Reproduzo aqui brilhante artigo de Michael F. Schmidlehner, publicado originalmente na revista Contra Corrente Nº 05. Aproveitem a leitura porque é muito raro um texto assim, tão preciso na análise do que ocorre hoje no estado do Acre.
Michael F. Schmidlehner*
O capitalismo de
desastre
O fato do modo de
produção capitalista causar desequilíbrios em sociedades e no meio ambiente foi
amplamente descrito e analisado no século passado. Entretanto, na atual fase do
capitalismo, destaca-se ainda outra tendência, ainda menos estudada, inerente
deste sistema: a de explorar economicamente crises, inclusive aquelas por ele
provocadas. A jornalista canadense Naomi Klein (2008), no seu livro “A doutrina
do choque: a Ascensão do Capitalismo de
Desastre” descreve, como, nos Estados
Unidos, experimentos psiquiátricos associados a teorias do liberalismo
econômico de Milton Friedman deram origem a novas estratégias de dominação
geopolítica, que, em seguida foram
"testadas" nas ditaduras latino-americanas. Estes
mecanismos começam a funcionar quando os indivíduos de uma sociedade perdem sua narrativa, e o
capitalismo selvagem, aproveitando sua paralisia e impotência, pode impor suas
regras sobre eles. Nesta lógica perversa, desastres naturais e até guerras tornaram
grandes “oportunidades de mercado”.
O presente artigo
busca, a luz do conceito do Capitalismo de Desastre, analisar a adaptação de um
modelo "clássico" de desenvolvimento sustentável, vigente no Acre na
maior parte da primeira década de 2000 para o modelo atual que enfatiza a
implementação dos mecanismos da chamada Economia Verde, apontando como marco desta transição a Lei Estadual
2.308/2010, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços
Ambientais(SISA), no Acre.
Fase um: “Use-o ou
perca-o”
O período do "clássico"
desenvolvimento sustentável teve seu início no Acre em 1999, quando a chamada Frente Popular do Acre (FPA),
liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu o governo do Estado com Jorge Viana. A equipe do
chamado “Governo da Floresta” soube reproduzir em nível local um
discurso que havia se criado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU),
a partir de 1980, e consolidado na ECO 92. Conforme o lema: “use it or lose it”
(use-o ou perca-o), o discurso do “desenvolvimento sustentável” disseminado
nesse momento afirmava que a única possibilidade de preservar os recursos
biológicos seria usá-los comercialmente, ou seja, incluí-los em processos produtivos.
A FPA e os primeiros
empréstimos para políticas de desenvolvimento sustentável
Promovendo a ideia
que a “Frente Popular” seria a autentica continuação da luta dos povos das
florestas acreanas e transfigurando estes povos como se fossem
vocacionados “ambientalistas de mercado“
, o Governo ofertou o Acre para as grandes agências e bancos de
desenvolvimento, como laboratório e vitrine do desenvolvimento sustentável na
Amazônia.
Logo em 2002, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID)
concedeu um primeiro empréstimo de US$ 64,8 milhões para viabilizar o
Programa de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Acre (PDSA). Seguiriam-se,
nos dez anos posteriores, uma série de financiamentos dos grandes bancos de
desenvolvimento nesta linha. De acordo com documentos do Governo, as operações de créditos
(empréstimos) em 2011 totalizaram R$ 1.62 bilhões. (ACRE 2011, p.13). Os dados
da oposição entretanto indicam, que a dívida do Acre esteja na cifra dos R$ 3
bilhões. (AC24HORAS, 2013) . O problema
do endividamento ainda é agravado pela crescente dependência do estado dos
recursos federais. Enquanto em 2004 a
União transferiu em torno de 1,2 bilhões de Reais para o Acre, em 2012 as
transferências ascenderam a mais que 3 bilhões.
(CGU 2013)
As condicionantes que
acompanham os empréstimos estão
exemplificadas na descrição do projeto atual financiado pelo BID: “Espera-se
leiloar 300.000 hectares de florestas estaduais em licitações fechadas para o
manejo florestal sustentável. [...] O projeto prevê um aumento da contribuição do setor florestal para o
crescimento econômico em 6 por cento” (IADB 2013, tradução nossa)
Mesmo ocorrendo praticamente despercebido pela população do
Acre, o endividamento do Estado surte
severas consequências, inserindo-se na lógica do Capitalismo de Desastre. -
Assim como a crise da dívida na década de 80 havia forçado os países
africanos e latino-americanos a “privatizar ou morrer” (KLEIN 2008,p.20), os compromissos financeiros com os
grandes bancos fizeram “necessário” a penhora e privatização das florestas no
Acre. Em 2006, a então Ministra Marina Silva criou as bases para esta
privatização, ao permitir, por meio da Lei n.º 11.284, as concessões de
florestas públicas para empresas privadas.
