A infraestrutura de energia renovável em escala industrial ressurgiu na agenda da “transição energética” e como parte dos planos de recuperação contra a pandemia. Além disso, a produção do chamado “hidrogênio verde” a partir desses projetos acrescenta outra camada de injustiças. A matriz e o consumo energético permanecem intocados.
Rio Congo. Ph. Ollivier Girard, CIFOREm uma declaração de 2020 da International Hydropower Association, as maiores corporações hidrelétricas do mundo estão pedindo aos governos “aprovações de planejamento aceleradas” para garantir que a construção de novas grandes usinas possa começar o mais rápido possível. (1) A indústria de energia hídrica também está fazendo lobby para garantir que as grandes hidrelétricas sejam consideradas essenciais para a recuperação econômica da pandemia de Covid-19 e para “a transição para economias de carbono zero”, (2) lançando projetos devastadores como sendo “limpos” e fundamentais para uma “transição para a energia verde”.
A energia renovável em escala industrial, incluindo a hídrica, a eólica e a solar, está sendo apresentada como solução para nosso consumo cada vez maior de energia. Além disso, a produção do chamado “hidrogênio verde” acrescenta outra camada de injustiças relacionadas a essa megainfraestrutura. No entanto, a substituição da fonte de energia não resolve de forma alguma o problema real representado pelos níveis excessivos de consumo de energia, que são impulsionados pelo crescimento econômico acumulativo. Isso também torna incontestável a violência intrínseca às sociedades abastecidas por essa energia. (3)
Muitos atores empresariais e estatais estão pressionando para aumentar sua capacidade de produzir e usar hidrogênio como parte dos planos “verdes” para a recuperação da crise econômica causada pela pandemia. Ele está se tornando central nos debates da “transição verde”. O governo alemão anunciou planos de gastar 9 bilhões de euros (10,7 bilhões de dólares) para apoiar sua indústria nacional de hidrogênio. (4) Da mesma forma, a Comissão Europeia começou a promover o hidrogênio como forma de reduzir as emissões de carbono e atingir as metas climáticas do Acordo Verde. A UE planeja ampliar os projetos de “hidrogênio renovável” e investir um montante acumulado de 470 bilhões de euros (740 bilhões de dólares) até 2050. (5) Além disso, a secretária (ministra) de Energia dos Estados Unidos, Jennifer Granholm, disse que o hidrogênio “ajudará a descarbonizar setores pesados e industriais altamente poluentes [nos Estados Unidos] (…) e concretizar uma economia [de emissão] líquida zero até 2050.” (6)
O que é “hidrogênio verde”?
Em geral, as expressões “hidrogênio verde” ou “hidrogênio renovável” se referem à geração de energia de hidrogênio sem o uso de combustíveis fósseis. A técnica mais comum é extraí-lo da água, que é formada por duas partes de hidrogênio e uma parte de oxigênio (H2O). Um processo chamado de eletrólise divide a molécula de água em seus dois elementos constituintes. Portanto, para produzir “hidrogênio verde” é necessário água, um eletrolisador e um suprimento abundante de eletricidade. Se a eletricidade vier de fontes renováveis, como a eólica, a solar ou a hidrelétrica, o hidrogênio será classificado como “verde”. A seguir, o hidrogênio pode ser usado de duas maneiras: ser queimado para produzir calor ou usado para produzir eletricidade em uma célula a combustível.
Armazenar e transportar o gás altamente inflamável não é fácil; ocupa muito espaço. Por causa disso, o transporte de “hidrogênio verde” em grandes quantidades exige dutos específicos, pressurizando o gás ou resfriando-o até que se torne líquido. Além disso, é crucial destacar que, a produção de “hidrogênio verde” pode exigir até nove quilos de água de alta pureza por quilo de hidrogênio. (7) Isso pode disputar esse recurso com outras necessidades e usos de água limpa, que está se tornando cada vez mais escassa.
Grandes empresas de petróleo, como Shell e BP, já anunciaram investimentos na produção de “hidrogênio verde”. (8) E vários projetos importantes já estão sendo planejados ou implantados pelos governos de Canadá, China, Alemanha, Japão, Noruega, Portugal, Estados Unidos, Reino Unido, Holanda, Austrália e outros.
Hoje em dia, a produção de “hidrogênio verde” se tornou mais uma justificativa usada por grupos de interesse para acelerar a construção de infraestrutura de energia renovável em grande escala. Grande parte dos impactos danosos para as comunidades e os espaços de vida que são destruídos pela construção dessa infraestrutura permanece oculta.
Este é o caso do projeto Gran Inga, na República Democrática do Congo (RDC), com a polêmica mega-hidrelétrica de Inga 3, que atualmente ameaça as comunidades que vivem e convivem com o Rio Congo.
Em 15 de junho de 2021, o governo da RDC anunciou que o Australian Fortescue Metals Group iria desenvolver o projeto de energia hidrelétrica Grand Inga. A Fortescue é a quarta maior mineradora de ferro do mundo e fez um plano para se tornar “neutra em carbono” até 2030, 10 anos antes de sua meta anterior. A Fortescue Future Industries (FFI), uma subsidiária integral da Fortescue, está avançando em projetos para construir energia renovável em grande escala e capacidade de produção de “hidrogênio verde”.
