indígenas que vivem em isolamento (ou isolamento voluntário como o movimento indígena prefere referi-los).

A verdade é, porém, que essa política não tem sido efetiva para proteger os “isolados”. Mas tem sido eficaz em ignorá-los e jogar o problema de sua sobrevivência e autonomia para debaixo do tapete.

Os povos indígenas que vivem em isolamento estão em situação de extrema vulnerabilidade e risco, numa floresta que vem sendo devastada por grandes projetos financiados com dinheiro público.

No caso do Vale do Javari, no Amazonas, isso ocorre tanto no lado brasileiro, quanto no peruano da fronteira, além da exposição de ambos a incursões do narcotráfico. Os governos dos dois países não têm políticas de defesa dos interesses indígenas, embora sejam considerados “de esquerda”.

O governo brasileiro tem apenas promovido, de forma assistencialista, mais dependência por parte dos povos indígenas em relação ao Estado. Além disso, os governos de Dilma Rousseff e de Evo Morales, na Bolívia, investem no que vendem como “desenvolvimento” da região às custas da extração de madeira e petróleo, o que vem causando desmatamento, especialmente acelerado no Peru de Ollanta Humala.

No Vale do Javari, rio que divide Peru e Brasil, está localizada a segunda maior terra indígena brasileira, com 8,5 milhões de hectares, próxima à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.

Trata-se de uma vasta área de floresta bastante preservada onde vivem cerca de 5.750 índios que têm contato com os demais brasileiros e também onde se encontra a maior população de índios considerados “isolados” do mundo.

Nesse cenário de extrema beleza natural – onde foram gravados diversos documentários para canais internacionais como National Geographic e BBC – vem sendo travada uma guerra entre dois povos que possuem uma longa história em comum: os Matis e os Korubo.

Ambos os povos são conhecidos internacionalmente e popularizados, graças aos diversos filmes e reportagens feitos a seu respeito.

Os Matis mantém contato com o governo brasileiro desde 1976, quando a Funai auxiliou a Petrobrás a realizar perfurações para avaliar a existência (ou não) de petróleo na região. A frente de atração na época foi de tal forma improvisada que sequer o motor do peque-peque funcionava. Nessa ocasião, estima-se que dois terços da população matis tenha morrido como decorrência do contato.

Em 1996, os Matis aceitaram participar de outra frente de atração, dessa vez destinada a contatar os índios Korubo que viviam próximos ao local onde a Funai planejava instalar um frente de vigilância da terra indígena na confluência dos rios Ituí e Itacoaí, para evitar invasão de caçadores e madeireiros.

Hoje, os Matis e outros povos indígenas trabalham em situação de penúria administrativa de recursos e precariedade, junto a outros servidores do governo brasileiro, nessa frente de proteção, onde também é realizado o atendimento de saúde para o pequeno grupo de índios Korubo contatado em 1996.

O ano de 2016 começou intenso no Vale do Javari. Nessa última semana, o movimento indígena ocupou a sede da Funai no município de Atalaia do Norte e exigiu a renúncia do responsável local, a fim de conseguir o diálogo entre o órgão federal e os índios.

Como é costume, os servidores que estão na ponta do atendimento sofrem as consequências de uma política pública mal planejada e gerida a partir de Brasília, distante das bases.

Os índios Matis querem ser ouvidos pela Funai, sobretudo porque dois homens de seu povo foram mortos pelos isolados em dezembro de 2014, possivelmente ocasionando a morte de outros tantos Korubo que ainda viviam em isolamento.

É hora da política de ignorar os índios voltar a ser aquilo que foi conquistado pelos sertanistas e servidores da Funai em 1987. Uma política que não ignora os índios, mas protege os povos em isolamento. Os Matis querem participar das decisões sobre os vizinhos Korubo, de quem são também parentes.

O movimento indígena pede agora que exista um diálogo efetivo dos servidores de Brasília e das coordenações locais com o movimento indígena. O diálogo parece ser o primeiro passo para o fim de uma política de “índios ignorados”.

Fonte: Carta Capital

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Tratamento de Palestinos por Israel

Tratamento de Palestinos por Israel. 23667.jpeg
O Middle East Monitor apontou que semana passada, separados por mais de 5.000 km, dois acontecimentos quase simultâneos demonstraram porque a imagem internacional de Israel continua célere em sua deterioração

Por José Farhat - Presidente do ICArabe

O Parlamento britânico debatia a questão da detenção de crianças palestinas pelas forças israelenses no Território palestino ocupado, enquanto o Parlamento israelense debatia os meios de barrar o importante crescimento do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). 

Em Westminster o debate considerou minuciosamente a situação atual, inclusive o fato de como as crianças eram detidas dentro de suas casas na calada da noite e as injustiças e discriminações contra as crianças levadas a tribunais militares para serem julgadas. A transferência das crianças dos territórios ocupados para serem julgadas fora dela já é por si um crime de guerra. O debate terminou com aprovação de uma moção considerando que todos os implicados nestes fatos que se encontrarem sob jurisdição britânica sejam detidos e julgados. Até mesmo o chefe da oposição parlamentar exigiu, em nome de seus pares, que "o Governo britânico precisa fazer muito mais para responsabilizar o Governo israelense pelos abusos aos direitos humanos".