Perda de identidade
A pressão financeira
exercida pelos bancos se traduz diretamente na repressão dos povos da floresta
pelo Governo. Além da tutelagem pelo discurso tecnocrata e a cooptação de lideranças, o medo contribui
para a paralisia destas pessoas: medo de ser multado pelos órgãos ambientais,
medo de ser criminalizado, de ser excluído ou reprimido por discordar com as políticas
governamentais. O líder seringueiro Osmarino Amâncio descreve a atual situação
do movimento assim: “Hoje você vê o
Secretário dirigindo a assembleia do sindicato, secretário do Governo do Estado
fazendo a pauta do movimento sindical e o sócio ta la, muitas vezes assistindo”
(ALMEIDA, CAVALCANTE 2006, p.70). O que os fazendeiros não conseguiram na
década de 1980 – desmobilizar o movimento seringueiro – as politicas
paternalistas do desenvolvimento sustentável promoveram com muito mais eficácia
nas décadas seguintes. O principio da dominação neste processo se baseia, assim
como às técnicas psiquiátricas que foram aplicadas pela Agência Central de
Inteligência americana (CIA) nas ditaduras latino-americanas, no isolamento, no
esmorecimento da personalidade e na perda de identidade No caso dos povos da
floresta, esta identidade é plenamente vinculada ao us e às formas de ocupação
do território. .
A Presidente do
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri, Dercy Teles descreve a iminente
perda de identidade provocada pelas represálias ambientais assim: “você vai
se sentir inútil, não tem como a pessoa viver parada só comendo e olhando pra
mata sem poder fazer tudo aquilo que ele cresceu fazendo, pescando, caçando,
andando, fazendo sua roça, etc.” (DOSSIÊ ACRE 2012, p.39)
Fase dois:
“Precifique, ameace e negocie-o”
Em 2007, a ONU
iniciou uma nova produção discursiva, ao introduzir o Programa Economia dos
Ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB,
na sigla em inglês) (2008). Em contraste com o lema do “clássico”
desenvolvimento sustentável “use-o ou perca-o”, agora agrega-se valor
financeiro à recursos e processos naturais ameaçados ao se comprometer em
os manter intocados, ou seja, em não
usá-los. Uma vez tendo um processo natural descrito tecnicamente como “serviço
ambiental”, e tendo ele precificado sob a confirmação de que sua existência e
reprodução estão ameaçadas, certificados podem ser emitidos e vendidos. Estes
papeis certificam que haverá uma provisão “adicional” deste serviço por meio de
um determinado projeto: adicional em relação a um cenário projetado sem o
projeto. O primeiro “serviço” a ser
precificado e negociado na prática foi o da fixação de carbono nas florestas,
que deve parcialmente compensar emissões de indústrias que causam o aquecimento
global. Certificados gerados a partir de
projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal,
chamados REDD ou REDD+, já podem ser adquiridos por poluidores que querem se
tornar “neutros em carbono”.
Mais uma vez, o
governo da FPA soube rapidamente traduzir o discurso do nível global para o
local e assegurar sua posição de “vanguarda” na aplicação da Economia Verde nas florestas tropicais.
Ao criar a já citada neste artigo Lei SISA , o Estado autoriza a si mesmo, por
meio da criação de institutos, comissões
e uma agência comercial, a criar e alienar créditos resultantes de “serviços
ambientais”, tais como sequestro de carbono, conservação da beleza cênica
natural, regulação de clima, valorização cultural e do conhecimento tradicional
ecossistêmico, entre outros.[1]
Mas, como recursos e
processos naturais que são concebidos pela Constituição Federal de 1988, em seu
Artigo 225 como bens comuns e, consequentemente, inapropriáveis e inalienáveis,
podem de repente “por lei” ser transformados em mercadoria? Ignorando as fortes preocupações da
sociedade civil, como aquelas formuladas na Carta do Acre (2011), os promotores
da Economia Verde dão maciço apoio à
implementação do sistema “exemplar” no Acre. Após quatro dias da criação da Lei
SISA, o Fundo Amazônia aprovou o financiamento do Projeto Valorização do Ativo
Ambiental Florestal com R$ 60 milhões, para incentivo técnico e financeiro aos
serviços ambientais. (FUNDO AMAZÔNIA 2013) Em 2013, seguiram mais R$ 50 milhões
do banco alemão KFW à titulo de reconhecimento pelas “ações pioneiras” e como
incentivo, dentro do programa REDD “Early Movers” (REM) (IPAM 2013).
