RESUMO
O presente trabalho pretende apresentar uma
rápida análise sobre as violações de direitos dos povos originários,
notadamente os que habitam a região onde se encontra o estado do Acre, na
perspectiva do acesso à justiça em Cappelletti tendo como pano de fundo o
programa REDD EARLY MOVERS (REM) implementado naquele estado. Abordaremos o
REM como parte de um grande conjunto de mecanismos como REDD + contidos na
Economia Verde por meio da mercantilização e Financeirização
da natureza.
PALAVRAS CHAVES: Povos Originários, Acesso à Justiça, REDD, Economia
Verde.
I.
INTRODUÇÃO
A inclusão de REDD+ como instrumento de
proteção florestal e climática, aparece nas negociações sobre o clima a partir
de 2005. REDD é uma sigla em inglês para designar Reducing Emissions from
Deforestation and Forest Degradation ou Redução das Emissões por Desmatamento e
Degradação florestal em português.
Como se vê, a intenção, a olhos pouco atentos,
pode parecer excelente já que se propõe a diminuir as emissões de gazes de
efeito estufa, notadamente o CO2 e ao mesmo tempo conter o desmatamento. Este é
o ponto central dos críticos deste mecanismo e outros oriundos deste como PSA
(Pagamentos por Serviços Ambientais) e o Redd Early Movers (REM), mecanismo que
nos propomos apresentar neste texto a partir de uma perspectiva crítica frente
aos direitos dos povos originários.
Portanto, o REM é o mesmo que REDD+, só que aplicado
jurisdicionalmente. Ou seja, em todo o território do estado em questão. No
nosso caso, o estado do Acre. Apresentamos neste trabalho as críticas e
contradições deste programa especialmente por incidir sobre territórios
indígenas, o que fere a Constituição Federal em seu artigo 231 que define
terras indígenas como de usufruto exclusivo dos povos que nelas habitam e ainda
o que preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT,
da qual o Brasil é signatário.
Apresentaremos o REM com suas definições e propostas para
em seguida apresentar os pontos conflitantes com a legislação brasileira atual
e limites ao acesso à justiça e ao final, apontarmos as consequências deste
tipo de programa para os povos originários bem como as violações de direitos
decorrentes deste programa considerando sua implantação no estado do Acre. A
utilização deste mecanismo além de violar direitos, dificulta, quando não
impede, o acesso à justiça.
Pelo óbvio que, dado que se trata de um tema por demais
extenso, não pretendemos apresentar soluções muito menos trata-lo com a
profundidade que merece. Nossa intenção ao final é apenas realizar apontamentos
com base em experiências vividas e em estudos realizados por diversas
organizações e pesquisadores. Muito há que se refletir e desejamos a todas e todos
uma ponta de reflexão a partir deste trabalho.
II.
REDD
EARLY MOVERS (REM) NO ACRE
O REM só se difere do programa de REDD+ por
recair sobre todo o território de um determinado estado, no nosso caso, o
estado do Acre. É uma forma de burlar a legislação para aplicar o REDD em
terras indígenas, uma vez que a Constituição veta este tipo de programa, salvo
quando de interesse nacional, cabendo aos índios o usufruto exclusivo sobre
seus bens e riquezas. (BRASIL, Constituição Federal, 1988, artigo 231, § 2º)
REM é um programa piloto por meio do qual o governo alemão destina
recursos para estados que começaram antes que outros com a implementação do
chamado REDD+ jurisdicional. É um programa baseado na suposta redução das
emissões de carbono em toda a jurisdição estadual, como o estado do Acre.
(KILL, 2018, P. 1).
Kill fala em “suposta redução” por considerar este
mecanismo uma falsa solução. Portanto, além de violar direitos dos povos
originários, este mecanismo não é capaz de cumprir o que se propõe. Estes são
os dois pontos chaves que nos propomos a detalhar melhor oportunamente: viola
direitos e não soluciona o problema ambiental.
Uma publicação de
2012 do Ministério do Desenvolvimento e Cooperação da Alemanha analisado por
Jutta Kill, descreve a abordagem do governo daquele país ao REDD, o que definiu
o programa REDD Early Movers:
O REDD é um mecanismo de conservação florestal
baseado em desempenho, que visa reduzir em muito os gases de efeito estufa em
países emergentes e em desenvolvimento; planeja pagar uma compensação por
reduções mensuráveis e verificáveis nas emissões de CO2. (KILL, 2018, P. 2).