Já no Knesset, 150 políticos e ativistas discutiram durante mais de duas horas que medidas deveriam ser tomadas para combater a BDS, por eles considerada uma organização que está cobrindo várias áreas, inclusive as da educação e cultura e a tentativa de restrição das ações das forças armadas e a discriminação de Israel junto a instituições internacionais. 

Aqui entre nós, no Brasil, tivemos uma ideia de como atuam as autoridades israelenses, tentando impor sua vontade absoluta a nossa política e aos acordos internacionais, no episódio da indicação do nome embaixador em nosso país de um indivíduo que habita ilegalmente terra palestina ocupada e reside em território tomado de gente que foi expulsa à força.

Este é, na verdade, o igual comportamento com relação ao BDS, pois as autoridades israelenses não quiseram entender que esta não é uma organização que conte com recursos de monta e sim uma militância respondendo à prática por Israel de colonialismo, ocupação e apartheid. 

Se Israel quiser continuar a aplicar a força e o crime contra os palestinos, eles não sairão ilesos de seu comportamento. Um exemplo que demonstra claramente isto foi dado recentemente pela Igreja Metodista Unida (United Methodist Church), dos Estados Unidos, ao ter vetado cinco bancos israelenses do seu fundo de pensões e estar estudando riscar sete firmas israelenses de sua lista de aplicações. A razão: estes bancos têm um considerável papel no financiamento das colônias israelenses nos territórios palestinos ocupados e as firmas têm suas sedes e indústrias ilegalmente em tais territórios da Palestina.

Chega a ser hilário quando sionistas batem no peito dizendo que têm grande número de portadores do Prêmio Nobel, querendo demonstrar assim sua capacidade intelectual, mas seu governo não tem talento para entender que sua política está prejudicando o próprio futuro do país que constroem em terra que não lhes pertence. 

Desta forma, é de se acreditar que o estoque de 200 ogivas nucleares é também para uma guerra contra crianças de 10 anos. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Comissão de Direitos Humanos alerta sobre violência contra índios no Mato Grosso do Sul

Paulo Pimenta: demora do poder público em homologar as terras indígenas acirra os ânimos na região. Foto: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados
O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), foi ao Mato Grosso do Sul para denunciar casos de violência contra os índios Guarani-Kaiowá e cobrar homologação de terras indígenas.
Junto com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério Público e com o apoio da Polícia Rodoviária Federal, Pimenta visitou nesta semana a Terra Indígena Taquara, no município de Juti, sudoeste do estado.
A área já havia sido palco do assassinato do cacique Marcos Veron, em 2003, e ainda enfrenta frequentes e graves conflitos fundiários envolvendo os Guarani-Kaiowá e seguranças de fazendeiros que também reivindicam a propriedade das terras.
Segundo Paulo Pimenta, os índios denunciaram ameaças de pistoleiros e há risco de agravamento dos casos de violência na região. "Os indígenas denunciam a presença de pistoleiros armados, durante a madrugada e à noite, ameaçando: atiram e assustam as pessoas”, disse o deputado.
“Estamos aqui para denunciar isso, pedir a presença das autoridades e evitar que a violência se repita e que os casos de assassinato, que têm sido tão comuns no Mato Grosso do Sul, continuem ocorrendo impunemente. A presença da comissão tem a finalidade de garantir que não voltarão a ocorrer episódios de violência física e psicológica contra os indígenas", afirmou Pimenta.
Ranking de assassinatos
Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Mato Grosso do Sul lidera o número de assassinatos de índios no País: foram 25 em 2014. A disputa fundiária está na base dessa violência: o estado tem mais de 30 áreas em conflito.
No caso da Terra Indígena Taquara, Pimenta lembrou que a área já havia sido reconhecida pela Funai e pelo Ministério da Justiça, mas fazendeiros recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, posteriormente, remeteu o caso para a Justiça estadual. Novos laudos antropológicos e perícias foram solicitados.
Para o deputado, a demora do poder público em homologar as terras indígenas acirra os ânimos na região. "Todos perdem com a demora nas demarcações. A situação atual traz instabilidade para os investimentos e para a segurança das pessoas", disse Pimenta. "É importante que as pessoas entendam que não é uma fazenda, onde está lá o proprietário. É tudo terra arrendada, com grandes plantações de cana-de-açúcar, grandes plantações de soja. Os proprietários dessas áreas sequer moram no Mato Grosso do Sul”, declarou.
“Há lavouras enormes até de propriedade de multinacionais. E isso leva ao conflito. Tudo isso precisa de uma solução, e essa solução só vai ocorrer na medida que o poder público fizer a sua parte e o processo de homologação das áreas [indígenas] efetivamente acontecer."
Paulo Pimenta calcula que, com apenas 2% da área agricultável do Mato Grosso do Sul, seria possível resolver a demarcação de terras indígenas no estado. Segundo dados citados pelo deputado, cerca 100 mil indígenas de 11 etnias vivem no estado, sendo 45 mil Guarani-Kaiowá.
O deputado continua no Mato Grosso do Sul e pretende visitar outras áreas indígenas em que há conflito com proprietários de terras. Esta é a sexta visita de representantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara ao Mato Grosso do Sul, desde que aumentaram as denúncias de violência contra os Guarani-Kaiowá. No auge dos conflitos, até mesmo a Força Nacional de Segurança chegou a ser acionada.
Audiências públicas também já debateram o tema na Câmara. Por outro lado, a bancada do agronegócio tem denunciado fraudes em laudos antropológicos e investiga supostas irregularidades em demarcações de terras indígenas e quilombolas por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e do Incra.
Reportagem – José Carlos Oliveira
Edição – Pierre Triboli

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A política indigenista do governo federal no ano de 2015: balanço de uma política esvaziada!