Quais são então,
nesta nova fase, as condições do financiamento? Para garantir a manutenção dos
“serviços ambientais” os impactos negativos da “ação antrópica” (atividades
de seres humanos) precisam ser minimizados, ou seja , as pessoas que vivem da
floresta precisam ter suas atividades controladas ou suspensas. Isto exige
restrições e regras de gestão ambiental mais severas.
É neste momento, que
a crise - a paralisia do movimento, a criminalização das práticas tradicionais
pelas políticas paternalistas do “desenvolvimento sustentável” - se torna
“oportunidade”, abrindo o terreno para a imposição dos novos mecanismos
mercadológicos. Comprometidos por algum pagamento, enganados por um falso
discurso que os descreve como “guardiões da floresta” e, de fato, privados de
seu direito de livre interação com os elementos da natureza, os moradores da
floresta passam a preencher no cenário da Economia Verde na verdade a função de
imóveis “espantalhos culturais”, tendo a única atribuição de vigilância para
que os processos de acumulação de capital, a partir do seu território, ocorram
imperturbados.
Em 2012, na Rio+20,
integrantes do grupo da Carta do Acre interviram em eventos promovidos pelo
Governo do Acre e lançaram um dossiê intitulado
“O Acre que os mercadores da natureza escondem”, revelando a aplicação
do modelo da Economia Verde no Acre como
ambientalmente destrutivo e socialmente excludente.
Entretanto, as
palavras mais diretas acerca da “nova logica” por trás dos serviços ambientais
e REDD vieram de forma inesperada, de
uma pessoa que tinha sido considerado um potencial “parceiro” do Governo do
Acre. No evento paralelo da Rio+20 Economia
Florestal Verde e Cooperação Sul-Sul, realizado pelo WWF Internacional com
o Governo do Acre e o Governo de Sabah (Malásia), o diretor do setor Florestal
de Sabah, Datuk Sam Mannan causou
constrangimento entre os presentes representantes de governos e ONGs, quando
explicou: “Se nossa atividade
habitual é a boa governança das florestas, tratando-se de uma floresta
certificada e bem gerida em uma área de padrão mundial de conservação e, assim
por diante, o REDD + não pode ser aplicado.
Foi-me explicado que não há adicionalidade - ou seja, a adicionalidade
do medo!!. Não havendo adicionalidade, o carbono não tem nenhum valor - não vai
vender. Ninguém quer comprá-lo. Nada! Se, pelo contrário, você destruir e
depois parar no meio, ameaça de causar mais danos, então há adicionalidade e,
portanto, o carbono retido vende. Senhoras e Senhores, isso é loucura e um sistema que
recompensa trapaceiros, recompensa chantagistas e recompensa pessoas que intimidam. Al Capone deve estar
sorrindo no túmulo dizendo: 'Cumpadre, minha cultura está viva!'” (MANNAN
2012, p.11, tradução nossa)
O Acre como
laboratório de choque?
Mais recentemente,
com a aprovação da Lei Estadual 2.728, em agosto de 2013, o Governo do Acre
autorizou a transferência de cem milhões de toneladas de dioxido de carbono
para a Companhia Agência de Desenvolvimento de Serviços Ambientais do Estado do
Acre S/A, a agência comercial do SISA. Supondo que uma tonelada do gás tenha
valor de R$ 10, esta transferência corresponderia a um bilhão de reais. Com isso,
o Governo parece querer inaugurar o ato da milagrosa “multiplicação do
carbono”, no qual quaisquer ameaças ambientais ou impactos negativos sobre os
ecossistemas, inclusive aqueles que podemos esperar no futuro próximo em
consequência da exploração de gás e petróleo no Acre, podem, através da palavra
mágica “adicionalidade” ser transformados em dinheiro. Mas qual será ao final o
destino deste dinheiro? Provavelmente terá que ser usado para pagar os juros
para os bancos, viabilizando assim novos e maiores financiamentos e continuar
saciando a sede do capital em manter escalas de lucro crescentes.