O mesmo documento explica que o REDD se baseia em uma “abordagem
trifásica” que foi adotada na conferência climática da ONU em Cancún, México,
em 2010. Como vimos anteriormente, a inclusão de REDD+ como instrumento de proteção
florestal e climática, aparece nas negociações sobre o clima a partir de 2005.
Logo, o REM tem um período de gestação mínimo de cinco anos. Interessante notar
que a lei 2.308 do Estado do Acre, foi promulgada
justamente em 22 de outubro de 2010. Falaremos mais a frente sobre esta lei.
Aspectos legais, por meio de criação de leis, que violam
direitos dos povos originários têm sido comuns, mas voltaremos ao tema das
violações no capítulo posterior onde também trataremos do acesso à justiça
propriamente dito. Por hora sigamos apresentando o programa REM no Acre.
O governo alemão, também em documento oficial escreve que:
O REM está voltado aos pioneiros. São atores que
tomaram a iniciativa já no início e estão trabalhando na criação das condições
necessárias para receber financiamento de carbono no âmbito do programa de
REDD. (KILL,
2018, P. 3).
A primeira
jurisdição aceita no programa REDD Early Movers foi o estado do Acre. O KfW e o
Ministério do Desenvolvimento e Cooperação da Alemanha sempre descreveram o
REDD Early Movers como um programa que fornece financiamento transitório para
essa terceira fase do REDD, porque as negociações da ONU estavam avançando mais
devagar do que o esperado inicialmente.
O
financiamento do setor privado para essa terceira fase também continuava
difícil, de forma que os financiadores, como o governo alemão, através do KfW,
entraram em cena para fornecer fundos públicos como financiamento provisório ou
transitório e ajudar a criar uma espécie justificativa conceitual. Durante as
negociações do REDD, eles sempre afirmaram que, segundo a opinião do governo
alemão, os fundos públicos não serão suficientes e o REDD deve ser um mecanismo
que também sirva para atrair financiamento do setor privado.
O Estado do
Acre, portanto, ao se abrir ao REDD jurisdicional, ou REM, está em última
instância, abrindo seu território, notadamente as áreas ainda preservadas, ao
capital privado. Fato que o governo nega peremptoriamente até hoje, mesmo com
diversas críticas apresentadas por especialistas, como é o caso de Jutta Kill,
do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, do
Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais e várias outras organizações e
pesquisadores.
Uma análise
do histórico do REDD e do contexto das negociações climáticas da ONU sobre o
REDD+ mostra claramente que o primeiro foi desenvolvido como um mecanismo que
paga por reduções verificadas no fluxo de emissões entre o “estoque” de carbono
na floresta e a atmosfera. O SISA e, segundo (KILL, 2018 P. 5), e
em particular o programa REM
financiado pelo KfW, baseiam-se em um modelo que paga não só pela redução
verificada do fluxo de emissões da floresta para a atmosfera, mas também pela
manutenção do estoque de carbono.
Esta
característica de “manutenção de estoque” é bastante peculiar ao REM aplicado
ao Estado do Acre. Significa que, mesmo ainda não negociando em bolsas com os
créditos de carbono, o KFW mantém um estoque impressionante e tão logo estes
créditos venham a ter alto valor no mercado, seguramente serão utilizados.
Mas os
pagamentos simplesmente por manter a floresta como estoque de carbono não são
coerentes com o REDD na forma negociada na ONU nem com instrumentos de
financiamento elaborados para o REDD: o REDD é construído com base em
incentivos financeiros para reduzir emissões ou, no caso do REDD jurisdicional,
visa mostrar que as emissões planejadas foram evitadas como resultado de
programas governamentais que contribuem para que o governo obtenha uma redução
na taxa de desmatamento. É por isso que todos os governos dos países do Sul
global que têm terras florestais significativas, no contexto do REDD,
estabeleceram metas para reduzir o desmatamento (e não para manter a floresta).
Estranhamente
o REM no Acre não visa evitar ou reduzir as emissões por meio do mecanismo de
REDD, mas sim, apenas manter os estoques. Estoques que, no caso dos povos
indígenas, são resultantes de séculos de conservação e preservação. Ao
transferir esses estoques a governos ou a iniciativa privada, o governo do Acre
através do REM viola o que preconiza a Constituição Federal em seus artigos 231
e 232.