Quando decidi, ainda no final do mês de dezembro, escrever esta análise de conjuntura acerca da política indigenista do governo federal, não havia acontecido o cruel assassinato de Vítor Pinto, criança Kaingang de dois anos, degolada enquanto era amamentada por sua mãe na rodoviária de Imbituba, Santa Catarina. O Cimi Sul emitiu uma nota, da qual destaco o seguinte trecho: Vítor faleceu em um local que a família Kaingang imaginava ser seguro. As rodoviárias são espaços frequentemente escolhidos pelos Kaingang para descansar, quando estes se deslocam das aldeias para buscar locais de comercialização de seus produtos. A família de Vítor é originária da Aldeia Kondá, localizada no município de Chapecó, Oeste de Santa Catarina. Trata-se de um crime brutal, um ato covarde, praticado contra uma criança indefesa, que denota a desumanidade e o ódio contra outro ser humano. Um tipo de crime que se sustenta no desejo de banir e exterminar os povos indígenas”. 

Destaco ainda aspecto da nota do Cimi Sul que “manifesta preocupação com o clima de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais. Ocorrem, com certa frequência, manifestações públicas de parlamentares ligados ao latifúndio e ao agronegócio contrários aos direitos dos povos indígenas e que incitam a população contra estes povos. Em todo o país registram-se casos de violência e de intolerância contra indígenas e quilombolas, manifestadas concretamente nas perseguições, nas práticas de discriminação, na expulsão e no assassinato de indígenas. Nestes últimos dias – de 26 a 30 de dezembro de 2015 – pelo menos cinco indígenas foram assassinados no Maranhão, Tocantins, Paraná e Santa Catarina”.
Após esse registro, retomo a análise de uma política que é, em meu sentir, responsável por fatos como os acima relatados. A política, não fossem rastros de violências que ela deixou, poderia defini-la como um imenso vazio. Quase nada se fez, em 2015, no tocante às demarcações de terras, à exceção de sete áreas homologadas, sendo seis no estado do Amazonas, sob as quais não havia conflitos e litígios, e uma área no estado do Pará. Esta última só foi assinada porque se tratava de condicionante imposta para a construção da usina de Belo Monte. No que se refere a outros aspectos da política pode-se, igualmente, constatar a falta de ações estratégicas e de investimentos para a consolidação dos direitos indígenas.
A política indigenista foi, evidentemente, afetada pela crise econômica, jurídica e política que se impôs no Brasil ao longo de todo o ano. As instituições públicas acabaram, em alguma medida, implicadas, uma vez que as principais autoridades do país foram colocadas sob suspeição – presidente da República e seu vice, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público dão conta da existência de um amplo esquema de corrupção, do qual participam centenas de parlamentares e servidores públicos.
Como em anos anteriores, verificou-se em 2015 a omissão do governo federal com a questão indígena, dada a baixíssima execução orçamentária nas ações voltadas para os povos indígenas. Na ação denominada “Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas”, até o início do mês de novembro, dos pouco mais de R$ 18 milhões previstos no orçamento, só foram liquidados pouco mais de R$ 2 milhões e 600 mil. Não foi usado nenhum centavo dos R$ 5 milhões previstos para “Indenização aos atuais possuidores de Títulos das áreas sob Demarcação Indígena”, nem dos R$ 30 milhões previstos para “Indenização para Solução de Conflitos Indígenas”.
A crise gerou insegurança política, jurídica, na governabilidade e afetou drasticamente a economia, impondo, especialmente aos trabalhadores e às camadas mais pobres e vulneráveis da população, a insegurança quanto ao cotidiano da vida, refletida em ameaças de desemprego, preços dos alimentos e dos vestuários em elevação, inflação crescente, o aumento de impostos, a recessão e a precariedade na assistência em educação, saúde e segurança. 
É também a partir deste contexto que se deve avaliar a atuação do governo federal no que tange às políticas para indígenas, quilombolas e outros grupos ou comunidades tradicionais. Com a crise institucional, o governo, que já era omisso no que tange aos direitos indígenas e quilombolas, tornou-se ainda mais omisso. Em função disso, as violências praticadas contra os povos indígenas intensificaram-se em todo o país. Na ausência do poder estatal, a orientação política acabou sendo dada por aqueles setores da economia que ambicionam a exploração das terras. Terras que para os povos indígenas e quilombolas são base de sustentação física e cultural, enquanto que para esses setores são atrativas em função de suas potencialidades, tendo em vista a geração de energia hidráulica, exploração de minérios, expansão da agricultura – especialmente de soja, milho, cana-de-açúcar – e da pecuária.  
As terras indígenas têm sido vistas como uma nova fronteira para a expansão da produção de grãos e de carne e aqueles que as habitam tradicionalmente são considerados entraves, no entendimento dos setores dominantes. Os povos indígenas são vistos como um “problema”, na medida em que atrapalham os planos de expansão produtiva e de um suposto desenvolvimento econômico.
O governo federal, dobrando-se à concepção desenvolvimentista, tomou a decisão de paralisar as demarcações das terras reivindicadas pelos povos ainda no ano de 2013 e manteve-se, em 2015, inoperante.