Os Programas de
Pagamento por Serviços Ambientais e REDD visam transformar o Acre em mais um
“laboratório de choque”, onde endividamento, destruição ambiental, opressão e
espoliação dos povos formam um circulo viçoso. Naomi Klein define um estado de choque como “momento em
que se forma uma lacuna entre os eventos que se sucedem rapidamente e a
informação disponível para explicá-los.” (KLEIN 2008, p.543) Neste sentido,
temos que concentrar esforços para monitorar, analisar e compreender estes
eventos, ou seja, fechar esta lacuna e recuperar a capacidade de reação.
Referência
bibliográficas:
ACRE,
Governo do Estado , Desenvolver e Servir - Plano Plurianual 2012 – 2015, Rio
Branco, 2011.
AC24HORAS,
Notícia do 12/12/2012: Dilma não anistia dividas dos estados e medida
provisória vai mudar indexador.
[http://www.ac24horas.com/2012/12/12/dilma-nao-anistia-dividas-dos-estados-e-medida-provisoria-vai-mudar-indexador/
, Acesso 04 Set. 2013 ]
ALMEIDA,
L.; CAVALCANTE, M., Osmarino Amâncio: tempo de resistência, em PAULA, E.,
SILVA, S., (Orgs.) Trajetórias da Luta Camponesa na Amazônia-Acreana,
EDUFAC, Rio Branco 2006, p.63-77.
CARTA
DO ACRE - Em defesa da vida, da integridade dos povos e de seus territórios e
contra o REDD e a mercantilização da natureza (documento elaborado por 30
organizações sociais de defesa ambiental e dos direitos humanos na Amazônia, em
Rio Branco (AC), 2011. [http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/biblioteca/category/12-notas-e-manifestos?download=38
, Acesso 23 Ago 2013 ]
CGU
– Controladoria-Geral da União, Portal da Transparência: Transferência de
Recursos. [http://www.portaldatransparencia.gov.br . Acesso em 04 Set. 2013]
DOSSIÊ
ACRE: O Acre que os mercadores da natureza escondem (documento especial para a
Cúpula dos Povos), 2012. Disponível em:
http://www.cimi.org.br/pub/Rio20/Dossie-ACRE.pdf. Acesso em 23
Ago 2013 ]
FUNDO
AMAZÔNIA, Projeto: Valorização do Ativo Ambiental Florestal [
http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/fam/site_pt/Esquerdo/Projetos_Apoiados/Lista_Projetos/Estado_do_Acre
. Acesso em 04 Set. 2013]
MANNAN,
Datuk Sam, The Rainforests of Sabah, Malaysian Borneo: will we still see them
in the next century ? A speech delivered
by Satuk Sam Mannan, Director of Forestry, Sabah, Malaysia, at the Rio+ 20 side
event,19th june 2012, Rio de Janeiro, Brazil. Disponível em [http://www.forest.sabah.gov.my/images/pdf/press%20release/en/Speech-Rio.pdf. Acesso em Ago.2013.
IADB,
Brazil’s Acre gets $72 million IDB loan for Sustainable Development Program -
Inter-American Development Bank. Disponível em: http://www.iadb.org/en/news/news-releases/2013-04-22/sustainable-forestry-in-brazils-acre,10425.html. Acesso em 23 Ago2013.
IPAM, Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia - Karl-Heinz Stecher: Programa remunera Acre por
resultados contra desmatamento [
http://www.ipam.org.br/revista/Karl-Heinz-Stecher-Programa-remunera-Acre-por-resultados-contra-desmatamento/493
Acesso em 23 Ago 2013 ]
KLEIN, Naomi, A doutrina do choque: a Ascensão do Capitalismo de Desastre
/ Naomi Klein; tradução Vania Cury, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
TEEB, Economia dos
Ecossistemas e da Biodiversidade, Um relatório preliminar, Cambridge – Reino Unido,
2008. Disponível em:
http://www.teebweb.org/wp-content/uploads/Study%20and%20Reports/Additional%20Reports/Interim%20report/TEEB%20Interim%20Report_Portuguese.pdf.,Acesso
em 23 Ago2013.
* Michael f. Schmidlehner é
austríaco nato e brasileiro naturalizado, possui mestrado em filosofia pela
Universidade de Viena - Áustria, e atua no Acre desde 1995 como sócio fundador
da organização não governamental Amazonlink.org, jornalista e professor de
filosofia. Contato: michael@amazonlink.org
[1] Fazem parte do arranjo
Institucional do SISA: (1) o Instituto
de Regulação Controle e Registro, (2) a Comissão Estadual de Validação e
Acompanhamento, (3) o Comitê Científico (4), a Ouvidoria do Sistema e (5) a
Agência de Desenvolvimento de Serviços Ambientais do Estado do Acre.