É somente
através dessa estrutura incomum de pagamento, que inclui pagamentos por manter
o “estoque de carbono” em lugares onde não há risco de o carbono fluir para a
atmosfera que o financiamento do REM no Acre foi disponibilizado para financiar
atividades em Terras Indígenas. Esses pagamentos são feitos a atividades em
áreas onde não há risco imediato de desmatamento e para as quais o governo do
Acre não pode mostrar uma redução verificada do fluxo de carbono para a
atmosfera porque não havia risco de tal fluxo acontecer: os povos indígenas
vinham mantendo a floresta dentro do seu território demarcado. Os pagamentos
são feitos para recompensar a conservação do estoque de carbono, e não para
reduzir o fluxo de carbono para a atmosfera, conforme sugerido pela primeira
letra na sigla REDD, que significa “Redução”.
Sobre este
aspecto Jutta Kill destaca que:
Do ponto de vista da justiça, esses pagamentos
podem ser louváveis. Aliás, o REDD+ tem sido criticado por muitas organizações
da sociedade civil desde o início como um mecanismo que proporciona um
incentivo perverso ao oferecer dinheiro àqueles que representam riscos para a
floresta (que planejavam destruir a floresta e liberar emissões), mas não aos
que sempre a protegeram. Assim, a decisão do programa do REDD Early Movers, do
KfW, de permitir pagamentos por atividades em locais onde não há risco de
desmatamento é louvável sob a perspectiva da justiça, e provavelmente também
foi essencial para criar uma “licença social para operar” e evitar a oposição à
implementação do REM no Acre. (KILL, 2018 P. 5).
Sim por um lado, o REDD oferece dinheiro para quem polui
e ameaça o meio ambiente, por outro, o mecanismo de REM peca por considerar
justamente os que mais conservam a natureza como potenciais destruidores.
Também a “injustiça” se manifesta no fato de o REM ser realizado diretamente
entre o governo do Acre e o banco alemão KFW, sem contudo considerar o valor da
natureza em si mesmo e as comunidades como sendo detentoras de saberes
tradicionais capazes de realizar o usufruto sem comprometer a natureza e os
demais recursos, incluindo seus recursos culturais e medicinais. A perspectiva
da justiça sinalizada por Kill é mais uma farsa do programa REM porque em nada
tem a ver com a verdade da história desses povos e não os considera como
sujeitos de direitos.
O programa REDD Early Movers se baseia na mesma
abordagem do Fundo de Carbono do FCPF: enquanto o governo alemão – inclusive
para não parecer estar prejudicando as negociações climáticas internacionais –
não solicita créditos ou “compensações” de carbono em troca dos “pagamentos
baseados em resultados” que faz ao estado do Acre, 30% do financiamento do REM
são usados para operacionalizar o SISA e, em particular, seu programa
ISA-Carbono. O ISA-Carbono, por sua vez, é uma estrutura destinada a gerar
pagamentos... (KILL, 2018, P. 5).
Para entendermos como isso funciona na prática no Estado
do Acre, vale a pena ler e estudar a análise da cartilha do governo do
estado do Acre intitulada: “Serviços Ambientais, Incentivos para a sua
conservação. SISA: dialogando com os Povos Indígenas”, produzida
pelo Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais (IMC). A
análise da cartilha foi elaborado por Winnie Overbeek e de pronto nos salta aos
olhos uma observação:
Além do IMC, a Cartilha foi uma realização da
Assessoria de Assuntos Indígenas do gabinete do governador do Acre, Tião Viana,
e da ONG Norte americana Forest Trends. O apoio para a publicação vem do banco
alemão de desenvolvimento KfW, do organismo de cooperação técnica alemã GIZ, do
fundo da multinacional mineradora VALE e da ONG internacional conservacionista
WWF. (OVERBEEK, 2013, p. 37).
Um banco Alemão (KFW), uma mineradora (VALE) Governo do
Acre, ONGs internacionais e assessoria indígena se juntaram para a publicação
de uma cartilha, com o intuito apenas de orientar a população indígena sobre
Serviços Ambientais? Relembramos que a Forest Trends é uma ONG que assessora o
Governo do Acre justamente na área de mercado de carbono. Se a ação do KFW no Acre
é apenas “doação” seria correto deduzirmos também que a Forest Trends e a Vale
também estão fazendo sua parte nesta espetacular doação? Claro que não. Bancos
e mineradoras visam lucro e as ONGs que delas dependem só as defendem
justamente por dependerem inclusive para custeio de salários.