Em abril de 2021, Andrew Forrest, presidente da Fortescue, disse em um comunicado à imprensa: “Nosso objetivo é proporcionar os dois ‘elos perdidos’ na batalha contra as mudanças climáticas, criar demanda e oferta de hidrogênio verde. Devido ao seu alto desempenho energético e sua neutralidade ambiental, o hidrogênio verde e a eletricidade verde direta têm potencial para eliminar os combustíveis fósseis das cadeias de produção. Uma vez estabelecidos, esses avanços também reduzirão substancialmente os custos operacionais da Fortescue.” (9)
A Gran Inga na RDC: uma cadeia de expropriações
Grand Inga é a uma série de barragens propostas para a região do Baixo Congo, o segundo maior rio do mundo em termos de vazão, depois do Amazonas, e o segundo maior da África, depois do Nilo. O plano é construir a Grand Inga em sete fases. Inga 1 e Inga 2 foram contratadas em 1972 e 1982, respectivamente. Inga 3 é a próxima da fila, um projeto cheio de polêmicas e críticas. A área de Inga 3 está na maior cachoeira do mundo em volume, as Cataratas de Inga, que consistem em uma série de quedas e correntezas que descem em elevação através de pequenas corredeiras.
É verdade que as pessoas que vivem na RDC precisam de energia: mais de 90% da população não tem acesso à rede elétrica. A capital do país, Kinshasa, tem mais de 10 milhões de habitantes, e menos de 30% deles têm acesso à eletricidade. Apesar dessa enorme lacuna energética, uma série de linhas de transmissão de alta voltagem aproveitaria a energia da megausina de Inga 3 e transportaria a eletricidade para centros industriais e urbanos distantes. Essas linhas de transmissão não levarão energia ao povo congolês. (10)
Inga 1 e Inga 2 desalojaram comunidades à força, sem indenização, e as reassentaram em acampamentos, deteriorando seus padrões de vida e afetando negativamente seus meios de subsistência. Muitas ainda vivem no “Acampamento Kinshasa”, sem serviços básicos, como água e saneamento adequados. A construção de Inga 3 não apenas aprofundará o “desenvolvimento” induzido pela pobreza, a dívida geracional e as violações dos direitos humanos, mas também afetará negativamente os ecossistemas de água doce da RDC. Inga 3 inundaria o Vale do Bundi, afetando terras agrícolas e diversos territórios. O vale também é berço cultural, abrigando cemitérios e locais sagrados, inclusive para práticas de ritos ancestrais. A redução da vazão do rio pode causar perda de biodiversidade e mudança nas espécies dominantes. A área inundada também pode criar um ambiente propício à reprodução de vetores transmitidos através da água, como a malária via o mosquito malanquin. Além disso, a barragem pode causar enormes emissões de metano, contribuindo para o aquecimento global. (11) O diretor da Agência para o Desenvolvimento e Promoção da Gran Inga, Bruno Kapandji, estima que 37 mil pessoas seriam expulsas por Inga 3. (12)
O projeto Grand Inga, incluindo a hidrelétrica de Inga 3, já foi concedido a um consórcio chinês, que inclui a China Three Gorges Corporation, e um consórcio espanhol, que inclui a AEE Power. O negócio foi fechado em 2018, mas a construção ainda não foi iniciada por questões de viabilidade financeira. O principal consultor de infraestrutura da RDC, Alexy Kayembe De Bampende, disse em junho de 2021 que o projeto Grand Inga agora será liderado pela Fortescue e que “empresas chinesas [e espanholas] são bem-vindas para participar”. (13) O presidente da Fortescue declarou que a empresa usará a energia na produção de hidrogênio para exportar ao mundo todo. (14)
“Hidrogênio verde”: uma fachada para mais poluição e expropriação
O ressurgimento do imenso projeto Grand Inga, que, se construído, seria o maior projeto hidrelétrico do mundo, estaria ignorando a longa resistência das comunidades já afetadas por Inga 1 e 2 e daquelas que seriam afetadas por Inga 3. (15) Seria uma agressão direta contra o Rio Congo e as comunidades que vivem e convivem com ele.
O estímulo e a promoção do “hidrogênio verde” como “combustível do futuro” e o caminho para uma “economia do hidrogênio” são um alerta para as comunidades que lutam contra a megainfraestrutura da energia renovável em todo o mundo. Esse impulso também é um sinal claro de como a atual matriz energética desigual e injusta permanecerá intocada na chamada “economia verde”.
O “hidrogênio verde” da Fortescue não fornecerá energia para 90% dos congoleses que carecem dela. Além disso, permanecem ocultos os impactos e a poluição da construção da megausina, bem como das instalações de liquefação e do transporte do combustível para consumidores e indústrias, principalmente no Norte global.