A ausência do Estado e a falta de regularização das terras são geradores de conflitos e violências, em especial nos estados do nordeste, sudeste e sul do Brasil. De acordo com o Cimi, há 1.044 terras indígenas no Brasil, dentre as quais apenas 361 estão registradas, outras 154 estão “a identificar” e 399 estão classificadas como “sem providências”. A ação política dos ruralistas motiva, fomenta e legitima as mais variadas práticas de violência contra indígenas e quilombolas. No período de 2003 a 2014, foram assassinados no Brasil 754 indígenas, sendo 390 no Mato Grosso do Sul.
No âmbito do Congresso Nacional estão sendo propostos projetos de lei e de emendas à Constituição Federal com o claro objetivo de inviabilizar as demarcações e de possibilitar a exploração dos recursos naturais das áreas homologadas. Só para se ter uma ideia da articulação e da força que se volta contra os povos indígenas no âmbito Legislativo, tramitam na Câmara dos Deputados e Senado Federal mais de 100 proposições que visam alterar artigos concernentes aos direitos indígenas na Constituição Federal.
Dentre as propostas legislativas mais perigosas encontra-se o Projeta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 que visa alterar o texto constitucional para colocar sob responsabilidade do Poder Legislativo as demarcações de terras indígenas no país. O projeto prevê a autorização da esfera legislativa para se promover qualquer demarcação de terra, restringindo a ação administrativa do Poder Executivo. Com isso, todas as demarcações de terras indígenas e quilombolas passariam pelo crivo e aval dos parlamentares e cada demarcação exigiria a aprovação de uma lei específica. Os direitos indígenas, assegurados na Lei Maior do país, estariam suscetíveis aos interesses políticos de ocasião.
Além disso, terras demarcadas ao longo de décadas poderiam ser revisadas, caso a PEC fosse aprovada. A proposta aprovada na Comissão Especial, que segue para o Plenário da Câmara dos Deputados, inclui dispositivos que viabilizariam o arrendamento das terras indígenas – que são bens da União – possibilitando a terceiros a exploração e a obtenção de lucros. Inclui-se ainda outro dispositivo que rompe com a autonomia e o protagonismo dos povos ao restituir a categorização de distintos “estágios de desenvolvimento” e ao apregoar a gradativa inserção dos “índios” na sociedade nacional. Tal dispositivo colide com o disposto no Artigo 231 da Carta Magna, que reconhece aos povos indígenas suas organizações sociais, seus costumes, línguas, crenças e tradições. A proposição sinaliza um retrocesso nas formas como se estabelecem as relações do Estado brasileiro para com os povos indígenas.
Não bastassem os dispositivos inconstitucionais inseridos na PEC 215/2000, há ainda a incorporação das 19 condicionantes que o Supremo Tribunal Federal estabeleceu por ocasião do julgamento da  ação popular que pretendia impugnar o procedimento de demarcação da terra Raposa Serra do Sol, em Roraima, o que, na prática, se constitui num grosseiro equívoco, uma vez que aquela decisão se restringiu à constitucionalidade da demarcação daquela terra e, portanto, não se vincularia aos procedimentos demarcatórios futuros, nem deveria ser generalizada e aplicada a outras.
A PEC 215/2000 também incorpora o que vem sendo denominado, no âmbito do Poder Judiciário, de marco temporal, tese sustentada no julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Isso significa dizer que, se os povos ou comunidades indígenas não estivessem na posse da terra em 1988 ou não estivessem postulando a terra judicialmente ou em disputa física – o chamado renitente esbulho – eles perdem o direito à demarcação de áreas atualmente reivindicadas.
Esta interpretação é mais uma afronta aos direitos originários dos povos indígenas, pois ao impor esta tese descolada da história de resistência dos povos e comunidades indígenas, constitui-se uma grave contradição, impondo aos indígenas uma responsabilidade que não lhes competia antes da Constituição de 1988, qual seja, a de ingressarem em juízo, uma vez que eles eram tutelados pelo Estado. Atualmente, com o fim da tutela expressamente estabelecido em nossa lei maior, o Poder Judiciário não procede ao chamamento dos povos, quando da discussão de processos que lhes dizem respeito. Por isso, é necessário reafirmar que o entendimento dos ministros sobre o tema (renitente esbulho), no contexto da terra Raposa Serra do Sol, serviu para legitimar a demarcação, assegurando a posse indígena sobre terras onde se constituíram fazendas desde o início do século passado.
Muitos julgadores, desde aqueles de primeira instância, têm dificuldade em interpretar adequadamente as garantias expressas na Constituição Federal acerca das diferenças étnicas e culturais. Alguns juízes desconhecem concepções e modos de ser dos povos indígenas, bem como as formas como eles se relacionam com os “bens” materiais, culturais, imemoriais, históricos e com a terra. Os povos estabelecem vinculações ancestrais com seus espaços, são orientados por valores coletivos, pelo pertencimento étnico, pelas distintas religiosidades, ontologias e cosmologias. Por não entenderem estas diferenças, algumas decisões são equivocadas e podem restringir o direito à terra e, consequentemente, comprometer a qualidade de vida destes povos.