Imaginar que o Banco de desenvolvimento da
Alemanha faz caridade com o Acre e simplesmente o premeia é mesmo uma
demonstração de imensa crença no amor à humanidade da parte do sistema
financeiro. Nós não cremos nisso. De outro lado, “redução na emissão de
gases de efeito estufa por desmatamento e degradação florestal” é exatamente a definição
de REDD. Se esta redução não mantém vínculo com as terras indígenas e nem com
as unidades de conservação, onde está sendo feita então? Nas cidades? É sabido
e notório que as terras indígenas e as unidades de conservação são as áreas
naturalmente mais preservadas. Se excluirmos as unidades de conservação e as
terras indígenas, o que sobrará para o REDD ou REM acreano? Nada. REM no Acre
então, é mera ficção.
III.
REM
COMO VIOLAÇÂO DE DIREITOS – Limites ao acesso à justiça.
A Constituição Federal
brasileira (CF), em seu artigo 231 garante aos povos indígenas o direito ao
território. Segundo esta mesma constituição todos os territórios indígenas
deveriam ser demarcados até o ano de 1994. Entretanto, como já vimos essa
determinação jamais foi observada e, consequentemente muitos dos povos
indígenas permanecem sem a devida regularização de seus territórios. Vejamos o
que diz a Constituição sobre o direito dos povos originários, notadamente o
direito ao território e à consulta:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo
das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (...)
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de
suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de
catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da
soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em
qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos
jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das
terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse
público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a
nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo,
na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
(BRASIL, Constituição 1998)
A simples não observância da
Constituição Federal, por si só, já representa gravíssima violação de direitos
desses povos originários e, claro, limites ao acesso à justiça. Claro que
estamos falando de direitos ainda fundamentais. Se não há garantia dos direitos
fundamentais aos povos originários, certamente não há do que se falar em acesso
à justiça porque evidentemente acessar a justiça pressupõe a aceitação e
reconhecimento de tais direitos. É preciso que nos empenhemos no sentido de
localizar os pontos onde estes direitos estão sendo negados ou mesmo negligenciados.
Para tanto, vale vislumbrar os obstáculos, conforme identifica e aponta
Cappelletti:
(...) quantos dos obstáculos ao acesso efetivo à
justiça podem e devem ser atacados? A identificação desses obstáculos,
consequentemente, é a primeira tarefa a ser cumprida. (CAPPELLETTI, 1998, p.
6).
Identifica-se também, no
caso do Acre, como obstáculo ao acesso à justiça. A elaboração de legislação
que visa burlar as normas constitucionais e decretos federais, bem como
tratados internacionais. O caso mais eloquente produzido pelo governo do Acre
foi a Lei 2.308/2010, conhecida como lei SISA que diz, entre outras coisas:
Cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços
Ambientais - SISA, o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais - ISA Carbono
e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos do Estado
do Acre e dá outras providências.
Art. 1º Fica criado o Sistema Estadual de
Incentivos a Serviços Ambientais - SISA, com o objetivo de fomentar a
manutenção e a ampliação da oferta dos seguintes serviços e produtos
ecossistêmicos:
I - o sequestro, a conservação, a manutenção e o
aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono;
II - a conservação da beleza cênica natural;
III - a conservação da sociobiodiversidade;
IV - a conservação das águas e dos serviços
hídricos;
V - a regulação do clima;
VI - a valorização cultural e do conhecimento
tradicional ecossistêmico; e
VII - a conservação e o melhoramento do solo.
(ACRE, Lei 2308/2010 – grifo nosso).
A lei SISA, do Estado do Acre é, pois um grande exemplo
de lei que desrespeita leis e normas federais e até tratados internacionais,
como observamos. Alguns aspectos são particularmente preocupantes nessa lei. Um
deles é que prevê legislar sobre territórios públicos federais, como as terras
indígenas, reservas extrativistas e áreas de preservação. Outro aspecto é que
foi elaborada sem nenhum debate público e prevê ações nas terras indígenas, por
exemplo, sem que haja consulta prévia, instrumento internacional fruto de
acordos que visam justamente garantir os direitos e, claro, orientar os países
e favorecerem o acesso a estes direitos.