E a RDC não é o único país visado pela Fortescue. A empresa está planejando construir uma planta de “hidrogênio verde” no estado do Rio de Janeiro, que seria alimentada por projetos de energia solar e eólica. Da mesma forma, em novembro de 2020, a Fortescue anunciou que estava considerando a construção de uma usina de “hidrogênio verde” de 250 MW na Tasmânia. (16) Para encontrar recursos hidrelétricos, a empresa também está se aventurando na Indonésia e em Papua-Nova Guiné. (17) A Fortescue pretende rotular até mesmo a indústria siderúrgica como “aço verde” ao lhe fornecer “hidrogênio verde” como combustível. (18)
Outras empresas e governos também estão avançando com projetos de “hidrogênio verde” em todo o mundo. O Marrocos assinou em 2020 um Memorando de Entendimento com a Alemanha sobre a produção potencial desse combustível. (19) A Enegix Energy assinou um Memorando de Entendimento com o governo do estado do Ceará para a construção da maior usina de “hidrogênio verde” do mundo, que funcionará com energia de grandes projetos eólicos (ver artigo neste boletim sobre os impactos locais no Ceará). (20) Da mesma forma, no Chile, o HIF, um consórcio que inclui a holandesa AME, a italiana Enel Green Power, as alemãs Porsche e Siemens Energy, e a colaboração da estatal de energia chilena Enap, anunciou o primeiro projeto de “hidrogênio verde” no país, com energia de usinas eólicas. (21)
Soberania energética justa!
A declaração da International Hydropower Association mencionada no início deste artigo é definitivamente um remédio difícil de engolir para as dezenas de milhões de pessoas cujas vidas e meios de subsistência foram diretamente prejudicados pela construção de mega-hidrelétricas em todo o mundo, como nos casos de Inga 1 e Inga 2.
A infraestrutura de energia renovável em escala industrial e as indústrias de “hidrogênio verde”, bem como seus patrocinadores financeiros, ocultam os efeitos sociais devastadores dessas grandes infraestruturas e não falam sobre os impactos extremos sobre espaços de vida, biodiversidade, fontes de água doce, florestas, terras férteis e muitos outros.
Em vez de acelerar mais destruição e a poluição, os governos deveriam priorizar um acesso localizado, fora da rede, e justo, que respeite os ecossistemas fluviais, espaços de vida e suas comunidades. A tática de rotular o “hidrogênio verde” de “combustível do futuro” é uma tentativa desesperada de manter os níveis crescentes de produção e consumo, junto com as desigualdades que eles desencadeiam. A discriminação, o racismo e a exploração são reforçados pela imposição dessa matriz energética e mega infraestrutura que, por sua vez, alimenta um injusto sistema de energia pra beneficio principalmente das grandes industrias.
Joanna Cabello, joanna@wrm.org.uy
Membro do Secretariado do WRM
(1) IHA, 2020, Hydropower associations unite to set Covid-19 recovery pathway
(2) IHA, 2021, New paper: Couple green hydrogen with hydropower to create a net zero future
(3) Dunlap, Alexander, 2018, End the “Green” Delusions: Industrial-scale Renewable Energy is Fossil Fuel+
(4) Bloomberg, 2020, Germany Just Unveiled the World’s Greenest Stimulus Plan
(5) ABC News, What is green hydrogen, how is it made and will it be the fuel of the future?
(6) The Economic Times, 2021, U.S. seeks less costly clean hydrogen in fight against climate change
(7) JDSUPRA, 2020, Water Resource Considerations for the Hydrogen Economy
(8) Green Tech Media, 2020, Shell’s Latest Offshore Wind Bid Would Power a Huge Green Hydrogen Cluster, and Green Tech Media, 2020, Lightsource BP Explores Green Hydrogen Site Powered by 1.5GW of Australian Renewables
(9) Green Car Congress, 2021, Iron ore leader Fortescue pushing green hydrogen, ammonia and electricity projects
(10) International Rivers, Inga Campaign
(11) Idem (10)
(12) Global Construction Review, 2018, Spanish, Chinese companies to fund $18bn Inga dam in DRC
(13) NS Energy, 2021, Congo selects Fortescue to develop Grand Inga hydro project
(14) Reuters,2021, Congo picks Australia’s Fortescue to develop giant hydro project
(15) International Rivers, 2021, Fortescue Metals Group’s Plan to Develop Grand Inga Hydro Scheme Won’t Deliver Green Energy for DRC
(16) Reuters, 2021, Australia’s Fortescue eyes Brazil plant amid green hydrogen push
(17) Australian Mining, 2021, Fortescue to build second hydrogen plant
(18) ABC News, 2021, Andrew Forrest on how green steel and hydrogen offer a chance to fix our climate and our economy
(19) Bloomberg, 2020, Congo Hydrogen Plant Being Considered by European Turbine Makers
(20) Power Technology, 2021, Green hydrogen, green energy: inside Brazil’s $5.4bn green hydrogen plant
(21) Sustentable, 2021, Especial hidrógeno verde: aprueban primera planta de hidrógeno verde de América Latina