Parece-me haver três elementos jurídicos que têm gerado controvérsias nos julgamentos de tribunais referentes às demarcações e que tomam como base o marco temporal: há, nos julgados dos tribunais, insuficiente entendimento conceitual acerca da aplicação do marco temporal nos processos que envolvem a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; há divergências entre os magistrados no tocante aos conceitos de direito indígena à terra – posse, ancestralidade, usufruto e bens da União – em relação a  posse e propriedade oriundos do direito civil; há desconhecimento quanto à aplicabilidade do direito em relação às diferenças étnicas, culturais e ao fato dos povos indígenas terem sido considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos - plenamente capazes (Art. 232 CF/1988).
Infelizmente, no contexto de adversidades econômicas e de crise política, vivida ao longo de 2015 em âmbito nacional, os setores conservadores ligados especialmente ao latifúndio, às mineradoras e ao agronegócio encontraram espaço profícuo para a promoção de uma intensa campanha contra os direitos indígenas e quilombolas. Como resultado, se pode acompanhar uma série de ações violentas contra as comunidades indígenas, suas lideranças e contra os bens indígenas, que são patrimônio da União. Em Mato Grosso do Sul, foi imposta por fazendeiros e parlamentares uma brutal ofensiva –especialmente difundida em meios de comunicação – contra as demarcações de terras. Como consequência, muitas pessoas foram espancadas, ameaçadas, baleadas, assassinadas e comunidades inteiras acabaram submetidas à tortura e perseguição, como ocorreu nas áreas de Kurusu Ambá, Pyelito Kue, Serro Marangatu, Tey Kue, Tey Jusu, Potrero Guassu. No Maranhão, além das violências contra as comunidades e suas lideranças, os madeireiros protagonizaram ações de depredação e crimes ambientais, atendo fogo nas matas da terra indígena Awá Guajá, incêndio que consumiu centenas de milhares de hectares de floresta. Também no Maranhão, na divisa com o estado do Pará, madeireiros sequestraram e torturam dezenas de pessoas do povo Ka’apor e feriram à bala várias lideranças que se opunham à exploração madeireira.
Outra estratégia dos setores contrários aos direitos às demarcações de terras foi o da criminalização dos defensores e apoiadores dos povos indígenas. Em Mato Grosso do Sul parlamentares criaram uma CPI para investigar a atuação do Cimi e promoveram uma intensa campanha de perseguição aos missionários e seus familiares. Em âmbito nacional, foi criada uma CPI para investigar a Funai e o Incra, órgãos responsáveis pela demarcação de terras indígenas e quilombolas. A intenção das bancadas ruralistas – em âmbito estadual e federal – é desqualificar os direitos indígenas e quilombolas e intimidar todos aqueles que lutam pela sua defesa.
Diante desse contexto, como dar segmento às lutas pela garantia dos direitos povos originários e as comunidades tradicionais? Como enfrentar as adversidades, numa conjuntura absolutamente desfavorável à grande maioria da população pobre e excluída de nosso país?
Certamente estes povos e comunidades deverão manter um processo de mobilização pela garantia de seus direitos e convocar os demais setores da sociedade que sofrem a violência da discriminação, da falta de segurança, da falta de políticas que lhes assegurem moradia, saúde, educação, terra e emprego a somarem forças contra o projeto capitalista desenvolvimentista posto em curso em nosso país.
A lógica desenvolvimentista vai de encontro à ideia do bem viver indígena. A primeira apregoa que tudo deve se converter em recurso – ambiental, territorial, humano – e a segunda prioriza a vida. A lógica desenvolvimentista baseia-se na concorrência e incentiva as pessoas a gerir suas vidas como se estivessem gerindo uma empresa, a lógica do bem viver indígena fundamenta-se numa visão de compartilhamento de espaços e de solidariedade entre as pessoas. A lógica desenvolvimentista faz com que vejamos em um rio um potencial de exploração hídrica, enquanto que a lógica do bem viver indígena põe no foco do olhar as possibilidades de interação com o rio e com tudo o que nele habita (incluindo os seres que não podemos ver).
A garantia dos direitos sociais passa necessariamente pela transformação do modelo de sociedade em que vivemos – marcadamente competitiva, individualista e consumista – pois neste modelo dificilmente ganham relevância as lutas mais amplas e nele os coletivos que não regem suas vidas pela lucratividade são vistos como obsoletos. O imediatismo e o individualismo degeneram as condições de vida compartilhada, e nos coloca, a todos, numa condição de insegurança e de instabilidade permanente.
Se temos a oportunidade de vislumbrar um futuro diferente, é porque existem lutas coletivas – de indígenas, de quilombolas, de grupos sociais vinculados na defesa de direitos das comunidades tradicionais, das crianças, das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos chamados “deficientes”. Esses coletivos de luta vislumbram um mundo melhor, acreditam que é possível construirmos uma sociedade na qual se resguardem os direitos de todos.
O bem viver (para todos nós) não pode ser conquistado sem que haja uma radical mudança nas concepções e políticas destes tempos em que vivemos. Precisamos, então, permitir que as concepções indígenas permeiem e reconfigurem as prioridades que temos assumido e as formas como temos lidado com o ser humano, com a terra, lugar comum sem o qual não temos futuro, nem esperança.
Porto Alegre, RS, 06 de janeiro de 2016
Roberto Antonio Liebgott / Cimi Sul - Equipe Porto Alegre.
Fotos: Marcello Casal/Agência Brasil
Tiago Miotto/Cimi
Fábio Nascimento/Mobilização Nacional Indígena