Ademais o
Brasil, é signatário entre outras, da convenção 169 da OIT – Organização
Internacional do Trabalho e, portanto, tal convenção tem poder de lei e deve
ser assim aplicada internamente. Ou seja, a convenção faz parte do conjunto das
normas e leis do brasil. Então vejamos o que diz a convenção sobre direito à
consulta prévia, livre e informada em seu artigo 6º:
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção,
os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante
procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições
representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b)
estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar
livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em
todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos
administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas
que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno
desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos
apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta
Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às
circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o
consentimento acerca das medidas propostas. (CONVEÇÃO 169, OIT 1989- grifo
nosso).
Como pudemos constatar, além de não
respeitar o que preconiza a carta maior brasileira, mecanismos como REM
desrespeitam instrumentos internacionais e alteram as constituições estaduais
(no nosso caso a do estado do Acre) para que possam ser implementados e assim
satisfaçam aos interesses do capital numa clara ameaça a soberania nacional e
fere de morte o usufruto exclusivo dos povos originários dos bens existentes
sobre os seus territórios. Neste sentido já observava Cappelletti que:
Atriste constatação é que, tanto em países de
common law, como em países de sistema continental europeu, as instituições governamentais
que, em virtude de sua tradição, deveriam proteger o interesse público, são por
sua própria natureza incapazes de fazê-lo. O Ministério Público dos sistemas
continentais e as instituições análogas, incluindo o Staatsanwalt alemão e a
Proleuratura soviética, estão inerentemente vinculados a papéis tradicionais
restritos e não são capazes de assumir, por inteiro, a defesa dos interesses
difusos recentemente surgidos. Eles são amiúde sujeitos a pressão política —
uma grande fraqueza, se considerarmos que os interesses difusos,
frequentemente, devem ser afirmados contra entidades governamentais. (CAPPELLETTI,
1998, p.19 – Grifo nosso).
É exatamente essa pressão política a que se
refere Cappelletti, somada às pressões econômicas, no caso do REM no Acre, que determinam
as violações de direitos e impossibilitam que os povos originários tenham
acesso à justiça. O Ministério Público Federal, que no caso dos povos
originários é o responsável para acompanhar os processos, também possui limites
que no caso do Acre se tornam ainda mais evidentes como por exemplo a falta de
recursos humanos, as longas distâncias e a acessibilidade às comunidades. Tudo
isso concorre para que o REM seja implementado sem o devido respeito aos
direitos desses povos. Neste contexto, não há que se falar efetivamente em
direitos por força mesmo do que também observa Cappelletti:
Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo
crescentemente aceito como um direito social básico nas modernas sociedades, o
conceito de “efetividade” é, por si só, algo vago. A efetividade perfeita, no
contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa
“igualdade de armas” (CAPPELLETTI,1998, p. 6)
A ausência de
consulta prévia, livre e informada, prevista na convenção 169 da OIT, é clara
demonstração de que não “igualdade de armas”. Os povos originários não se
encontram em condição de, digamos, negociar no mercado internacional e por isso
ficam a mercê do estado para que os seus direitos e o acesso efetivo à justiça
se consolide. Não tendo o estado do Acre e nem o Estado Nacional interesse de
que estes povos tenham seus direitos efetivados, tanto mais por isso seus
territórios ficam abertos e livres para iniciativas como os mecanismos de REDD
e REM.
É evidente que os povos originários
não possuem as condições para realizarem este tipo de enfrentamento. Se por um
lado se encontram em locais de difícil acesso e em franca desvantagem em
relação à sua capacidade de articular para enfrentar o mercado, de outro, o mercado
com claros interesses no que há nesses territórios, conta além do apoio
explícito de órgãos governamentais com vasto poder aquisitivo. E ai, mais uma
vez valemo-nos das observações de Cappelletti:
Pessoas ou organizações que possuam recursos
financeiros consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou
defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para litigar. Podem,
além disso, suportar as delongas do litígio. Cada uma dessas capacidades, em
mãos de uma única das partes, pode ser uma arma poderosa (CAPPELLETTI, 1998, p.
7).