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

As palavras e as coisas: desafios da reforma agrária na Amazônia no 27º ano da morte de Chico Mendes[1]

Israel Souza[2]

Ambientalismo, não; reforma agrária: as palavras certas para nossa luta

Em levantamento recente (início de dezembro), a ONG Global Witness apontou que 78 “ambientalistas” foram mortos no mundo neste ano de 2015 (Ao menos 78 ambientalistas foram assassinados em 2015: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/internacional/1449685932_807960.html). Segundo um porta-voz da ONG britânica, essas pessoas foram assassinadas por “lutarem por seu direito a um ambiente saudável”.
Ainda de acordo com o mesmo levantamento, em todo mundo, entre 2008 e 2012, período de alta dos preços de commodities, o número de mortes passou de 40 para 147 mortes por ano. Em 2015, portanto, tivemos uma diminuição no número de mortes dos “ambientalistas”.
Em 2014, Brasil e Colômbia foram responsáveis por quase 50% desse total de mortes, sendo, por isso, considerados os “piores países para a atuação de ambientalistas”. O Brasil ficou no topo da lista (Brasil lidera mortes de ambientalistas: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-lidera-em-mortes-de-ambientalistas-9896.html. 40% dos mortos são indígenas, vítimas da exploração madeireira, da mineração e das hidrelétricas.
Não entrarei no mérito dos números. Há muito, porém, o que refletir sobre a definição dos que foram assassinados e sobre o motivo de suas mortes. Esse é um claro exemplo em que as palavras não correspondem às coisas.
Em toda essa maneira de falar e interpretar, há uma espécie de invisibilização, de acobertamento da realidade pelas palavras. Para mim, esse é um dos grandes desafios da reforma agrária na Amazônia nestes nossos dias. Precisamos nos valer das palavras certas para falar de nossas lutas e de nossos objetivos.
O levantamento aqui em questão fala de assassinato de “ambientalistas”, de pessoas que morreram lutando por um “ambiente saudável”. Uma expressão plástica como esta sugere que pessoas foram assassinadas por varrerem suas casas e lavarem seus lençóis, pois isso é também zelar por um “ambiente saudável”. Talvez por desinformação, mas não conheço nem um caso de alguém que fora assassinado por isso.
A verdade, porém, é que essas pessoas (referidas naquele levantamento) foram assassinadas por se colocarem contra os madeireiros, empreiteiros, mineradores e latifundiários. Foram assassinadas por lutarem por suas terras, seus territórios. Numa palavra: estas pessoas foram vítimas de conflitos agrários.
Não por acaso, a maioria dos mortos era de indígenas e posseiros, pessoas que, mesmo quando têm seus direitos reconhecidos pela lei, não os têm respeitados na prática.
Se tratamos tudo isso como “luta ambientalista”:

1) encobrimos a realidade, borramos importantes diferenças entre práticas e lutas distintas, e findamos por romantizar a tragédia;
2) não conseguimos verbalizar e mostrar para os outros nossas dores, nossos sonhos e lutas. É como se lutássemos no escuro e em silêncio. Ninguém nos vê ou entende. Isso não é coisa de pouca monta. Cabe lembrar que os avanços que a luta dos seringueiros obteve, sob a liderança de Chico Mendes, se deveu ao fato de ter rompido o cerco, de ter comunicado ao mundo sua luta. Se sua luta tivesse se restringido ao Acre, aqui mesmo ela teria sido silenciada e hoje, no mundo e mesmo na capital Rio Branco (AC), provavelmente poucos saberiam quem foi Chico Mendes;
3) usamos a linguagem de nossos inimigos. Assim sendo, é como se nossos inimigos falassem por nossas bocas. As palavras que sairiam de nossas bocas não seriam nossas, e sim deles. Nossa língua contaria, não nossa história, mas a história deles, do ponto de vista e dos interesses deles. Ao fazer isso, usar a linguagem de nossos inimigos, estamos nos rendendo e dando mais forças a eles, pois assumimos a visão que eles têm das coisas.
Por isso é que, sob o manto do “ambientalismo”, eles vêm sufocando o que realmente está em jogo: a luta por terras e territórios com todas as riquezas (materiais e imateriais) que eles encerram. Uma luta demasiado antiga e, não obstante, atualíssima. É o contínuo avanço do capital para se interpor entre o homem e a natureza, buscando lucrar sobre as duas fontes de riqueza: o trabalho e a natureza. De um lado, os que precisam do território para sobreviver. De outro, aqueles que querem lançar mão deles apenas aumentar suas fortunas.
Os primeiros não lutam apenas por quererem “um ambiente saudável”. Isso conta, obviamente. Mas lutam, sobretudo, porque disso depende sua sobrevivência física e cultural. Os últimos não afrontam os direitos desses a seus territórios por não quererem um ambiente saudável, mas porque querem suas riquezas.