Evidentemente
salta-nos aos olhos a superioridade financeira dos interessados na efetivação
de programas vinculados ao ISA Carbono, caso de REDD e REM sobre os povos
originários. Se os povos originários possuíssem recursos significativos
poderiam, por exemplo custear o grupo de trabalho para realizar estudos em
vistas a demarcação de seus territórios. Os territórios tradicionais, pois, não
são demarcados porque há interesses de setores (inclusive internacionais)
financeiros sobre seus territórios e bens naturais ali existentes de um lado e,
de outro lado os povos não possuem recursos necessários para demandar contra
estes interesses. Vejamos o que diz Kill quanto ao financiamento:
O governo alemão também é um dos maiores
financiadores do Fundo de Parceria Florestal do Banco Mundial (FCPF, na sigla
em inglês). Há financiamento para duas fases: uma fase de preparação ou
“prontidão” e uma fase em que os países são pagos pelas reduções verificadas
das emissões provenientes de perdas de florestas. Essa segunda fase é
semelhante ao programa REDD Early Movers, mas em um contexto multilateral em
vez de um programa bilateral, como o REM. (KILL, 2018, P. 5).
O financiamento do governo alemão,
bem como de empresas e bancos privados, é fator determinante. Há financiamentos
abundantes para a implementação desses programas e não há nenhuma forma de
financiamento, ou talvez haja poucas, que visem a efetivação e garantia de
direitos dos povos originários. CAPPELLETTI
(1998, p. 6) observa que de qualquer forma, torna-se claro que os altos custos,
na medida em que uma ou ambas as partes devam suportá-los, constituem uma
importante barreira ao acesso à justiça. Neste caso específico de financiamento
internacional, a um só tempo temos violação de direitos e limites claros de
acesso à justiça.
IV.
CONSIDERAÇÕES:
REM e as consequências aos povos originários
Claro está,
pois, que a intenção do governo do Acre, com o REM, foi e é atuar de forma
mercadológica por meio dos PSA – Pagamentos por Serviços Ambientais e, entre
estes “serviços” merecem destaque o programa ISA Carbono, onde está sendo
executado o programa REM, e os chamados produtos Ecossistêmicos. Para tanto, é
fundamental um arranjo que possa considerar os territórios dos povos
originários, maior berço Ecossistêmico. Ocorre que a lógica desses povos não
obedece e muitas vezes não se enquadra na lógica mercadológica do capital e
isso exigiu um grande esforço para fazer com que os povos fossem, digamos,
considerados, enquanto parte do processo de geração de capital e serviços.
Atentemos também para o fato de que os elementos da natureza sempre
desempenharam “funções” e não “Serviços”. Mudam-se as funções para serviços e
para tanto se espera que haja um “pagamento”. Tudo para satisfazer ao mercado.
A primeira e
gravíssima consequência para os povos originários é a perda da autonomia sobre
o território e do direito ao usufruto exclusivo. Claro que o banco KFW ou quem
quer que seja que venha a adquirir o direito ao carbono fixado nas árvores não
permitirá que nada que possa significar “alteração” a esta fixação não mais
será permitido. Assim, os povos indígenas não poderão mais fazer seus roçados
de subsistência, construir suas casas, enfim, realizar tudo aquilo que faz
parte de suas práticas tradicionais. A perda da autonomia sobre os territórios
poderá levar a uma possível perda cultural. Por exemplo, se não puderem mais
realizar tarefas cotidianas comuns e tradicionais, daqui a alguns anos os mais
jovens não saberão mais como realiza-las.
A “hipoteca“ dos territórios já é uma realidade muito grave. O Acre não
está, digamos, exportando os créditos de carbono mas está comercializando a
fixação deste. Ou seja, os créditos ficam como que em estoque para o Banco
Alemão. Assim, ainda que seja fato de que o KFW ainda não está negociando estes
créditos, poderá fazê-lo no futuro se julgar vantajoso do ponto de vista
econômico. Todas as terras indígenas são tratadas como estoque. Portanto, sim
as terras indígenas são uma espécie de garantia para o Banco KFW, dadas em
hipoteca, e são negociados, os créditos, diretamente com o governo do acre.
Essa é basicamente a diferença. Ou seja, os créditos não são negociados pelas
comunidades e povos indígenas, mas fazem parte de uma espécie de garantia de
estoque negociadas por meio do chamado REDD jurisdicional onde todo o Estado do
Acre figura como território de REDD e os acordos são feitos com o governo.