O ambientalismo dos governos federal e local

Para termos clareza quanto a isso, vejamos a retórica e a prática dos governos federal e local. Comecemos lembrando que o governo federal alardeava que seria liderança na COP21 (conferência sobre o clima que ocorreu recentemente em Paris), uma espécie de guia para os outros países a respeito do que fazer em tempos de “crise ambiental” e “mudanças climáticas”. Ocorre que, dos anos de chumbo para cá, o governo Dilma foi o que menos realizou assentamentos e reconheceu Terras Indígenas e quilombolas. E ainda. Até meados de dezembro de 2015, o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da CPT, registrou o maior número de assassinatos no campo desde 2004 (NOTA PÚBLICA: O momento político atual e a surdez do governo Dilma: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/destaque/3040-nota-publica-o-momento-politico-atual-e-a-surdez-do-governo-dilma). Foram 46. Não por acaso, 44 destes foram na Amazônia, região com vastos e ricos territórios.
Segundo o já citado levantamento da Global Witness, tivemos, em todo o mundo, uma diminuição no número de mortes de “ambientalistas” em 2015. No Brasil, porém, seguimos na contramão. Aqui, aumentou o número daqueles que lutam por seus territórios e contra o avanço do capital sobre a natureza. E a culpa por isso recai, maiormente, sobre as costas do governo.
É consabido que, onde as populações locais têm efetivamente seus direitos territoriais assegurados, a depredação da natureza é barrada. No entanto, o governo federal segue numa linha de favorecimento a atividades sabidamente danosas à natureza, como construção de hidrelétricas, mineração e agronegócio. Kátia Abreu, rainha do agronegócio e inimiga declarada de populações locais, é ministra e, segundo dizem (as boas e as más línguas), uma das melhores amigas da presidente.
Por tudo isso, não causa estranheza que, sob este governo, por sua ação e inação, campeie o genocídio de indígenas no Mato Grosso do Sul e sejam forjados a PEC 215, o Novo Código de Mineração, a modificação do conceito de trabalho escravo, fragilização e enquadramento de órgãos fiscalizadores, aceleração e deturpação de licenciamentos ambientais, bem como as CPIs da FUNAI e do INCRA (em Brasília) e do CIMI (em Mato Grosso do Sul).
Seguindo a mesma lógica do Novo Código Florestal, o conjunto de tudo isso procura assegurar o acesso do capital aos mais diversos e ricos territórios, fragiliza os direitos territoriais das populações locais e criminaliza todos aqueles que ousem se levantar contra essa ordem de coisas.
Por seu turno, para justificar sua política de “desenvolvimento sustentável”, o governo local se apropriou da figura de Chico Mendes e se fortaleceu dividindo o movimento dos trabalhadores rurais, cooptando uma parte e isolando a outra[3]. Como sabemos esta é uma política que, sob a justificativa de preservação ambiental, tem favorecido grandes madeireiras (todas de fora), algumas ONGs e o próprio governo, através de financiamento externo.
O Estado vai se afundando num “círculo vicioso da dívida pública”. Os empréstimos são vultosos. E nós nunca vemos seus benefícios. Sequer sabemos onde foram investidos. Todavia, para pagá-los, o governo usa a floresta e os tais manejos sustentáveis. Sob este governo, que já vai contar 20 anos usando a abusando da figura de Chico Mendes, os índios tiveram o processo de demarcação de suas terras paralisado. Muitos agentes governamentais e ongueiros vão até eles, tentando convencê-los a aceitar políticas de crédito de carbono. Prometem milhões para isso.
Por outro lado, quem aceita o manejo pode derrubar centenas e até milhares de ha de florestas. Enquanto os outros, a maioria, não pode nem cortar uma árvore para uso doméstico, como construir casa, cercar o terreno e coisas assim.
Sabemos que não apenas isso. Caçar e colocar roçado para comer virou crime. Pode dar multas impagáveis e cadeia. Para citar apenas um caso: sabemos daquele seringueiro que, por cortar 5 árvores para uso doméstico, recebeu um multa de mais de 300 mil reais.  
Sob a política do “desenvolvimento sustentável”, os inimigos da floresta foram transformados em heróis; e os amigos da floresta, aqueles que efetivamente cuidam dela, foram transformados em bandidos, criminosos.
Dizendo estar realizando o sonho de Chico Mendes, que foi transformado em “ambientalista”, o governo local diz que todos (madeireiros, índios, empresários, seringueiros, posseiros etc.) estão unidos pela preservação da floresta. Segundo ele, já não há problemas com a reforma agrária. Não há mais luta pela terra. Quanto a isso, ainda de acordo com o governo, estão todos satisfeitos. A preocupação de todos é ambiental, e não agrária. E assim, mais uma vez, o ambientalismo encobre nossa luta, justifica a opressão e a exploração.
Como depende de propaganda enganosa a respeito desse modelo de desenvolvimento para atrair investidores e assegurar empréstimos, é imperativo para o governo silenciar qualquer reivindicação pela terra, pois isso mostraria que os problemas agrários não foram resolvidos. Ao contrário. Vêm até se agravando por força de sua política de desenvolvimento sustentável.
É necessário reafirmar nossa luta e seu sentido. Ter claro que Chico Mendes não era ambientalista, e, se o fosse, no sentido que o governo local propala, não teria sido assassinado. Chico era seringueiro e socialista. Lutava pela reforma agrária e contra o capital, e por isso foi morto. Foi sagaz ao perceber que, naquele momento, as pessoas não se importavam com a dor dos seringueiros. Mas, se falassem em proteção da floresta amazônica, iam se interessar. Isso já serviu. Não serve mais. É uma armadilha. Devemos nos desvencilhar dela.
Pela visão ambiental, eles falam em proteger a floresta. Mas proteger de quem? De nós, que sempre a protegemos, e hoje somos tratados como criminosos. Pela visão ambiental, eles falam em proteger a floresta. Mas proteger para quem? Para aqueles como os madeireiros, que sempre destruíram (e destroem) a floresta, mas têm capital, e, por isso, são amigos e patrões do governo.
            Por isso há que se dizer que, mais que um país perigoso para a atuação de ambientalistas, o Brasil é perigoso para quem defende a reforma agrária. Aqui, no Acre, a maioria dos ambientalistas (e suas ONGs) está irmanada com o governo no intuito de expropriar as comunidades locais e garantir que o capital tenha acesso irrestrito a seus territórios e riquezas. Aqui, o maior risco que a maioria dos ambientalistas corre é ser bem remunerada pelo governo e pelos capitalistas por seus prestimosos serviços.