Uma espécie
de “Sebraelização” das relações, a mercantilização dos artesanatos e mesmo da
cultura, assim como a Financeirização da natureza por meio da economia verde
(base do modelo econômico do REM) tem um vício de origem. Ou seja, não procuram
equacionar e resolver os gravíssimos problemas dos povos originários, mas
apenas resolver os problemas de falta de políticas públicas da parte do governo
e em vários casos, resolver o problema de caixa de governos e ONGs. Esses
projetos tendem ao fracasso especialmente porque não escutam os povos indígenas
nem durante a elaboração e muito menos na execução. São sempre vindos de “fora”,
nunca nascem da vontade desses povos e se quer essa vontade é considerada. Mais
do que fracassarem, esses projetos criam dependências.
Os recursos
adquiridos por meio destes “projetos” não são eternos e nem suficientes para
manter as comunidades. Então nos deparamos com uma outra consequência: acabado
o dinheiro, como farão para garantir sua sobrevivência e a sobrevivência das
gerações futuras?
Como recebem
algum recurso com o compromisso de não alterar o meio natural, não farão mais
seus roçados, não realizarão mais atividades como caça e pesca. Com o recurso
deverão comprar tudo de que necessitam. Ai aparece uma outra consequência que é
o aumento de “lixo” nas comunidades e aldeias, principalmente garrafas pet e
sacolas plásticas. Nesta mesma direção, com o lixo e com mudanças nos hábitos
alimentares aparecerão ainda mais doenças sobre as quais o pajé não tem
controle e não sabe como curar trazendo consequências ainda mais graves para as
crianças em especial.
Por fim,
deixo estas considerações, mais uma vez reportando-me a Cappelletti que ao
demonstrar as “ondas” termina por, digamos, aferir a necessidade de um maior
debruçar sobre os temas de acesso à justiça apontando para um movimento que não
cessa já que a ideia de ondas é uma ideia de que se está sempre em movimento.
Para os povos originários serve como ponta de esperança.
Podemos afirmar que a primeira solução acesso - a
primeira “onda” desse movimento novo - foi a assistência judiciária; a Podemos
afirmar que a primeira solução acesso - a primeira “onda” desse movimento novo
- foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas
tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses “difusos”,
especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro
- e mais recente - é o que nos propomos a chamar simplesmente “enfoque de
acesso a justiça” porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito
além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao
acesso de modo mais articulado e compreensivo. (CAPPELLETTI, 1998, p. 12
Grifo nosso).
Reconhecer direitos
e respeitar esses povos e seus territórios é questão de respeito à democracia
pode ser o maior passo rumo a uma sociedade realmente justa, ou que prima pela
busca dessa justiça. Neste sentido, quando falamos em Processo e Justiça de
acesso à justiça, não estamos dizendo que a justiça esteja lá em algum lugar
sagrado aguardando que alguém a encontre. Não. Estamos antes falando de uma
justiça que é caminho e porta, busca incessante e construção contínua. O acesso
à justiça é um direito porque o é também o direito de buscar, construir e até
de experimentar, mesmo que parcialmente, o sabor da justiça.
Talvez seja
mais que esperança. Talvez seja um caminho a ser trilhado. O futuro destes
povos depende de que façamos um mutirão de solidariedade para construirmos este
futuro, pois, futuro não nos é apenas dado, é construído por mãos, mentes e
corações solidários.
Neste sentido
os povos originários seguem sendo exemplo de caminhar. Há séculos que vem
resistindo e se renovando nessa resistência, sempre na esperança que já é
certeza de que haverá um novo dia. Por mais que a noite seja fria e escura, o
alvorecer virá com o cantar dos pássaros e com o aquecer dos raios do sol. É no
amanhecer que festejaremos a justiça e finalmente o acesso a ela. Este é o
processo, Processo e Justiça.
Referências:
ACRE, Instituto de
Mudanças Climáticas, IMC, Serviços Ambientais, Incentivos para a sua
conservação. SISA: dialogando com os Povos Indígenas. Rio Branco, 2013
BRASIL. Constituição
(1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
CAPPELLETTI, Mauro – BRYANT Garth, Acesso à
Justiça. Sergio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre, 1988.