Saber pelo quê e por quem lutar

A polarização política que marca a atual conjuntura torna nossos desafios ainda maiores. Muitos têm sucumbido a ela. No último dia 16/12/15, indígenas tomaram o Congresso contra a PEC 215 e contra Cunha, mas a favor da Dilma, por incrível que pareça.
Sim. Também eles, que vêm sofrendo miseravelmente pelo abandono e pela violência, saíram em defesa da presidenta, tratando o impeachment “como golpe”. Deixaram-se enredar na luta entre governo e oposição, e tomaram as dores do governo, mesmo sem nada a ganhar de ambas as partes.
Quanto a isso, o caso do MST é ainda mais curioso e trágico. Sistematicamente, tem saído em defesa de Dilma, mesmo que ela venha conduzindo o pior governo para a reforma agrária, considerando governos militares e mesmo os do PSDB.
Será que o movimento leva isso em consideração quando sai pelas ruas em “defesa da democracia”? Será que deixou de compreender que, num país em que a concentração de terra é colossal, a reforma agrária é um componente indispensável da questão democrática? Não sei. Mas, pelo que vemos, hoje, para o maior movimento de luta pela terra da história brasileira, a manutenção do governo lhe parece mais importante que sua causa (a reforma agrária).
Precisamos vencer este desafio de entender que a causa do governo não é a nossa. PT e PSDB não são esquerda e direita, um defendendo os explorados e o outro, os exploradores. Tais partidos não são senão as “alas vermelha e azul da direita brasileira”. Ambos são golpistas. A polarização que protagonizam apenas expressa a miséria política por que ora passamos, bem como a confusão que se abateu sobre as forças populares.
É preciso abandonar, e de vez, o medo de a “direita voltar ao poder central”. Ela nunca saiu de lá. E só ganhou com os governos do PT. Ganhou mais partidos e defensores para suas causas.
Os desafios da Amazônia neste 27° ano da morte de Chico Mendes são os desafios que ele enfrentou em vida: os desafios da reforma agrária. Dentre outras coisas, para sermos exitosos nesta luta devemos assumir com clareza nossos objetivos, abandonar a linguagem e a visão de nossos inimigos; devemos evitar as ilusões para com o Estado, governos e partidos. A luta pela Amazônia é a luta da reforma agrária. A luta pela reforma agrária não pode deixar de ser contra o capital e todas as suas personificações e serviçais.



[1] O presente texto é uma síntese da palestra que proferi na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na cidade natal de Chico Mendes (Xapuri), em22/12/15, em razão do 27º ano de sua morte. Embora traga no título uma referência a um conhecido livro de Foucault, a abordagem é bem outra.
[2] Cientista Social com habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[3] Dois eventos foram realizados em locais vizinhos, em Xapuri, em razão do 27° ano da morte de Chico Mendes. Um deles, ocorrido na sede do sindicato, falava de um Chico militante da reforma agrária, tratava dos desafios da reforma agrária, da expulsão de posseiros que vem ocorrendo, dos desmatamentos, da repressão de órgãos como Ibama e ICMbio etc. O outro, ocorrido no salão paroquial, bem ao lado, falava de um Chico ambientalista cujos sonhos haviam se concretizado e exaltava a política de desenvolvimento do governo local, calcada na exploração madeireira.